quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Gosto não se discute, e ponto final!

Como não possuo um cão para levar para passear no final da tarde, levo a mim mesmo. A grande vantagem disso é que não saio fazendo pipi em postes e as necessidades na calçada. Como podem ver, sou muito bem adestrado.
Eu gosto de animais, mas nunca me ocorreu possuir um. Quando muito, teria uma galinha (dos ovos de ouro, se possível), criada solta aqui no quintal de casa, para me dar ovos frescos, para o café da manhã. Eu não levo jeito para a coisa de ser dono de um bicho, não sei conversar com eles (e nem com plantas), e a ideia de ter certas obrigações, como ir comprar ração, banhá-lo, cortar as suas unhas, escová-lo, levá-lo ao veterinário, levá-lo para passear todos os dias (ouvi dizer que são duas vezes por dia, faça sol ou chuva!), catar suas pulgas e recolher seus excrementos (isso, sem falar em seus pelos, que se espalham e flutuam pela casa, caem no prato de comida, e os comemos sem saber, e do cheiro peculiar desses adoráveis animais, que faz a casa da gente cheirar a cachorro, ou gato), não me fazem eu me orgulhar de mim mesmo e aumentar a minha autoestima.
Já me falaram que ter um animal de estimação é uma benção, uma coisa tão boa, que ele é um amigo inseparável, que faz companhia, que é afetuoso, que é fiel, que são até melhores que que os seres humanos, são tantas as vantagens – porém, onde todos veem vantagens, eu só vejo desvantagens. Pode até ser que os outros estejam certos, às vezes eu me engano, mas prefiro procurar amizade entre os seres de minha própria espécie, os Homo sapiens. Não me levem a mal, não tenho nada contra os seres humanos, apesar de suas falhas. Mas, se no dia em que eu tiver que pôr uma coleira no meu amigo Elias Gurgel, um ser humano de primeira qualidade, para sair com ele e tiver de catar as porcarias que ele for fazendo pelo meio do caminho, eu corto as relações com ele, deleto-o das minhas redes sociais e bloqueio o número de celular dele! Como podem ver, sou muito tolerante, também!
Eu, sinceramente, acho que os felizes donos de pets tornaram-se reféns da indústria da ração e dos outros pindurucalhos (eu pensava que só juízes e autoridades tinham pindurucalhos) que acompanham a propriedade de um animalzinho de estimação. Não é para menos, é difícil resistir à beleza de um saco de ração. São tão bonitos, feitos para seduzir aquele consumidor que existe dentro de cada um de nós. Alguns deles possuem fotografias em suas embalagens que parecem que saíram de um daqueles livros de receitas culinárias com ilustrações deslumbrantes que fazem a nossa boca se encher de água. Nossa, como são caras essas rações! Nem eu me dou ao luxo de gastar tanto com comida. O que houve com esses animais, evoluíram e não comem mais restos de comida, como nos meus tempos de criança?
Pois bem, como eu ia falando, no final da tarde, gosto de sair para passear e, na falta de um cão amigo, levo comigo um livro amigo, com o qual me sento num banco de madeira do mirante da Paciência e me deleito com a leitura de alguns capítulos, tendo um infinito oceano como paisagem à minha frente. Entretanto, naquela tarde, eu estava um pouco aborrecido. Alguém estivera ali algumas horas antes e desopilara os intestinos próximo ao meu banco preferido. O cheiro era desagradavelmente característico. A prova do crime era uma daquelas bem moles e cremosas, nas quais uma película se forma em sua superfície, dado a impressão de estar dura por fora, quando, na verdade, está ainda fresca e mole por dentro, de modo que quando se pisa acidentalmente num deles... Bem, você imaginar a tragédia! Fiquei revoltado por aquele odor tirar a beleza do meu momento de leitura. Felizmente a máscara que cobria a boca e o nariz, atenuava meu sofrimento.
Não demorou muito, no entanto, e chegou ao mirante uma bela jovem que parecia ter se arrumado como uma princesa para também dar um passeio naquele final de tarde. Ela tinha uma aparência fresca de alguém que acabara de tomar um bom banho. Nos braços, ela trazia um daqueles cãezinhos esquisitos de madame, de pelos lisos longos a cobrir-lhe os olhos e com uma fita presa no alto da cabeça. Deveria ser uma cadela, concluí. Quem os observasse com atenção, juraria que pareciam irmãs gêmeas. A beleza da moça até me fez esquecer do infortúnio mal cheiroso ao meu lado. Mal a linda jovem colocou seu cãozinho no chão, para que este desfrutasse da diversão que era correr para lá e para cá ao longo do mirante, o animalzinho também sentiu o mesmo cheiro que eu sentira minutos antes e que tanto me desagradara, mas sua reação foi ao contrário da minha. Ele correu em direção ao excremento e enfiou nele o focinho, devorando a iguaria, com determinação. A dona veio correndo para impedi-lo, mas aí já era tarde demais. Com a cara lambuzada, o cachorrinho parecia estar feliz da vida e satisfeito, ao contrário da dona, que fazia uma careta indignada e enojada. O passeio acabou, disse ela ao seu fiel amigo, com um tom de voz afetuoso. Pegou o animal nos braços e foi embora. E eu assistia à cena com um sorriso de maldade, ao perceber a ironia que fora aquela cena: a dona do cãozinho gastava centenas de reais com a melhor e mais cara das rações, para alimentar o seu fiel amigo, quando tudo que o pequeno animal queria era um pouco de merda humana!

Rio vermelho, 31 de julho de 2020.