segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Ciúme desmedido.

É de consenso comum que ciúme é um sentimento que, muitas vezes, extrapola o bom senso. É um fator humano ter ciúme, e se você diz que não é uma pessoa ciumenta, está enganando a si mesma. Ou nunca realmente foi posto à prova.

O meu amigo Juliano – nome fictício para Juliano – sempre gostou de aventuras. Não me refiro a voar de asa delta-delta ao pular da cabeça do Cristo Redentor, ou pôr a cabeça dentro da boca de um leão faminto, ou pular de paraquedas sobre um campo minado, ou outras estripulias semelhantes. Mais adiante você perceberá qual tipo de aventura o Juliano se interessa. E foi justamente numa aventura dessas que ele se viu confrontado com um caso bizarro de ciúmes.

Um dia Juliano abandonou o curso na faculdade e resolveu correr o Velho Mundo. Quem vê assim, pensa que ele estava nadando em dinheiro. Não tinha um puto, como diria a Madre Superiora. Pegou dinheiro emprestado com um tio rico aposentado e caiu no mundo.

Juliano era um cara bonito, de pele morena, curtida na praia do Porto da Barra. Cabelos negros como as asas da graúna – José de Alencar que me perdoe o empréstimo – e feições finas como as de um príncipe hindu. Muito gentil e de conversa fácil, poliglota – graças à contínua prática do namoro com gringas em visita à cidade –, não teve dificuldade em fazer amizades por onde passasse, e pelas mais belas moças europeias foi hospedado em seus leitos, e ele soube retribuir ardorosamente a generosa hospitalidade.

Juliano gostava de dançar e, certa noite, numa boate em Estocolmo, conheceu um belo casal. A mulher era de uma beleza escandinava só vista em propaganda de shampoo. O cara era um daqueles tipos altos, magros, simpáticos, com um sorriso bobão. O casal ficou encantado com o estrangeiro.

— Sempre desejei ver minha mulher ser comida por um verdadeiro amante latino – confidenciou o sueco, sob o olhar fingidamente tímido e virginal da esposa.

— E eu sou o gênio da lâmpada – disse Juliano encantado com a proposta. – Que o seu desejo seja realizado!

Viu, é desse tipo de aventura que eu estava falando.

Meia hora depois, o couro comeu no lar dos Larssons. Naquela noite, Juliano estava embebido de um verdadeiro espírito patriótico e se sentiu no dever de representar bem o seu país. Jogou duro, por assim dizer. Rolou sexo, drogas e rock ‘n’roll, mas não necessariamente nesta ordem.

Depois do primeiro round, Juliano foi até a sala do casal repor as energias, enquanto fumava um baseado – mais uma cortesia dos Larssons  – e bebia uma dose de ‘aquavita’. Ficou encantado ao ver uma estante abarrotada com centenas de discos de vinil. Que magnífica coleção, regozijou. Estava metodicamente organizada em ordem alfabética, por nome do músico ou banda. Escolheu um Jimi Hendrix e o pôs para tocar na vitrola retrô. Mal os acordes da guitarra do gênio musical se fizeram ouvidos, Gunnar – o sueco de sorriso bobão – apareceu enfurecido na sala de sua casa, vestido como veio ao mundo. Gritava, ao mesmo tempo que agitava os longos, brancos, finos braços, dominado por um verdadeiro um chilique.

— Cara, você pode fumar meu baseado, beber da minha birita, comer a minha mulher, mas não toque nos meus vinis!

Já viu que cara mais ciumento?!


Rio Vermelho, 12 de janeiro de 2020.

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quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A hóstia imperfeita

Ela tinha obsessão por perfeição. E quando foi morar na nova casa, no primeiro dia do ano, ficou feliz ao ver novamente a simetria de sua faixada. Era quadrada com duas janelas igualmente quadradas e uma porta de duas bandas no meio. As paredes eram impecavelmente brancas e iria mantê-las assim, resolveu não pendurar nem mesmo um calendário. Havia um pequeno jardim na frente, ou melhor, um gramado bem cuidado. Nos fundos, o quintal era maior do que poderia desejar, ainda não tinha ideia do que fazer com ele. A casa era um pouco grande para ela, que só tinha a companhia de um gato, mas ela preferia assim. Um cão aproveitaria melhor o espaço do quintal, gostavam de correr e cavar, mas gato era animal de ficar dentro de casa, e o dela reencontrou o seu lugar embaixo de uma antiga cadeira de palhinha. No antigo apartamento, a cadeira servia de abrigo para ele, e não foi diferente na nova moradia. Defronte da casa havia uma igreja e isto deu a ela o que pensar.

Quando foi a última vez que fui a uma missa?, se perguntou. Porém não encontrou resposta. Já fazia tanto tempo... Estava começando uma vida nova e talvez reencontrar-se com Deus fosse uma ótima mudança. Estava resolvido, iria todos os domingos à missa. Era só atravessar a rua. Aquela seria uma de suas resoluções do novo ano que começava.

Passou o resto da semana arrumando a casa, colocando as coisas no lugar, ao seu jeito. Depois que terminou, fez uma rápida faxina e deu-se por satisfeita. No domingo, acordou cedo, fez o café e tomou-o na mesa da cozinha, ao lado da janela que dava para o quintal. Os pássaros cantavam e se amontoaram em volta de uma casca de mamão posta sobre uma banqueta. Quando, no apartamento no centro da cidade, recebera tão ilustres visitas?, se perguntou. Jamais.

Depois de tomar o café, apressou-se para não chegar atrasada à missa. Era a primeira missa do ano e a igreja estava cheia. Mesmo assim, encontrou um lugar na ponta de um banco. Logo em seguida, a missa começou.

Ficou feliz de se lembrar de todas as rezas e lhe pareceu que a missa continuava do mesmo modo como se lembrava, apesar de que hoje em dia o repertório de músicas era mais moderno. As músicas eram bonitas e iria memorizá-las para a próxima missa.

Quando chegou a vez da Comunhão, aquele momento em que se vai para uma fila, com uma expressão contrita, e abre-se a boca diante do sacerdote, para receber a hóstia. Ela levantou-se e foi tomar um lugar na fila. Quando chegou a sua vez, no momento em que o padre pegou uma hóstia, ela percebeu que algo não estava de seu agrado. A hóstia estava rachada ao meio, porém ainda inteira, e faltava-lhe um imperceptível pedaço. Aquela imperfeição a incomodou. Tentou não dar importância, mas foi-lhe impossível. A boca, que estava aberta para recebê-la, se fechou abruptamente, para surpresa do padre que não compreendeu o gesto.

— Será que o senhor poderia trocar esta hóstia por uma que esteja... inteira? – ela perguntou ao padre, desconcertada.

— Minha filha, você fez a Primeira Comunhão? – perguntou o padre, com um olhar severo.
— Não – ela respondeu, constrangida.

— Então volte para o seu lugar e depois teremos uma conversa séria – disse o padre, negando-lhe a hóstia.

Sentindo-se humilhada, ela voltou para o banco e ficou cabisbaixa o resto da missa. Podia sentir o peso dos olhares dos outros fiéis sobre ela. Mas era só trocar a hóstia, recriminava o padre. Depois daquele domingo, nunca mais voltou à missa.


Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2020.


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