sábado, 4 de março de 2023

Morreu numa batucada de samba

Claudionor Paranhos, o Cacau do Alto da Alegria, era do tempo em que o folião amanhecia dormindo num banco de praça no Campo Grande, e não lhe roubavam a carteira enquanto dormia. Não é saudosismo, é só para mostrar como eram as coisas naqueles antigos carnavais.

Há muito Cacau não ia na avenida ou se ia era apenas para rir dos solitários foliões em suas fantasias engraçadas e inventivas ou para ver a saída dos pequenos blocos e suas músicas irreverentes, resquícios de um tempo ingênuo e sem ambições comerciais, quando a espontaneidade valia mais que o compromisso de se estar alegre durante todo o tempo no carnaval.

Mas do que ele gostava era do samba, aí ele batucava o ano inteiro, tocava o velho tamborim, companheiro de longas datas. Reunia-se com os camaradas nas tardes de sábado na varanda do bar do Jajá, e a roda de samba ia pela noite adentro. Mas não era um grande evento ou um que atraísse uma multidão, além do grupo da batucada e alguns que acompanhavam a música enquanto sambavam. Apesar de já ter chegado aos oitenta, e com a saúde que cambaleava, sua voz ainda era firme, e firme, também, era a sua batida no tamborim.

No sábado de carnaval, a turma reuniu-se, como de costume, e quem não quis ir para o circuito carnavalesco, fez a folia ali, no bar do Jajá. Dessa vez o público era bem maior, talvez umas cem pessoas, porque, afinal, era carnaval. Aquela agitação fez Cacau sentir-se em plena forma, todos estavam alegres, alguns já tinham bebido tanto que só acompanhavam o samba sentados.

A noite já ia alta, quando os efeitos das horas de batuque fez-se sentir no velho corpo de Cacau. Foi quando ele anunciou:

― Esta é a última!

Mas alguém lá no fundo do bar gritou:

― Nunca diga que é a última, que dá azar. Diga que é a penúltima.

Cacau bateu com a cabeça em concordância e respondeu com um sorriso cansado, embora não acreditasse em superstições. Em seguida começou a entoar um de seus sambas favoritos, sempre guardados para encerrar a sua participação na batucada. Ele puxou a cantoria e todos juntaram-se a ele.

“Sei que vou morrer, não sei o dia

Levarei saudades de Maria

Sei que vou morrer, não sei a hora

Levarei saudades de Aurora

Eu quero morrer numa batucada de samba

Na cadência bonita do samba...”*

No segundo refrão, o tamborim parou. A música continuou, mas sem a voz grave e cansada de Cacau. Alguém que percebeu, perguntou em voz alta:

― Por que parou? E lançou o olhar para Cacau viu que ele estava calado, o pandeiro, silencioso, pousava sobre seu colo, a cabeça pendia levemente para frente e para o lado. O samba calou.

Aquele foi o último batuque de samba de Claudionor, seu coração parou de bater como as pancadas no velho tamborim, os dois silenciaram-se para sempre. Mas, para quem acredita em outra vida depois dessa, Cacau foi tamborilar em outras paragens.

 

Rio Vermelho, 02 de março de 2023.

 

*Na Cadência do Samba, de Ataulfo Alves

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Cris ,seus escritos me trazem , além das das próprias histórias, frases bem construídas,- começo meio e fim- , pontuação na hora certa.,não vemos um anúncio de Melhoral que cure nossas dores de cabeça.Salvem o Português , não o da padaria mas o de Camões !
Obrigado !!

Pitágoras