sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O Papai Noel Sujo

Esse personagem é recorrente em minhas crônicas. Trata-se de um pedinte aqui do Rio Vermelho, possivelmente um morador de rua; mais um como, tantos outros que povoam as nossas cidades grandes, e vão aumentando em número e se proliferando, mas ainda assim continuam invisíveis aos olhos indiferentes do poder público.

O Rio Vermelho, por ser um bairro aprazível e muito frequentado por turistas, está cheio deles, quero dizer, de pedintes, talvez porque a prefeitura entenda que isso dá um sabor pitoresco à experiência de visitar a nossa cidade.

Como eu e você, o meu pedinte deve ter um nome, mas como nunca nos apresentamos formalmente, ignoro como se chama. Mas tenho observado como ele aborda transeuntes, os comensais dos bares ao ar livre e entra nos estabelecimentos, como na sorveteria em que me encontro escrevendo essa crônica neste exato momento, e pede algum dinheiro – não digo trocado, pois ele já tem uma tabela, começa por pedir uma nota graúda e vai reduzindo a sua ambição até, na maioria das vezes, sair de mão limpa. Como lhe é negado a esmola, com a desculpa de que a conta será paga com o cartão, ele se demonstra ágil de raciocínio, apesar de pobre, mas não é burro, e, num derradeiro apelo, pede então um sorvete, obviamente a ser pago no cartão. Pego de surpresa, o burguês rende-se à insistência e astúcia do pedinte, e fala à atendente do balcão para incluir mais um sorvete na conta.

O nosso pedinte é lembrado aqui na sorveteria não apenas por sua frequência ao estabelecimento – ele vem um dia sim e no outro também, pelo menos duas vezes – mas pela catinga que trás consigo quando adentra o estabelecimento. Ele exala o odor de quem não vê água com frequência, para não dizer quase nunca, aquele azedume suarento que nos provoca repulsa pelo semelhante menos afortunado. Talvez para se ver livre dele – e de seu fedor –, as pessoas sucumbem ao seu pedido.

Outro dia ele apareceu aqui na sorveteria carregando um grande saco plástico preto às costas, cheio de coisas dentro, provavelmente latinhas vazias para serem vendidas à reciclagem. Na cabeça, um chapéu de Papai Noel nos lembrava do tal espírito natalino que devemos ter nessa época do ano, seja lá o que isso seja, mas pelo menos uma vez por ano. Ao invés de sair distribuindo presentes, como se espera do Papai Noel, ele saiu pedindo aos clientes que estavam na sorveteria e, no final, saiu com as mãos tão vazias quanto quando aqui entrara, exceto pelo saco de lixo que carregava. Nem um sorvete ele conseguiu levar dessa vez, que espirito natalino é só para os parentes mais próximos, e olhe lá.

Feliz Natal a todos.


Rio Vermelho, 21 de dezembro de 2023.


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Nova forma de trabalho

Eu sou um daqueles milhares de usuários que todos os dias embarcam em transportes públicos. Já tive automóvel, mas não só o alto custo para manter esse conforto urbano, a falta de real necessidade de possuí-lo para desempenhar tarefas do meu cotidiano, como o aumento dos congestionamentos na cidade e a dificuldade para estacionanar, fizeram eu me tornar um sem-carro – fora as questões ambientais intrínsecas ao uso de automóvel. Ao pôr na balança as vantagens e desvantagens de ter um automóvel, confesso que me livrei de um problema a menos em minha vida. Eu sempre vi o carro como um eletrodoméstico, como um fogão, geladeira ou liquidificador, só me serve para que me leve de um lugar a outro, e de modo algum como um símbolo de status social ou forma de investimento. Por isso, sempre que preciso ir a algum lugar distante, pego um ônibus ou metrô, e se estou com pressa, a poucos passos de minha casa existe um ponto de taxi, que me poupa de esperar por transporte por aplicativo, que motorista de taxi, além de não se recusar a fazer qualquer viagem, conhece a cidade como a palma da própria mão.

O inconveniente do transporte público não é a demora da viagem, quem se planeja, não chega atrasado, mas o entra e sai de vendedores ambulantes e pedintes. Esse pessoal fala alto para ser ouvido dentro do coletivo e quando descem do ônibus, já entra outro com a mesma falação interminável e repetitiva. Isso enche o recipiente, como diria o meu pai.

Já no metrô é outra coisa, uma voz feminina, de entonação corporativa, anuncia que atividades de vendedores ambulantes, pedintes, pregadores religiosos, de partidos, de sindicatos e até assaltantes profissionais são proibidas. Então viaja-se com mais tranquilidade, dá até para ler algumas páginas de um livro, sem ser perturbado pelo falatório.

Mas vivemos num país em que leis foram feitas para irem parar no cesto do lixo. Onde há uma proibição, é certo que haverá um infrator, alguém que vive segundo a crença de que leis foram feitas para não serem cumpridas. Não é à toa que estamos nessa zorra total.

Outro dia, lá ia eu num trem do metrô, na hora próxima do almoço, então é possível imaginar a aglomeração de gente de pé, porque os assentos estavam todos tomados – mas não era nem de longe o aperto que é num ônibus do BRT, nos empurrado como sinônimo de transporte de conforto, onde, na verdade, não há nem espaço para se soltar um pum. –, então eu ouvi um vozerio no vagão onde eu estava. Era uma senhora pedindo dinheiro. Ela tentava circular entre os passageiros de pé no vagão, o que não era uma tarefa fácil, uma vez que estava lotado. Então ela abria caminho falando assim:

— Com licença… Com licença… Por favor, deixa eu passar que eu estou trabalhando.

Aquela declaração me surpreendeu. Ora essa, desde quando pedir virou trabalho? Para uma população na margem da miséria, que não encontra vez nos programas de benefícios sociais do governo, pedir tem sido a única solução. Pessoas acordam todas as manhãs com o estômago vazio e vão para as ruas em busca de solidariedade, para não passarem fome. É claro que há aqueles que simplesmente preferem pedir a procurar por um trabalho de verdade, mesmo que seja de vendedor ambulante. Trabalho ou não, é inegável que pedir é uma atividade lucrativa, livre de impostos e despesas. Um pedinte obstinado consegue ganhar mais que um assalariado de carteira assinada, por hora de trabalho. Mas fica a questão, se todos nos tornamos pedintes, quem irá trabalhar para sustentar essa multidão? 

 

Rio Vermelho, 30 de outubro de 2023. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

As baleias do Rio Vermelho

Antes mesmo de Cabral errar o caminho e vir tomar posse dessas paragens, as baleias já cruzavam as praias do Rio Vermelho, que ainda não tinha essa rubra designação – graças ao empenho da Embasa, a empresa pública de saneamento sanitário, no entanto, deveria trocar o nome para Rio Escuro e Fedorento. Antigos moradores do bairro, contam, como se fosse a coisa mais trivial do mundo, ver baleias passar de lá para cá, sem anunciar o seu rumo. Os pescadores de praia já viram centenas e têm isso como um fato tão comum quanto a presença dos xaréus que pescam em dia que a maré está alta.

Eu nunca vi uma baleia em minha vida que não fosse na revista ou no cinema, mas dona Zulmira, a vendedora de água de coco instalada em frente ao Mirante da Paciência, já teve esse privilégio. Foi outro dia, ela me contou, olhou pro mar e lá estavam duas! Mergulhavam exibindo a enorme cauda e esguichavam água quando voltavam à superfície. Uma coisa linda de se ver, segundo suas palavras. No início, ficou impressionada com o tamanho dos peixes, mas depois caiu em si e concluiu que eram baleias. “Baleia não é peixe, é?, me perguntou, e eu não soube o que responder. Era uma tarde de dia de semana, com o sol fazendo um calor de lascar, por isso poucos testemunharam a visita inesperada dos cetáceos. De agora em diante, torce para ver outras, e até passou a se arriscar, trazendo o celular para gravá-las em vídeo, caso reapareçam, para mostrar aos netos. Espera que isso aconteça antes de os vagabundos levarem-lhe o cobiçado aparelho.

Já houve época em que a costa era abundante de peixes e baleias, assim como a Mata Atlântica chegava até a beira da praia, e os tupinambás que banhavam-se nessas águas, vez por outra tinham a grata satisfação de almoçar um europeu gorducho. Mas isso faz muito tempo, e hoje em dia a carne humana é imprópria para consumo, cheia que é de aditivos químicos.

Mas voltando às baleias do Rio Vermelho, o seu retorno à costa em maior frequência, motivou a prefeitura do município pôr uma horrenda representação pretensamente realística de uma cauda de baleia e declarar o mirante da Paciência um observatório do gigantesco e belo animal aquático. Como é necessária bastante paciência até que uma baleia (ou duas) dê o ar da graça, a prefeitura deveria também ter reposto os bancos de madeira que foram surrupiados do local, para que os curiosos aguardem sentados pelo aparecimento delas, uma vez que esperar de pé cansa! Fica aqui a sugestão.

 

Rio Vermelho, 11 de outubro de 2023.  


terça-feira, 29 de agosto de 2023

O pedinte pidão

Este é aquele mesmo meu conhecido pedinte que certa noite cruzou em meu caminho quatro vezes no Rio Vermelho e em todas elas me pediu um dinheiro, um senhor já idoso e que me chama de tio (Perdidos na noite, em 20 de dezembro de 2019). Ele inovou no hábito de pedir ao ter a sua própria tabela. Não apenas pede por algum trocado perdido no bolso, começa com um valor alto e vai reduzindo à medida que o abordado vai lhe negando o óbolo, até chegar aos parcos centavos; isso faz dele um insistente (mas ainda não recebe por Pix). Seu território de atuação não se restringe ao meu bairro, onde, por suas características praianas, parece ser um local aprazível ao trabalho de pedir e, por isso, a concorrência é grande aqui, já trombei com ele em locais distantes, até dentro de shopping center!

Eu disse que pedir é um trabalho, porque foi isso mesmo que ouvi alguém dizer claramente outro dia. Uma pedinte ia dentro de um vagão de metrô, que, apesar de ser um local proibido às práticas de pedir, vender e apregoar, nada impede que a pessoa faça isso até ser expulsa pelos seguranças ‒ só Deus sabe de que modo. Enquanto ela contava uma já manjada história triste de amolecer corações para angariar trocados, ela pedia para abrirem espaço para poder passar entre os viajantes do vagão lotado. “Por favor, deixa eu passar que eu estou trabalhando”, ela dizia, impaciente, enquanto ia recolhendo dinheiro.

Talvez você não acredite, faça as contas aí, pedir é mais profícuo que trabalhar. Em quinze minutos pedindo dentro de um coletivo, ganha-se mais que um assalariado em uma hora de trabalho de carteira assinada, livre de encargos e de um patrão biltre! Haja gente de bom coração para sustentar tantos pedintes.

Voltando ao meu conhecido pedinte, que já não me dirige a palavra, me ignora totalmente, pois nunca dou-lhe um centavo, uma vez que faço uso deles também. Faça aí as contas novamente; cruzo com ele num dia sim e no outro também, quanto que isso me custaria, levando em consideração que sou abordado uma dúzia de vezes diariamente por outros colegas dele de profissão? Deve ser por causa dessa miserável cara paxá que eu tenho. Pois bem, ele é habitué da mesma sorveteria em que costumo vir todas as tardes com o meu notebook para escrever textos como esse, um local refinado e agradável para trabalhar. Vai de cliente em cliente com a mesma lenga lenga e, no final, ganha mais que eu escrevendo, posso lhe assegurar.

Outro dia ele adentrou a sorveteria, as funcionárias o viram e torceram o nariz. É que o ambiente é fechado por causa do ar-refrigerado, e o odor que o senhor carrega consigo por falta de banho diário desbanca o aroma água-de-colônia do local e agride o olfato. Desta vez o seu alvo foi um homem alinhado, parecia um turista.

— O senhor me dá cinco reais?

— Eu não tenho – respondeu o turista, visivelmente interessado em seu sorvete.

— Dois reais? – insistiu o pedinte.

— Também não tenho.

— Cinquenta centavos?

— Eu não ando com dinheiro, rapaz – explicou o turista.

Já impaciente, o pedinte arriscou:

— Nem um sorvete?

Para minha surpresa, que assistia à cena curioso, o turista respondeu:

— Já um sorvete eu posso dar um jeito. Pede à moça do balcão, que eu pago no cartão.

— Tá fazendo calor – o pedinte se abanou.

Naquele mesmo dia, horas depois, como sempre fazia, ele retornou para uma nova rodada. Desta vez abordou uma moça, que se lambuzava de sorvete. Como sempre, ele começou a pedir seguindo a sua tabela de valores, e como a moça negou até qualquer tostão, ele arriscou novamente.

— Nem um sorvete?

A moça arregalou os olhos (o sorvete mais barato é de arregalar os olhos nessa sorveteria, razão pela qual raramente me dou ao luxo).

— E nem um sorvete! Mas só faltava essa – ela respondeu, surpresa.

O pedinte resmungou alguma coisa que descrevia o seu desgosto e deu meia volta para ir embora. Aí é abusar da sorte, disse a mim mesmo.

 

 

Rio Vermelho, 29 de agosto de 2023.

       

 

 


quinta-feira, 27 de julho de 2023

Rápido como quem rouba

Nem bem se desbotava de minha memória a lembrança das semanas de arrastões desenfreados no Rio Vermelho, ocorreu um fato que reacendeu em mim o medo que é andar pelas ruas de Salvador, a qualquer hora do dia ou da noite.

Eu estava chegando cedo ao centro da cidade, numa hora em que as lojas ainda estavam fechadas, mas não faltavam mais que quinze minutos para que o comércio abrisse ao público. Ônibus em que eu ia virou no Politeama e vi pelo rabo do olho, no lado de fora do veículo, uma pessoa que corria feito uma bala. Aquilo me chamou a atenção e virei-me para o lado para observar melhor. Era uma corrida desesperada, que estava longe de ser um mero exercício físico matinal, coisa de atleta. Não demorei para tirar conclusões sobre que tanta pressa seria aquela.

O coletivo parou e desci no primeiro ponto do Politeama. Mal pus os pés na calçada, um vulto entrou pela porta em que eu saía; a porta dos fundos é usada para sair e não para entrar no ônibus. Era um jovem que não tina intenção alguma de pagar pela passagem, como fazem aqueles que entram pela saída do ônibus. Virei-me, já na calçada, e ele também, como se pretendesse sair do ônibus, embora a sua intenção fosse a de fazê-lo em outra parada. Ele fez uma expressão aliviada, soltou um “ufa” e revirou os olhos enquanto enfiava no cós da bermuda um grande aparelho celular que só agora eu percebia que tinha na mão. A porta do ônibus de fechou e me dei conta do que estava acontecendo.

Não demorou muito e veio correndo em minha direção uma jovem com a expressão de desespero estampada no rosto. Logo atrás dela corriam outros populares, provavelmente solidários a ela, ou meros curiosos em busca de assistir a uma confusão.

“Ele entrou no ônibus”, gritei para a vítima, a jovem.

Ela continuou correndo e seguiu o ônibus que parou a dois metros de onde partira, por causa do semáforo que fechou o trânsito. Bateu seguidas vezes na porta de saída do ônibus, que se abriu para que ela entrasse. Ao mesmo tempo que por uma das janelas do lado oposto, o jovem ladrão de celular pulava em fuga numa cena espetacular. Correu entre os carros e sumiu de nossas vistas. Dentro do ônibus ouvi gritos de regozijo; para evitar a perseguição da moça obstinada, o delinquente deixou para trás o celular.

Aquele foi só mais um percalço da vida de um ladrão. Ele deu a volta no quarteirão o voltou ao seu posto de tocaia, à espera da próxima vítima, fato que acontece um minuto sim e outro também na insegura Salvador. Já se foi o tempo em que esta era a terra da felicidade.

 

Rio Vermelho, 27 de julho de 2023.

 

 

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Se vai soltar, pra quê prender?

A faxineira veio me contar uma coisa dias a trás, no seu dia aqui em casa. Sempre tão bem humorada, Lindalva ‒ nome fictício para Lindalva ‒estava muito aborrecida. O marido, que faz consertos e arremedos em eletrodomésticos, tinha sido assaltado naquela fatídica manhã, a caminho da padaria.

Como é de se imaginar, só levaram-lhe o aparelho de celular o queridinho dos assaltantes da atualidade, já se foi o tempo em que levar uma correntinha de ouro era um bom negócio, um celular de configurações avançadas é liquidez imediata! ‒, com apenas três meses de uso e ainda sete prestações futuras para quitá-lo. Doloroso ter um bem tão necessário hoje em dia roubado, e ainda mais sacrificar-se para pagá-lo sem mais possuí-lo.

Quem já teve o celular roubado sabe muito bem a aporrinhação que é recuperar as informações contidas no antigo, trocar senhas desse e daquele aplicativo, reaver contatos profissionais e afetivos, chorar por todas as lindas fotos de pores do sol perdidas para sempre, enfim, um pesadelo. Em se tratando de um trabalhar autônomo como o marido da fictícia Lindalva, isso pode significar a sua ruina por algum tempo, uma vez que a sua empresa estava contida no miserável aparelhinho.

Na semana seguinte, ela me atualizou sobre a tragédia de seu consorte ‒ ela é a rainha do lar e proprietária da casa onde moram: inconformado, o marido foi se queixar com as autoridades locais. Eles moram lá para as bandas de Periperi, zona sob a jurisdição de uma facção do tráfico. Assaltos na região são proibidos pela tal facção ‒ não se rouba vizinho e ponto final ‒, por isso o aparelho foi devolvido em menos de 24 horas, com um pedido de desculpas. Não duvido que o assaltante tenha sido julgado na mesma hora e sentenciado no instante seguinte e a pena executada no mesmo fôlego. Melhor assim, o meio ambiente agradece a economia com papelada e burocracia.

Enquanto isso, no Rio Vermelho, onde os aluguéis são pela hora da morte e o IPTU doe no bolso como uma nevralgia dental num feriado prolongado, os assaltos foram autorizados pela facção que comanda o bairro. Fizeram um arrastão aqui semana passada. Cinco amigos já tiveram os seus celulares levados ‒ fora os casos que sei só de ouvir falar ‒, um deles está pagando simultaneamente as prestações de três aparelhos! A vendedora da loja de celular quando o vê adentrando a loja, o recebe com um largo sorriso de satisfação e braços abertos e a seguinte saudação: “Meu cliente favorito!”. Cada vez que vai embora, o coitado leva um aparelho mais caro e sofisticado. Estou torcendo para que este não levem antes de ele quitá-lo.

Uma senhora muito distinta e benfeitora aqui do bairro foi uma das vítimas desse bem sucedido arrastão. Levaram-lhe a Vuitton com celular e tudo dentro ‒ o assaltante mal sabia que a bolsa valia quarenta vezes mais que o caríssimo aparelho de celular. Tal é o apreço que ela merece de nossa comunidade, que a notícia se espalhou pelo bairro como fogo no mato seco. “Dona Menina foi assaltada!"

A polícia foi acionada e mostrou serviço. Em menos de duas horas a rica bolsa e o seu conteúdo foram devolvidos intactos à proprietária e o assaltante, um notório vagabundo aqui das redondezas do largo de Santana, onde se deu o incidente, preso em flagrante, foi parar na delegacia. O caso todo poderia ter sido dado por encerrado e uma demonstração da eficiência de nossa polícia celebrada. Mas infelizmente o trabalho da polícia parece um conto saído de um livro de Kafka; mais adiante explico melhor. Dois dias depois, quem foi visto serelepe no largo de Santana? Escondam suas bolsas e celulares!

Essa situação complexa é fácil de entender: a polícia tem a insensata tarefa de enxugar gelo no molhado. Isto porque, como se legisla em causa própria nesse país, as leis foram feitas para manter os bandidos fora da cadeia e suas vítimas aprisionadas na revolta pela injustiça e no medo.

 

 

Rio Vermelho, 19 de maio de 2023.

 

sábado, 4 de março de 2023

Morreu numa batucada de samba

Claudionor Paranhos, o Cacau do Alto da Alegria, era do tempo em que o folião amanhecia dormindo num banco de praça no Campo Grande, e não lhe roubavam a carteira enquanto dormia. Não é saudosismo, é só para mostrar como eram as coisas naqueles antigos carnavais.

Há muito Cacau não ia na avenida ou se ia era apenas para rir dos solitários foliões em suas fantasias engraçadas e inventivas ou para ver a saída dos pequenos blocos e suas músicas irreverentes, resquícios de um tempo ingênuo e sem ambições comerciais, quando a espontaneidade valia mais que o compromisso de se estar alegre durante todo o tempo no carnaval.

Mas do que ele gostava era do samba, aí ele batucava o ano inteiro, tocava o velho tamborim, companheiro de longas datas. Reunia-se com os camaradas nas tardes de sábado na varanda do bar do Jajá, e a roda de samba ia pela noite adentro. Mas não era um grande evento ou um que atraísse uma multidão, além do grupo da batucada e alguns que acompanhavam a música enquanto sambavam. Apesar de já ter chegado aos oitenta, e com a saúde que cambaleava, sua voz ainda era firme, e firme, também, era a sua batida no tamborim.

No sábado de carnaval, a turma reuniu-se, como de costume, e quem não quis ir para o circuito carnavalesco, fez a folia ali, no bar do Jajá. Dessa vez o público era bem maior, talvez umas cem pessoas, porque, afinal, era carnaval. Aquela agitação fez Cacau sentir-se em plena forma, todos estavam alegres, alguns já tinham bebido tanto que só acompanhavam o samba sentados.

A noite já ia alta, quando os efeitos das horas de batuque fez-se sentir no velho corpo de Cacau. Foi quando ele anunciou:

― Esta é a última!

Mas alguém lá no fundo do bar gritou:

― Nunca diga que é a última, que dá azar. Diga que é a penúltima.

Cacau bateu com a cabeça em concordância e respondeu com um sorriso cansado, embora não acreditasse em superstições. Em seguida começou a entoar um de seus sambas favoritos, sempre guardados para encerrar a sua participação na batucada. Ele puxou a cantoria e todos juntaram-se a ele.

“Sei que vou morrer, não sei o dia

Levarei saudades de Maria

Sei que vou morrer, não sei a hora

Levarei saudades de Aurora

Eu quero morrer numa batucada de samba

Na cadência bonita do samba...”*

No segundo refrão, o tamborim parou. A música continuou, mas sem a voz grave e cansada de Cacau. Alguém que percebeu, perguntou em voz alta:

― Por que parou? E lançou o olhar para Cacau viu que ele estava calado, o pandeiro, silencioso, pousava sobre seu colo, a cabeça pendia levemente para frente e para o lado. O samba calou.

Aquele foi o último batuque de samba de Claudionor, seu coração parou de bater como as pancadas no velho tamborim, os dois silenciaram-se para sempre. Mas, para quem acredita em outra vida depois dessa, Cacau foi tamborilar em outras paragens.

 

Rio Vermelho, 02 de março de 2023.

 

*Na Cadência do Samba, de Ataulfo Alves

 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Morreu dormindo

 As redes sociais têm o um caráter meritório, e outros nem tanto assim... Divulgam-se comemorações de aniversários, casamentos, nascimentos e tantas outras conquistas que a vida proporciona. Outro dia, vi estampado no perfil de uma querida amiga a foto de seu irmão caçula – de 59 anos. Anunciava, com pesar, a sua partida dessa para melhor. Essa é outra utilidade das redes sociais, comunicar falecimentos de entes queridos.

Fiquei abalado com a notícia, não apenas por se tratar do irmão de uma amiga, mas também porque tínhamos sido muito amigos na época de nossa adolescência. Saíamos juntos, nos visitávamos, até acampamos certa vez em Itaparica, no tempo em que se armava uma barraca na praia sem temer visitas inoportunas. Mas quis o destino que nos separássemos quando entramos para a faculdade, cada um seguiu um rumo diferente na vida, e lá se vão mais de quarenta anos.

Em louvor às antigas recordações e ao velho camarada, fui ao Campo Santo homenageá-lo. O carnaval já batia à porta, e naquele sábado um desfile de um bloco de palhaços estava programado para sair naquela tarde em meu bairro. Os moradores estavam sitiados, mas mesmo assim fiz um esforço para chegar ao cemitério. A vida tem desses contrastes, enquanto num lado da cidade se celebrava a vida, no outro se reverenciava um morto. Eu podia não ter ido, dar a desculpa de que não gostava de ir a enterros, mas quem gosta? Muito menos o homenageado, que, sem dúvida, preferiria continuar andando sobre a terra, ao invés de repousar eternamente sob ela. Ir a um enterro, por mais doloroso que seja ‒ alguns dizem que é chato, e quem disse que era para ser divertido? ‒ faz parte dos rituais da vida, celebramos ali a vida e a morte, encaramos a única certeza de cada um de nós, o inexorável.

No velório, aquele silêncio e tristeza das cerimônias fúnebres. Familiares e amigos estavam desolados, como era de se esperar. Uns vieram de longe, outros interromperam um passeio para darem o último adeus. Dei abraços e condolências, perguntei a um dos irmãos o que acontecera, como morrera o antigo amigo. Ouvi deste que fora um caso de morte súbita, enquanto dormia placidamente em sua cama, simplesmente não acordou para um novo dia. Não estava doente, ninguém esperava por tal fatalidade. Mortes não anunciadas chocam pelo seu caráter repentino e são difíceis de serem assimiladas.

Certa vez ouvi de uma amiga que professa o espiritismo, que não há modo de morte mais digna que morrer dormindo. É uma raridade, uma espécie de merecimento que a poucos são concedidos. Não é para qualquer um. Os que ficam são os que sofrem, e para eles há o conforto de que o falecido não sofreu em sua passagem, morreu dormindo serenamente, o seu coração simplesmente parou de bater, mas antes deixou tantas coisas boas em nossos corações. Descanse em paz, Manuel.

 

Rio vermelho, 14 de fevereiro de 2023.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Uma história convincente

Numa dessas manhãs modorrentas em que eu ia no ônibus que me levaria ao centro da cidade, era um daqueles novos carros equipados com ar-condicionado que arrastam-se a vagarosos quarenta quilômetros e que fazem a viagem urbana parecer um agradável passeio turístico, tudo ia muito tranquilamente bem. Isto é, não havia pedintes e nem vendedores ambulantes importunando o silêncio do nosso passeio. Os passageiros, a maioria deles, eu suponho, seguiam de cabeça baixa, com os olhos fixos na tela dos seus celulares, já eu lia um livro. Assim que o ônibus prosseguiu a viagem, depois de ter parado num ponto para que passageiros descessem e outros tantos subissem, uma voz rimbombante quebrou a paz interna do transporte coletivo.

Os ônibus urbanos tornaram-se praças onde vendedores ambulantes embarcam por algum minutos, para oferecerem as suas mercadorias baratas e de qualidade duvidosa, assim como pedintes que, ao invés de tentarem vender alguma bugiganga, contam tristes e comoventes histórias, que nada devem às de Charles Dickens, com o intuito de angariarem alguma ajuda monetária. O pedinte que interrompeu o nosso sossego começou assim a sua ladainha, sua voz era potente como a de um orador no púlpito: “Senhores passageiros, desculpe por interromper o silêncio da viagem de vocês. Eu sou um ex-presidiário da penitenciária Lemos de Brito em Mata Escura...”

Até então, ninguém pareceu prestar atenção ao cidadão, até que o preâmbulo de sua biografia fez com que todos desgrudassem os olhos de seus celulares e o encarasse, de olhos bem abertos, por sinal. Eu, por minha vez, torci a boca e ouvi alguém soltar um gemido logo atrás de mim. Devo dizer que foi uma forma bem eloquente de começar um discurso. Suas palavras eram claras e amedrontavam pelo seu conteúdo. Então ele continuou: “Depois que cumpri a minha pena e paguei a minha dívida com a sociedade, não querendo voltar ao mundo do crime, tive a ideia de tirar uma “guia” de vendedor ambulante da prefeitura ...”

Aquela história me pareceu familiar, eu já a ouvira muitos meses antes, da mesma pessoa, durante uma viagem de ônibus como aquela. Até hoje esse rapaz não conseguiu tirar essa guia, pensei intrigado. Com histórias ou sem histórias, não há duvida de que estas pessoas precisam de dinheiro, a miséria neste país é muito maior do que o pessimismo com que se apregoa. Me pergunto se o destino dessa ajuda será mesmo para alimentar a criança que espera em casa ou para o remédio que lhe salvará a vida, se é que ela realmente existe. Já ouvi falar que o defeito do mentiroso é se empolgar demais com a sua mentira e torná-la numa história comprida. Entre os que vivem de apenas pedir dinheiro e os que para obtê-lo engendram uma história, eu fico com primeiros – ainda que, como escritor, eu seja um inventor de histórias. Já me falaram que o que importa não é se o outro falta com a verdade ou não, mas o gesto de generosidade de quem ouve, pois o universo devolve para a gente nossas ações praticadas, sejam elas boas ou ruins, e isso conta para quem dá e para quem recebe. Por isso devemos sempre fazer o bem. Talvez haja um fundo de verdade nesse pensamento altruísta, mas, para mim, sempre resta aquela pontinha de dúvida se estou sendo vítima de um golpe ou não. “Foi então que procurei jovens amigos para pedir-lhes emprestado o dinheiro da guia”, o pedinte continuou, “e eles se recusaram a me emprestar e me ofereceram, ao invés, um revólver para que eu fosse assaltar ônibus.”

Aquela história ficava mais cabeluda a cada nova frase. Senti o ônibus prender a respiração, os olhares se desviaram do pedinte, para evitar o contato visual, mas os ouvidos estavam atentos, esperando pelo derradeiro apelo. “Eu não quero voltar ao mundo do crime, o crime me deixou marcas pelo corpo, sofri vários atentados dentro do presídio e fora dele, tenho cicatrizes de facadas e tiros, como podem ver – disse, e levantou a blusa para ilustrar a sua horripilante história; se tinha mesmo cicatrizes, eu não saberia dizer, pois não me arrisquei a olhar – quase morri várias vezes. O crime não compensa. Tudo o que eu quero é trabalhar como qualquer cidadão honesto e levar para casa o dinheiro do leite dos meus filhos pequenos, que estão passando fome – ah!, esse detalhe não podia faltar. Pai, mãe, amigo, vocês têm aí sobrando em suas carteiras algum trocado para me ajudar a tirar uma guia?”

Ultimamente o sucesso de histórias tristes de crianças passando fome em casa, aguardando pelo alimento que o pai prometeu levar, ou de crianças com uma doença complicada, geralmente no sangue – que soa mais apelativo – que precisam de um medicamento que só a contribuição dos viajantes de ônibus poderá ajudar salvar a vida, e tantas outras, tem perdido a força, dada a sua similaridade e repetição, por isso as contribuições têm minguado. Mas a daquele pedinte era original, para não dizer aterrorizante! O medo espalhou-se mudamente entre a população do ônibus. Muitos enfiaram solicitamente a mão no bolso e choveu dinheiro. E há quem duvide do poder da palavra!

 

Salvador, 16 de janeiro de 2023.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Poupando para o cruzeiro marítimo

 Enquanto aguardam, de pé, na extensa fila para o bandeijão do Restaurante Popular, que fica em frente ao porto de Salvador e que serve almoço ao módico preço de um real apenas, os habitués do estabelecimento assistencial admiram um majestoso transatlântico aportado nas docas. É uma daquelas naves que só se vêm em folhetos de agência de viagem de turismo e que provocam sonhos acordados até no mais tarimbado viajante, de um dia pôr os pés naquela belezura.

— O cabra tem que ser um milionário para viajar num bicho desses – falou um idoso de barba rala e branca, suas roupas deveriam ter igualmente a sua idade.

— Milionário ou político ladrão – corrigiu outro, em uniforme de gari.

Os fregueses do Restaurante Popular variam do pedinte de rua ao bancário da agência do Banco do Brasil, que fica a uma quadra dali. Basta ter um real no bolso e disposição para enfrentar a extensa fila, para entrar e almoçar; que o lugar não faz distinção da situação econômica e social do comensal. Por um real apenas come-se um prato de comida, uma raridade em nossos dias, com direito a sobremesa e um copo de suco de fruta, a farinha é a vontade. Quem quiser um molho de pimenta de verdade, dona Mira improvisou uma cozinha em cima de um caixote velho de madeira, onde prepara e vende o tempero, ao lado da fila; custa cinquenta centavos o copinho e não falta quem não compre. Para repetir o prato, o comilão precisa entrar novamente no final da fila, do lado de fora do restaurante, e pagar novamente, claro.

— Pode-se dividir de doze vezes no cartão – disse uma velha, que ouvia a conversa, com interesse.

— Mesmo assim, deve ser uma fortuna – insistiu o velho.

— Eu já viajei num desses e, em março, já terei pago a viagem de oito dias que farei – disse a velha, falava com a convicção dos que não inventam.

— É? – disse o velho, desconfiado das palavras da velha.

 — Em março já é baixa estação, e os cruzeiros ficam mais baratos. É tão bom, a gente come de tudo, são cinco refeições por dia, e a gente fica nas baladas até as quatro da manhã! – disse a velha, toda animada com a expectativa do passeio.

Como podem ver, se vocês frequentarem o Restaurante Popular durante um ano, terão economizado o suficiente para fazerem um cruzeiro marítimo de oito dias e comer e dançar a vontade!

 

Rio Vermelho, 10 de janeiro de 2023.