O senhor trabalha aqui?, perguntou
a moça aproximando-se da mesa onde eu me encontrava. Ela estava acanhada, percebi
pelo seu esforço para parecer natural. Algumas pessoas simplesmente têm
dificuldade em conversar com estranhos. Felizmente, não é este o meu caso.
Não era muito jovem. Talvez já tivesse passado dos
trinta. Tinha o olhar cansado. Algumas rugas precoces já começavam a se formar no
canto da boca e dos olhos. Eu já a vira outras vezes nas vizinhanças, passeando
com um cachorro grande e amedrontador. O animal a arrastava pela coleira, e não
se sabia quem levava quem para passear. Agora ela parecia diferente, ou melhor,
eu a via mais de perto, ao conversar com ela primeira vez. Ela era mais alta e
magra do que eu imaginava. Habituei-me a vê-la em trajes como se fosse para a
academia. Mas desta vez, ela estava mais arrumada. Usava calça creme que
delineava os quadris largos e blusa de mangas compridas branca que realçava o
seu cabelo preto cheio e longo. A pele era branca como de alguém que não costuma
tomar banho de sol. Havia uma excitação contida em sua voz que eu não conseguia
explicar.
Não sou funcionário da casa, se é o que você está
sugerindo, mas venho trabalhar aqui todo final de tarde, respondi interrompendo
o que eu fazia. Tive a impressão de que aquela conversa ia se prolongar mais um
pouco. Percebi na moça uma vontade de conversar. Seu olhar era agitado.
Ela estava de pé, de frente para a mesa que eu ocupava
com o meu notebook. Ao lado dela, presa à parede, havia uma estante cheia de
livros usados, porém em bom estado. Estávamos num café. Bem, na verdade, é uma
gelateria que também serve café e possui estantes carregadas de livros.
— O senhor já leu algum desses livros? – ela apontou com
um olhar para a estante ao seu lado.
— Já li um ou dois. – eu poderia dizer-lhe que sempre
trago meus próprios livros para ler, mas achei aquilo presunçoso.
Ela ficou pensativa, talvez elaborando a pergunta
seguinte, para manter a conversa fluindo.
— O senhor já pegou algum livro daquela casinha ao
lado da igreja?
Ela se referia a uma pequena casinha de madeira suspensa
sobre um pedestal de madeira, posta ali por uma ONG. A estrutura parecia uma
casa para passarinhos, só diferente desta pelo fato de ter uma porta de vidro. A
ideia é para que as pessoas possam compartilhar livros, pegando ou deixando ali
dentro.
— Sim, já peguei uns e deixei outros. – respondi. Me
senti um cidadão consciente que colabora com a cultura.
— Nossa, o senhor não acha esta ideia maravilhosa? Eu
já peguei muitos livros dali. – ela disse com um entusiasmo exagerado.
Imaginei que talvez em sua casa, ela tivesse um dos
meus livros que doei para o projeto. Tenho o hábito de pôr minha assinatura em meus
livros, a data e o local em que o li pela primeira vez. Pensei em quão
particular é este pequeno hábito. De
repente, achei estranho uma pessoa que nunca vi na vida, possuir em sua casa
algo que me pertenceu, com a minha assinatura e data, como se fosse um
documento histórico. Algumas pessoas gostam de registrar a sua posse escrevendo
algo como “este livro pertence a...” Talvez se eu tivesse simplesmente escrito
“este livro pertenceu a...” eu não teria aquela sensação de ter abandonado algo
que foi meu, pelo menos durante algum tempo.
— Mas alguém levou aquela casinha dali. – ela disse
com uma expressão de desapontamento.
— Eu não sabia. – respondi chateado. – Não tenho
andado muito por ali ultimamente.
— Talvez alguém levou ela para fazer uma casa de cachorro.
— Sim, talvez. – só se fosse para um cachorro pequeno,
eu pensei. O mais provável foi que a casinha foi vítima de puro vandalismo.
— Mas logo em frente existe uma biblioteca onde você
pode pegar qualquer livro emprestado.
— Nossa, eu não sabia disso! – ela disse excitada. –
Que coisa maravilhosa que o senhor está me dizendo.
Fiquei surpreso de ver que uma moradora do bairro
desconhecia a existência da biblioteca. Já está ali a tantas gerações. O prédio
fica em frente ao calçadão da orla onde ela passeia com frequência com seu
cachorro.
Olhei para a estante de livros ao seu lado e me
lembrei.
— E se você quiser pegar um dos livros daqui para
levar emprestado, também é possível, e não custa nada.
— Nossa! É verdade isso? Eu não sabia. Que coisa
maravilhosa! – disse em tom afetado.
— Basta escolher o livro e preencher uma ficha ali no
caixa.
— Nossa, o senhor me disse tantas coisas maravilhosas
que me deu vontade de ir ao banheiro. – ela exclamou, se dirigindo, logo em
seguida, ao sanitário.
Rio Vermelho, 18 de maio de 2018.
2 comentários:
O que e que vc pensa sobre o show do netflix, 3%
Um papo laxante ou diurético, mais leve, digamos.
Pita
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