sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Sobre caçadas a javalis e a nobreza do cotidiano.

Numa recente ensolarada manhã, cá estava eu pensando sobre alguma estória para uma nova crônica, como sempre faço semanalmente porque escrever é um exercício contínuo e, embora eu já tenha escrito mais de 80 delas, eu as considero como um texto único no qual vou revelando o meu cotidiano tal qual um alfaiate desenrola lentamente a peça de tecido sentindo a maciez de sua trama ao afagá-lo com a palma da mão e imaginado se dali surgirá um blazer ou uma calça. Fiquei refletindo se escreveria desta vez sobre minha triunfal caçada aos sanguinários javalis selvagens no vale da Cananéia com um potente rifle de derrubar leão, ou da vez que pulei do Machu Picchu de asa delta, ou fiz rapel na cachoeira da Garganta do Diabo ou amor com uma belíssima norueguesa sobre as mornas areias do mar Egeu, tendo a lua como testemunha. Meus devaneios foram subitamente interrompidos com o apitar na máquina de lavar roupa avisando-me que o serviço já tinha terminado e que eu já podia pendurar a roupa limpa no varal, e isto foi quando retornei ao planeta terra.

Uma querida amiga ficou encantada ao saber que lavo minhas próprias roupas e achou isso “bonitinho”, depois completou dizendo que era uma atitude nobre de minha parte. E eu que sempre pensei que atitude nobre fosse algo como reconhecer a paternidade de um filho bastardo ou renunciar ao cargo de Ministro de Estado depois uma intensa saraivada de denuncias de corrupção e gatunagem de dinheiro público. “O Excelentíssimo Senhor Ministro teve o nobre gesto de renunciar ao cargo depois de uma campanha difamatória e infundada sobre a sua ilibada conduta frente ao cofre da viúva.” Mas ela tem razão ao dizer que o homem que lava a própria roupa demonstra um gesto de humildade. Não há nada de errado em um homem lavar as suas roupas, ou pratos ou cozinhar, até porque agora chamam a isto de homem moderno. Então eu sou moderno, mas não moderninho. Se eu fosse casar com uma mulher para ter quem lavasse e cozinhasse para mim, eu certamente daria preferência à nossa atual empregada doméstica, pois assim me pouparia de lhe pagar salário e encargos sociais.

Não é raro idealizarmos pessoas que admiramos. Mais comum ainda é as imaginarmos fazendo sempre coisas divertidas, como se a vida delas fosse uma festa e dificilmente a concebemos, por exemplo, lavando o banheiro de sua casa ou enfrentando a fila do banco para pagar contas. Certa vez eu tive uma amiga muito bela e a quem não lhe faltavam convites para baladas incríveis, altas festinhas particulares, jantares nos lugares da moda, passeios maravilhosos e noitadas extenuantes nos motéis mais requintados. Eu ficava imaginando como deveria bom ser ela com tanta farra e admiradores, até um certo dia em que a flagrei em sua casa, de touca de meia na cabeça, metida num shortinho apertado com a vassoura na mão varrendo o piso da cozinha enquanto ouvia pelo rádio e cantava a plenos pulmões o Reginaldo Rossi tão feliz quanto pinto na lixeira. Desde então, passei a olhá-la de modo mais mundano.

No meu caso, eu lavo a minha própria roupa na máquina e interrompo o meu trabalho de escrever para estendê-la. Tive amigo adulto que não fazia ideia onde se encontrava um garfo na cozinha de sua própria casa ou que a mãe, quando ainda solteiro, lhe fazia o prato à mesa e seguia atrás dele arrumado a bagunça que ele ia deixando no caminho pela casa. Fico imaginando como ele estará agora e se a esposa conseguiu reeducá-lo ou se ela teve o mesmo triste fim de sua sogra. Sim eu lavo as minhas próprias roupas, é a nobreza do cotidiano, apesar de que um dia já as joguei no cesto imundas e elas, inexplicavelmente, voltaram milagrosamente para a minha gaveta lavadas, dobradas e cheirosas. Fala-se tanto em igualdade entre os sexos como igualdades de oportunidades de emprego, salários iguais para as mesmas funções e coisas assim. É muito bonito tudo isto, mas acho que tais práticas devem começar dentro de casa.

Rio Vermelho, 18 de agosto de 2011.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

De como fotografar um pica-pau

É gratificante conseguir provocar emoções positivas no leitor, levá-lo a recordar momentos de sua vida através do texto literário ou apresentá-lo a uma realidade diferente da qual ele conhece, ou apenas diverti-lo. Uma assídua leitora enviou-me um simpático e-mail agradecendo-me pela crônica “Sobre pedaços de mamão, banana... e a natureza” – infelizmente ainda não foi a aquela bonita para quem dediquei carinhosamente a estória, mas rogo a Deus pelo dia em que ela alegrará com algumas gentis palavras este seu humilde admirador – pois esta a fez recordar das férias de sua infância passadas no sítio dos avós, da casa simples rodeada por uma enorme varanda com redes balançando ao vento e de onde podia-se contemplar mangueiras, cajueiros, pés de jambo, pitangueiras e sapotizeiros que atraiam a visita de passarinhos, cutias e outros bichinhos.

Ela também quis saber se realmente pica-paus chegavam à minha janela e, embora o único que eu tenho absoluta certeza de já ter visto na vida foi aquele do desenho animado, respondi-lhe garantindo que este agia tal qual, usando o bico para dar marteladas, embora eu fosse incapaz de distinguir se este era um genuíno pica-pau ou apenas uma ave qualquer fazendo-se passar por um. Fiquei intrigado com aquela dúvida e resolvi tirá-la a limpo pesquisando na internet, mas depois de exaustiva procura não encontrei nenhuma imagem que se assemelhasse ao meu ilustre visitante, uma ave de porte maior que um passarinho, coberta por uma plumagem amarelo canário e o feliz possuidor de um bico longo e robusto. Mesmo assim não esmoreci em meu intento e resolvi tentar identificar o meu pica-pau com alguém que entendesse do assunto através de uma foto. Munido de minha câmera fui à cata da ave pelas redondezas da casa, mas na minha primeira tentativa não encontrei nenhuma. Fui ingênuo ao supor que os pica-paus fossem como as rolinhas ou os pardais que existem aos montes e nos visitam a toda hora por causa das frutas que lhes oferecemos.

Tentei a seguinte estratégia, deixei a câmera à mão para o caso do pica-pau aparecer enquanto eu trabalhava em minha sala, próximo a uma janela. Devo confessar que foi uma tarefa difícil escrever e ficar vigilante ao que se passava do lado fora, mas finalmente um pica-pau deu o ar da graça e antes de eu mirar no alvo ele se foi tão rápido quanto tinha chegado. As tentativas seguintes foram igualmente sem sucesso, o que me fez concluir que os pica-paus são seres inquietos ou que não gostam de serem fotografados, razão pela qual nunca esquentam o lugar onde pousam. Por mais que eu fosse mais ágil, este era sempre mais rápido que eu.

As tentativas frustradas me fizeram sentir fome e, como um passarinho, fui atrás de uma banana voando pela casa... Enquanto descascava a fruta ocorreu-me uma ideia brilhante e tão obvia. Por que não usar um pedaço da banana para atrair o pica-pau e quando este se detivesse bicando-a eu teria mais tempo para fotografá-lo? Foi o que eu fiz, da banana que eu comia parti um generoso pedaço que joguei sobre o telhado que cobre a área de serviço que fica em frente à minha janela e voltei aos teclados. Realmente é muito difícil trabalhar em casa, pois volta e sou distraído com assuntos domésticos ou qualquer outra coisa. Cerca de uma hora depois, um pica-pau pousou de olho grande na isca e caiu feito um pato em minha cilada. Posou para uma bela foto que enviei por e-mail para o meu amigo Rogério, um grande apreciador de aves tanto voando como pousadas em seu prato. Respondeu-me desconcertado que o meu pica-pau mais parecia um bem-te-vi, mas que se eu fazia tanta questão de uma identificação positiva, este poderia ser também o famoso pica-pau-amarelo!

Rio Vermelho, 30 de julho de 2011.