Uma querida amiga nova-iorquina acha engraçado eu não sair do Rio Vermelho para quase nada. Ela tem razão. Quando vem me visitar, almoçamos em restaurantes, vamos a barzinhos ou dançar, fazemos compras, tudo sem ir longe aqui de casa. Outro dia, ela me perguntou curiosa se eu tenho outras roupas além de bermuda, camiseta e chinelos, pois nunca me viu de outro modo. Só me visto assim para andar aqui pelas vizinhanças, é mais confortável. É fato que raramente atravesso as fronteiras do meu bairro. Fácil de entender. Salvador cresceu bagunçada, ir de um lugar a outro é um verdadeiro martírio e perda de precioso tempo. Há fartura de congestionamentos para todos os lados e gostos, desde aqueles intermináveis entre uma sinaleira e outra, até os sem motivo algum. Eu não me incomodaria em viajar duas horas diárias para ir e voltar do trabalho, desde que uma hora do trajeto não fosse perdida empacado em engarrafamentos. Por isso, fiz do Rio Vermelho o meu microcosmo.
Aqui, temos de tudo, você não pode nem imaginar. Desde gaúchos de bombachas perdidos pelas ruas, até pingüins vindos da Antártida! Perto daqui mora um sujeito estranho que creio ser um cidadão de outro planeta, mas minhas suspeitas ainda não se confirmaram. Temos uma pequena colônia italiana e outra 'turca' – para 'o cara' de Brasília, libaneses, sírios e turcos são tudo a mesma coisa. O Rio Vermelho está até na história do Brasil. Os primeiros portugueses que aqui chegaram foram saboreados pelos tupinambás na Mariquita, onde hoje só se comem acarajé. Alias, foi aqui que o Diogo Álvares Correia, o Caramuro, naufragou, antes de dar o lendário tiro de espingarda num pobre pássaro, para causar temor aos indígenas. Hoje em dia, próximo ao local fica o Mercado do Peixe, ponto de abastecimento de nossos bêbados e boêmios em fim de noite. Escritores famosos e artistas plásticos também fizeram daqui a sua moradia, dando a fama que o bairro tem. Rio Vermelho também é um lugar rico em estórias e personagens, mas desta vez não planejo falar sobre eles. Muitos moradores nasceram e se criaram aqui e daqui nunca saíram. E os que se aventuraram a partir, retornaram arrependidos. Outros moradores se casaram com alguém daqui mesmo do bairro, mais uma prova que aqui tem de tudo, inclusive bons partidos. Existe um magnetismo e atmosfera inexplicável neste lugar que só quem tem o privilégio de morar aqui é que percebe.
Li recentemente numa revista que reduzir a rotina diária ao limite de poucas quadras de onde se mora é um novo estilo de vida, já praticado por pessoas em grandes centros urbanos mundo a fora. Então, eu não inventei nada de novo, e só estou seguindo uma tendência mundial, o que me livra do rotulo de ser um bairrista, e me transforma num ser cosmopolita. Quem mora em cidades grandes e desordenadas como Salvador, passa a maior parte da vida dentro de um transporte tentando chegar a algum lugar. Poderia estar fazendo algo mais útil ou agradável. É claro que a grande maioria não tem essa opção, mas para aqueles que têm o privilégio de trabalhar em casa feito eu, sobra mais tempo para fazer coisas interessantes, como escrever um blog, por exemplo, ou tomar uma cervejinha no final de tarde na casa de algum vizinho aposentado, ou falar mal do governo em um acalorado bate-papo em alguma esquina. O segredo de tudo isso é tentar simplificar a vida. Tenho uma amiga que não põe os pés em Shopping Center porque prefere prestigiar o comércio do bairro e fugir da aporrinhação em procurar por uma vaga de estacionamento. Cada um de nós tem seu motivo para resolver sua vida sem ir muito longe de casa, como você pode ver.
É uma contradição vivermos numa época em que se vive por mais tempo que nossos antepassados, e desperdiçarmos este precioso tempo ganho a mais, em congestionamentos ou em filas de banco. Com tanta tecnologia e serviços às nossas ordens, computadores de todos os tamanhos, internet, celulares que fazem de quase tudo, entregas rápidas, novas formas e teorias de administração de negócios, para exemplificar algumas, aqueles tipos de trabalhos solitários executados sentados numa mesa de escritório de uma empresa ainda não podem ser transferidos para o quartinho dos fundos de nossa casa.
Certa vez fui almoçar na casa de um milionário, destes que possuem banco, usinas de álcool, petroquímicas, construtoras, fazendas, governadores, prefeitos, senadores, presidentes da republica e até uma barraca de praia em Itapoan, só para exemplificar a grandeza do homem. O magnata comandava todos os seus negócios sem sair de casa, trajando como uniforme de trabalho bermuda, camisa de malha e chapéu panamá. Ele me contou que certa vez um ministro de estado foi até sua casa para uma reunião. Sua Excelência precisou enviar urgente um documento para Brasília, para cumprir uma ordem do Todo Poderoso. Foi até a copa e perguntou à cozinheira:
- Minha senhora, onde fica o aparelho de fax?
A velha pensou por um instante, desconfiada, antes de dizer alguma coisa.
- Meu senhor, isto aqui é uma casa de família, não tem essas coisas não! – respondeu indignada.
Como você pode ver, esta nova era já chegou para alguns afortunados, e para outros, nem tanto.
Rio Vermelho, 10 de junho de 2009.