quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O que foi que aconteceu com a festa de Iemanjá?

    Não sou saudosista e nem sempre acho que as coisas como eram feitas antigamente eram as melhores. Reconheço que há coisas que mudam para a melhor, e outras, infelizmente, nem tanto.

    Como morador antigo do Rio Vermelho, vim para cá em 1964, portanto, lá se vão 60 anos – há gente aqui há mais tempo que eu –, assisti a lenta transformação da festa de Iemanjá, que já foi escrita com ipsilone.

    Para quem desconhece, vai aqui um breve resumo de sua origem: tudo começou com uma oferenda dos pescadores do Rio Vermelho, rogando a Iemanjá que aquele ano de 1923 – há 100 anos! – não fosse de escassez de peixe como nos dois anos anteriores. Naquele ano, graças a Iemanjá, não faltou peixe para quem quis. Como era de se esperar, nos anos que se seguiram a oferenda foi renovada e a prosperidade continuada. E o ato devoto consolidou-se como uma festa popular no calendário soteropolitano.

    Eu recordo que largos, praças, vias à beira-mar e transversais do Rio Vermelho eram tomadas por comerciantes de bebida e comida que montavam seus bares nômades, lado a lado, sob barracas de telhado de lona e mesas e bancos de madeira feitos artesanalmente – havia também barraquinhas de tiro ao alvo e outros jogos e parquinho de diversão. Para que não se misturassem com os do vizinho, e não houvesse dúvida sobre qual pertence a quem, cada barraqueiro pintava os tampos de suas mesas e bancos com desenhos geométricos semelhantes que formavam uma composição visual rica ao serem empilhados, uns deitados sobre os outros, durante o dia – estas composições foram objetos de ensaios fotográficos de renomados fotógrafos sobre a cultura popular – antes da festa recomeçar. Sim, porque naqueles tempos, as comemorações à rainha do mar duravam até duas semanas. A parte profana da festa ficava a encargo desses comerciantes temporários, que podiam vender que bebida fosse e cerveja de qualquer marca.

    Havia um quê de improviso, de genuíno, espontaneidade e ingenuidade simplória na organização da festividade, que atraía devotos trazendo as suas oferendas a Iemanjá, foliões e curiosos de todos os bairros da cidade. O dinheiro para a produção da festa ficava por conta do arrecadado no comércio local, da doação de simpatizantes e na venda de camisetas alusivas aos festejos, cujos organizadores eram os pescadores da colônia de pesca do Rio Vermelho. A ajuda financeira da prefeitura era coisa incerta – e quando vinha, era minguada – e só era garantida mesmo em ano de eleição. Quantas foram as vezes que os pescadores penaram para conseguir essa ajuda.

    Algo que eu tenho gravado em minha memória é o perfume adocicado de uma flor branca chamada angélica, que era vendida às centenas ao longo das ruas para que fossem oferecidas a Iemanjá. Não existiam outras, estas eram como se fossem as oficiais para oferenda.

    Quando hoje vejo a superprodução que se tornou a festa de Iemanjá atraindo milhares de pessoas, de não haver espaço para andar, com seu patrocínio de marca de cerveja, a oferta inesgotável dessa marca de bebida à venda no número infinito de vendedores ambulantes com caixas de isopor – estes substituíram os antigos barraqueiros com seus banquinhos e mesas de madeiras coloridos –, suas centenas de festas privadas pagantes em bares e restaurantes, dezenas de palcos de espetáculos musicais para todos os gostos, vendedores de flores – as angélicas foram substituídas por rosas – e outros penduricalhos e o prefeito a jactar-se na mídia sobre os milhões que o município gastou na festança, me pergunto, onde foi parar Iemanjá no meio dessa sandice toda.   

  

       Rio Vermelho, 1 de fevereiro de 2024.

domingo, 7 de janeiro de 2024

E que venha mais um ano novo.

Outro dia uma amiga respondeu à minha mensagem natalina, pelo aplicativo, dizendo que ela estava bem e com muita saúde e resistência às pragas do mundo, e que os idosos da família já estavam se despedindo, mas que já vinha reabastecimento do outro lado, certamente uma alusão aos jovens da família e a outros que já estão a caminho. Esta transição entre o velho e o jovem é um clássico exemplo da repetição do ciclo da vida, que se renova a cada geração.

O inicio de um ano novo é semelhante a esta repetição, visto por quase todos como um recomeço, um novo ciclo que se reinicia e, por isso, aguardado com entusiasmo e esperança por acontecimentos venturosos.

E já no primeiro dia do ano, encontrei casualmente com a filha de um querido casal de amigos. Ela era uma menina a última vez que a vi, e agora é uma mulher feita, carregando uma barriga de seis meses. Os pais, que só vejo em suas peripécias através das redes sociais, estão de cabelos brancos e têm o privilégio de morarem na encantadora Chapada Diamantina. O pai veio da Alemanha há muitos anos e agora a filha é que mora lá. É a nova geração que faz o caminho de volta, como ela mesma disse.

A mensagem de minha amiga e o reencontro com a filha de meus amigos para mim trazem esse significado de renovação pessoal que o início de um novo ano apenas representa simbolicamente, embora, o que acontece realmente é que o dia 10 do primeiro mês do ano é apenas uma continuação no tempo do dia 31 do último mês do ano que passou. Sem nenhum romantismo, é só uma troca da folhinha velha pela nova, pendurada na parede. Se alguma coisa tiver que mudar de verdade, cabe a cada um de nós fazer esta mudança manualmente e não esperar pelo automático. Algumas pessoas aderem a uma lista de resoluções para o ano novo e merecem aplausos por conseguirem cumpri-la, mesmo que não totalmente, ao passo que outras apenas repetem a lista do ano passado, que é uma cópia idêntica à do ano anterior.

Para todos aqueles que têm me acompanhado neste blog ao longo dos anos, desejo de coração que realizem as suas listas, caso as tenham feito, e, para aqueles que não são tão sistemáticos, desejo o mesmo sucesso também. O meu melhor abraço para todos e feliz ano-novo.

 

Rio Vermelho, 2 de janeiro de 2024.

 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O Papai Noel Sujo

Esse personagem é recorrente em minhas crônicas. Trata-se de um pedinte aqui do Rio Vermelho, possivelmente um morador de rua; mais um como, tantos outros que povoam as nossas cidades grandes, e vão aumentando em número e se proliferando, mas ainda assim continuam invisíveis aos olhos indiferentes do poder público.

O Rio Vermelho, por ser um bairro aprazível e muito frequentado por turistas, está cheio deles, quero dizer, de pedintes, talvez porque a prefeitura entenda que isso dá um sabor pitoresco à experiência de visitar a nossa cidade.

Como eu e você, o meu pedinte deve ter um nome, mas como nunca nos apresentamos formalmente, ignoro como se chama. Mas tenho observado como ele aborda transeuntes, os comensais dos bares ao ar livre e entra nos estabelecimentos, como na sorveteria em que me encontro escrevendo essa crônica neste exato momento, e pede algum dinheiro – não digo trocado, pois ele já tem uma tabela, começa por pedir uma nota graúda e vai reduzindo a sua ambição até, na maioria das vezes, sair de mão limpa. Como lhe é negado a esmola, com a desculpa de que a conta será paga com o cartão, ele se demonstra ágil de raciocínio, apesar de pobre, mas não é burro, e, num derradeiro apelo, pede então um sorvete, obviamente a ser pago no cartão. Pego de surpresa, o burguês rende-se à insistência e astúcia do pedinte, e fala à atendente do balcão para incluir mais um sorvete na conta.

O nosso pedinte é lembrado aqui na sorveteria não apenas por sua frequência ao estabelecimento – ele vem um dia sim e no outro também, pelo menos duas vezes – mas pela catinga que trás consigo quando adentra o estabelecimento. Ele exala o odor de quem não vê água com frequência, para não dizer quase nunca, aquele azedume suarento que nos provoca repulsa pelo semelhante menos afortunado. Talvez para se ver livre dele – e de seu fedor –, as pessoas sucumbem ao seu pedido.

Outro dia ele apareceu aqui na sorveteria carregando um grande saco plástico preto às costas, cheio de coisas dentro, provavelmente latinhas vazias para serem vendidas à reciclagem. Na cabeça, um chapéu de Papai Noel nos lembrava do tal espírito natalino que devemos ter nessa época do ano, seja lá o que isso seja, mas pelo menos uma vez por ano. Ao invés de sair distribuindo presentes, como se espera do Papai Noel, ele saiu pedindo aos clientes que estavam na sorveteria e, no final, saiu com as mãos tão vazias quanto quando aqui entrara, exceto pelo saco de lixo que carregava. Nem um sorvete ele conseguiu levar dessa vez, que espirito natalino é só para os parentes mais próximos, e olhe lá.

Feliz Natal a todos.


Rio Vermelho, 21 de dezembro de 2023.


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Nova forma de trabalho

Eu sou um daqueles milhares de usuários que todos os dias embarcam em transportes públicos. Já tive automóvel, mas não só o alto custo para manter esse conforto urbano, a falta de real necessidade de possuí-lo para desempenhar tarefas do meu cotidiano, como o aumento dos congestionamentos na cidade e a dificuldade para estacionanar, fizeram eu me tornar um sem-carro – fora as questões ambientais intrínsecas ao uso de automóvel. Ao pôr na balança as vantagens e desvantagens de ter um automóvel, confesso que me livrei de um problema a menos em minha vida. Eu sempre vi o carro como um eletrodoméstico, como um fogão, geladeira ou liquidificador, só me serve para que me leve de um lugar a outro, e de modo algum como um símbolo de status social ou forma de investimento. Por isso, sempre que preciso ir a algum lugar distante, pego um ônibus ou metrô, e se estou com pressa, a poucos passos de minha casa existe um ponto de taxi, que me poupa de esperar por transporte por aplicativo, que motorista de taxi, além de não se recusar a fazer qualquer viagem, conhece a cidade como a palma da própria mão.

O inconveniente do transporte público não é a demora da viagem, quem se planeja, não chega atrasado, mas o entra e sai de vendedores ambulantes e pedintes. Esse pessoal fala alto para ser ouvido dentro do coletivo e quando descem do ônibus, já entra outro com a mesma falação interminável e repetitiva. Isso enche o recipiente, como diria o meu pai.

Já no metrô é outra coisa, uma voz feminina, de entonação corporativa, anuncia que atividades de vendedores ambulantes, pedintes, pregadores religiosos, de partidos, de sindicatos e até assaltantes profissionais são proibidas. Então viaja-se com mais tranquilidade, dá até para ler algumas páginas de um livro, sem ser perturbado pelo falatório.

Mas vivemos num país em que leis foram feitas para irem parar no cesto do lixo. Onde há uma proibição, é certo que haverá um infrator, alguém que vive segundo a crença de que leis foram feitas para não serem cumpridas. Não é à toa que estamos nessa zorra total.

Outro dia, lá ia eu num trem do metrô, na hora próxima do almoço, então é possível imaginar a aglomeração de gente de pé, porque os assentos estavam todos tomados – mas não era nem de longe o aperto que é num ônibus do BRT, nos empurrado como sinônimo de transporte de conforto, onde, na verdade, não há nem espaço para se soltar um pum. –, então eu ouvi um vozerio no vagão onde eu estava. Era uma senhora pedindo dinheiro. Ela tentava circular entre os passageiros de pé no vagão, o que não era uma tarefa fácil, uma vez que estava lotado. Então ela abria caminho falando assim:

— Com licença… Com licença… Por favor, deixa eu passar que eu estou trabalhando.

Aquela declaração me surpreendeu. Ora essa, desde quando pedir virou trabalho? Para uma população na margem da miséria, que não encontra vez nos programas de benefícios sociais do governo, pedir tem sido a única solução. Pessoas acordam todas as manhãs com o estômago vazio e vão para as ruas em busca de solidariedade, para não passarem fome. É claro que há aqueles que simplesmente preferem pedir a procurar por um trabalho de verdade, mesmo que seja de vendedor ambulante. Trabalho ou não, é inegável que pedir é uma atividade lucrativa, livre de impostos e despesas. Um pedinte obstinado consegue ganhar mais que um assalariado de carteira assinada, por hora de trabalho. Mas fica a questão, se todos nos tornamos pedintes, quem irá trabalhar para sustentar essa multidão? 

 

Rio Vermelho, 30 de outubro de 2023. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

As baleias do Rio Vermelho

Antes mesmo de Cabral errar o caminho e vir tomar posse dessas paragens, as baleias já cruzavam as praias do Rio Vermelho, que ainda não tinha essa rubra designação – graças ao empenho da Embasa, a empresa pública de saneamento sanitário, no entanto, deveria trocar o nome para Rio Escuro e Fedorento. Antigos moradores do bairro, contam, como se fosse a coisa mais trivial do mundo, ver baleias passar de lá para cá, sem anunciar o seu rumo. Os pescadores de praia já viram centenas e têm isso como um fato tão comum quanto a presença dos xaréus que pescam em dia que a maré está alta.

Eu nunca vi uma baleia em minha vida que não fosse na revista ou no cinema, mas dona Zulmira, a vendedora de água de coco instalada em frente ao Mirante da Paciência, já teve esse privilégio. Foi outro dia, ela me contou, olhou pro mar e lá estavam duas! Mergulhavam exibindo a enorme cauda e esguichavam água quando voltavam à superfície. Uma coisa linda de se ver, segundo suas palavras. No início, ficou impressionada com o tamanho dos peixes, mas depois caiu em si e concluiu que eram baleias. “Baleia não é peixe, é?, me perguntou, e eu não soube o que responder. Era uma tarde de dia de semana, com o sol fazendo um calor de lascar, por isso poucos testemunharam a visita inesperada dos cetáceos. De agora em diante, torce para ver outras, e até passou a se arriscar, trazendo o celular para gravá-las em vídeo, caso reapareçam, para mostrar aos netos. Espera que isso aconteça antes de os vagabundos levarem-lhe o cobiçado aparelho.

Já houve época em que a costa era abundante de peixes e baleias, assim como a Mata Atlântica chegava até a beira da praia, e os tupinambás que banhavam-se nessas águas, vez por outra tinham a grata satisfação de almoçar um europeu gorducho. Mas isso faz muito tempo, e hoje em dia a carne humana é imprópria para consumo, cheia que é de aditivos químicos.

Mas voltando às baleias do Rio Vermelho, o seu retorno à costa em maior frequência, motivou a prefeitura do município pôr uma horrenda representação pretensamente realística de uma cauda de baleia e declarar o mirante da Paciência um observatório do gigantesco e belo animal aquático. Como é necessária bastante paciência até que uma baleia (ou duas) dê o ar da graça, a prefeitura deveria também ter reposto os bancos de madeira que foram surrupiados do local, para que os curiosos aguardem sentados pelo aparecimento delas, uma vez que esperar de pé cansa! Fica aqui a sugestão.

 

Rio Vermelho, 11 de outubro de 2023.  


terça-feira, 29 de agosto de 2023

O pedinte pidão

Este é aquele mesmo meu conhecido pedinte que certa noite cruzou em meu caminho quatro vezes no Rio Vermelho e em todas elas me pediu um dinheiro, um senhor já idoso e que me chama de tio (Perdidos na noite, em 20 de dezembro de 2019). Ele inovou no hábito de pedir ao ter a sua própria tabela. Não apenas pede por algum trocado perdido no bolso, começa com um valor alto e vai reduzindo à medida que o abordado vai lhe negando o óbolo, até chegar aos parcos centavos; isso faz dele um insistente (mas ainda não recebe por Pix). Seu território de atuação não se restringe ao meu bairro, onde, por suas características praianas, parece ser um local aprazível ao trabalho de pedir e, por isso, a concorrência é grande aqui, já trombei com ele em locais distantes, até dentro de shopping center!

Eu disse que pedir é um trabalho, porque foi isso mesmo que ouvi alguém dizer claramente outro dia. Uma pedinte ia dentro de um vagão de metrô, que, apesar de ser um local proibido às práticas de pedir, vender e apregoar, nada impede que a pessoa faça isso até ser expulsa pelos seguranças ‒ só Deus sabe de que modo. Enquanto ela contava uma já manjada história triste de amolecer corações para angariar trocados, ela pedia para abrirem espaço para poder passar entre os viajantes do vagão lotado. “Por favor, deixa eu passar que eu estou trabalhando”, ela dizia, impaciente, enquanto ia recolhendo dinheiro.

Talvez você não acredite, faça as contas aí, pedir é mais profícuo que trabalhar. Em quinze minutos pedindo dentro de um coletivo, ganha-se mais que um assalariado em uma hora de trabalho de carteira assinada, livre de encargos e de um patrão biltre! Haja gente de bom coração para sustentar tantos pedintes.

Voltando ao meu conhecido pedinte, que já não me dirige a palavra, me ignora totalmente, pois nunca dou-lhe um centavo, uma vez que faço uso deles também. Faça aí as contas novamente; cruzo com ele num dia sim e no outro também, quanto que isso me custaria, levando em consideração que sou abordado uma dúzia de vezes diariamente por outros colegas dele de profissão? Deve ser por causa dessa miserável cara paxá que eu tenho. Pois bem, ele é habitué da mesma sorveteria em que costumo vir todas as tardes com o meu notebook para escrever textos como esse, um local refinado e agradável para trabalhar. Vai de cliente em cliente com a mesma lenga lenga e, no final, ganha mais que eu escrevendo, posso lhe assegurar.

Outro dia ele adentrou a sorveteria, as funcionárias o viram e torceram o nariz. É que o ambiente é fechado por causa do ar-refrigerado, e o odor que o senhor carrega consigo por falta de banho diário desbanca o aroma água-de-colônia do local e agride o olfato. Desta vez o seu alvo foi um homem alinhado, parecia um turista.

— O senhor me dá cinco reais?

— Eu não tenho – respondeu o turista, visivelmente interessado em seu sorvete.

— Dois reais? – insistiu o pedinte.

— Também não tenho.

— Cinquenta centavos?

— Eu não ando com dinheiro, rapaz – explicou o turista.

Já impaciente, o pedinte arriscou:

— Nem um sorvete?

Para minha surpresa, que assistia à cena curioso, o turista respondeu:

— Já um sorvete eu posso dar um jeito. Pede à moça do balcão, que eu pago no cartão.

— Tá fazendo calor – o pedinte se abanou.

Naquele mesmo dia, horas depois, como sempre fazia, ele retornou para uma nova rodada. Desta vez abordou uma moça, que se lambuzava de sorvete. Como sempre, ele começou a pedir seguindo a sua tabela de valores, e como a moça negou até qualquer tostão, ele arriscou novamente.

— Nem um sorvete?

A moça arregalou os olhos (o sorvete mais barato é de arregalar os olhos nessa sorveteria, razão pela qual raramente me dou ao luxo).

— E nem um sorvete! Mas só faltava essa – ela respondeu, surpresa.

O pedinte resmungou alguma coisa que descrevia o seu desgosto e deu meia volta para ir embora. Aí é abusar da sorte, disse a mim mesmo.

 

 

Rio Vermelho, 29 de agosto de 2023.

       

 

 


quinta-feira, 27 de julho de 2023

Rápido como quem rouba

Nem bem se desbotava de minha memória a lembrança das semanas de arrastões desenfreados no Rio Vermelho, ocorreu um fato que reacendeu em mim o medo que é andar pelas ruas de Salvador, a qualquer hora do dia ou da noite.

Eu estava chegando cedo ao centro da cidade, numa hora em que as lojas ainda estavam fechadas, mas não faltavam mais que quinze minutos para que o comércio abrisse ao público. Ônibus em que eu ia virou no Politeama e vi pelo rabo do olho, no lado de fora do veículo, uma pessoa que corria feito uma bala. Aquilo me chamou a atenção e virei-me para o lado para observar melhor. Era uma corrida desesperada, que estava longe de ser um mero exercício físico matinal, coisa de atleta. Não demorei para tirar conclusões sobre que tanta pressa seria aquela.

O coletivo parou e desci no primeiro ponto do Politeama. Mal pus os pés na calçada, um vulto entrou pela porta em que eu saía; a porta dos fundos é usada para sair e não para entrar no ônibus. Era um jovem que não tina intenção alguma de pagar pela passagem, como fazem aqueles que entram pela saída do ônibus. Virei-me, já na calçada, e ele também, como se pretendesse sair do ônibus, embora a sua intenção fosse a de fazê-lo em outra parada. Ele fez uma expressão aliviada, soltou um “ufa” e revirou os olhos enquanto enfiava no cós da bermuda um grande aparelho celular que só agora eu percebia que tinha na mão. A porta do ônibus de fechou e me dei conta do que estava acontecendo.

Não demorou muito e veio correndo em minha direção uma jovem com a expressão de desespero estampada no rosto. Logo atrás dela corriam outros populares, provavelmente solidários a ela, ou meros curiosos em busca de assistir a uma confusão.

“Ele entrou no ônibus”, gritei para a vítima, a jovem.

Ela continuou correndo e seguiu o ônibus que parou a dois metros de onde partira, por causa do semáforo que fechou o trânsito. Bateu seguidas vezes na porta de saída do ônibus, que se abriu para que ela entrasse. Ao mesmo tempo que por uma das janelas do lado oposto, o jovem ladrão de celular pulava em fuga numa cena espetacular. Correu entre os carros e sumiu de nossas vistas. Dentro do ônibus ouvi gritos de regozijo; para evitar a perseguição da moça obstinada, o delinquente deixou para trás o celular.

Aquele foi só mais um percalço da vida de um ladrão. Ele deu a volta no quarteirão o voltou ao seu posto de tocaia, à espera da próxima vítima, fato que acontece um minuto sim e outro também na insegura Salvador. Já se foi o tempo em que esta era a terra da felicidade.

 

Rio Vermelho, 27 de julho de 2023.

 

 

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Se vai soltar, pra quê prender?

A faxineira veio me contar uma coisa dias a trás, no seu dia aqui em casa. Sempre tão bem humorada, Lindalva ‒ nome fictício para Lindalva ‒estava muito aborrecida. O marido, que faz consertos e arremedos em eletrodomésticos, tinha sido assaltado naquela fatídica manhã, a caminho da padaria.

Como é de se imaginar, só levaram-lhe o aparelho de celular o queridinho dos assaltantes da atualidade, já se foi o tempo em que levar uma correntinha de ouro era um bom negócio, um celular de configurações avançadas é liquidez imediata! ‒, com apenas três meses de uso e ainda sete prestações futuras para quitá-lo. Doloroso ter um bem tão necessário hoje em dia roubado, e ainda mais sacrificar-se para pagá-lo sem mais possuí-lo.

Quem já teve o celular roubado sabe muito bem a aporrinhação que é recuperar as informações contidas no antigo, trocar senhas desse e daquele aplicativo, reaver contatos profissionais e afetivos, chorar por todas as lindas fotos de pores do sol perdidas para sempre, enfim, um pesadelo. Em se tratando de um trabalhar autônomo como o marido da fictícia Lindalva, isso pode significar a sua ruina por algum tempo, uma vez que a sua empresa estava contida no miserável aparelhinho.

Na semana seguinte, ela me atualizou sobre a tragédia de seu consorte ‒ ela é a rainha do lar e proprietária da casa onde moram: inconformado, o marido foi se queixar com as autoridades locais. Eles moram lá para as bandas de Periperi, zona sob a jurisdição de uma facção do tráfico. Assaltos na região são proibidos pela tal facção ‒ não se rouba vizinho e ponto final ‒, por isso o aparelho foi devolvido em menos de 24 horas, com um pedido de desculpas. Não duvido que o assaltante tenha sido julgado na mesma hora e sentenciado no instante seguinte e a pena executada no mesmo fôlego. Melhor assim, o meio ambiente agradece a economia com papelada e burocracia.

Enquanto isso, no Rio Vermelho, onde os aluguéis são pela hora da morte e o IPTU doe no bolso como uma nevralgia dental num feriado prolongado, os assaltos foram autorizados pela facção que comanda o bairro. Fizeram um arrastão aqui semana passada. Cinco amigos já tiveram os seus celulares levados ‒ fora os casos que sei só de ouvir falar ‒, um deles está pagando simultaneamente as prestações de três aparelhos! A vendedora da loja de celular quando o vê adentrando a loja, o recebe com um largo sorriso de satisfação e braços abertos e a seguinte saudação: “Meu cliente favorito!”. Cada vez que vai embora, o coitado leva um aparelho mais caro e sofisticado. Estou torcendo para que este não levem antes de ele quitá-lo.

Uma senhora muito distinta e benfeitora aqui do bairro foi uma das vítimas desse bem sucedido arrastão. Levaram-lhe a Vuitton com celular e tudo dentro ‒ o assaltante mal sabia que a bolsa valia quarenta vezes mais que o caríssimo aparelho de celular. Tal é o apreço que ela merece de nossa comunidade, que a notícia se espalhou pelo bairro como fogo no mato seco. “Dona Menina foi assaltada!"

A polícia foi acionada e mostrou serviço. Em menos de duas horas a rica bolsa e o seu conteúdo foram devolvidos intactos à proprietária e o assaltante, um notório vagabundo aqui das redondezas do largo de Santana, onde se deu o incidente, preso em flagrante, foi parar na delegacia. O caso todo poderia ter sido dado por encerrado e uma demonstração da eficiência de nossa polícia celebrada. Mas infelizmente o trabalho da polícia parece um conto saído de um livro de Kafka; mais adiante explico melhor. Dois dias depois, quem foi visto serelepe no largo de Santana? Escondam suas bolsas e celulares!

Essa situação complexa é fácil de entender: a polícia tem a insensata tarefa de enxugar gelo no molhado. Isto porque, como se legisla em causa própria nesse país, as leis foram feitas para manter os bandidos fora da cadeia e suas vítimas aprisionadas na revolta pela injustiça e no medo.

 

 

Rio Vermelho, 19 de maio de 2023.