Fazia tempo eu pensava aposentar minhas velhas sandálias para comprar um par novo e mais moderno. Embora estas ainda dessem conta do serviço, já estavam dando sinais de desgaste e cansaço, apesar de que elas ficam bem mais gostosas para usar, à medida que envelhecem. Porém, sua hora já havia chegado e o momento de dizer adeus era eminente. Troquei os sapatos e o tênis por este calçado tão democrático e popular que são as nossas companheiras, as sandálias de borracha, já faz tempo. Mas não pense que sou aquela figura excêntrica que sai por ai de terno e calçando sandálias! Nosso clima quente, também, pede mais por confortáveis sandálias do que por calçados fechados que só produzem aquele mau cheiro que só de imaginar torcemos o nariz e que costumamos chamar de chulé.
Já se foi o tempo em que as Havaianas só eram encontradas em gôndolas de supermercados ou nas prateleiras empoeiradas de mercearias de bairro. Tornaram-se peça de grife com suas próprias lojas chiques espalhas por onde quer que se possa abrir uma porta de comércio, são encontradas desde no armazém do bairro até em luxuosos shoppings centers. Foi numa dessas lojas que entrei para comprar um par de legítimas Havaianas, as que não soltam as tiras, como elas mesmo orgulhosamente anunciam, numa bela manhã de sábado, aqui perto de casa. Como era de se imaginar, as opções de modelos eram muitas. Felizmente, os modelos masculinos eram poucos e terminei me decidindo por um novo lançamento, um par de sandálias com o solado mais largo e design estiloso. Eram três vezes mais caras também, mas como as sandálias, para mim, são indispensáveis, valia a pena o investimento. Meus pés são largos e grandes como os de uma figura portinariana, por isso, eles se sentiram muito confortáveis no novo par de sandálias. Meu amigo Nando, cujo pé também é aloprado, simpatizou com minhas sandálias e foi correndo à mesma loja comprar um par. Minhas novas sandálias eram tão confortáveis e elegantes que até imaginei que um belo terno combinaria bem com elas!
Como tudo que é bom dura pouco, minha lua de mel com as novas sandálias não durou nem seis meses. Um belo dia, colhendo mato em meu jardim, a tira do pé esquerdo se partiu. Mas não são elas as que não soltam as tiras? Não fiz movimento brusco e nem aquilo foi o resultado de continuo abuso de suas capacidades físicas, visto que levo uma vida confortavelmente sedentária. Ela simplesmente partiu a tira. Aquilo foi uma fatalidade que poderia ter acontecido a qualquer um. Segundo o IBGE, um em cada um milhão brasileiros corre o risco de ter a tira de sua sandália Havaiana partida pelo menos uma vez na vida. Aquela foi a minha vez. A mesma estatística se aplica para felizes ganhadores da Mega-sena, mas, no meu caso, é sempre mais possível que eu vá perder uma sandália, ao contrário de me tornar um milionário!
Gostei tanto daquele modelo que voltei à loja para comprar outro par. O mesmo vendedor da outra vez veio me atender com um sorriso nos dentes. Contei-lhe sobre a tira partida da sandália que me vendera e, sem fazer ouvido de mercador, como qualquer outro comerciante o faria, disse:
— Telefona para o atendimento ao cliente das Havaianas que eles te dão outra. — escreveu o número numa tira de papel e me entregou.
Nunca me passou pela cabeça reclamar por algo daquela natureza, sobretudo por causa do aborrecido interrogatório que imaginei ser submetido só por causa de um par de sandálias de borracha. Minha especialidade é reclamar pelo barulho e o mau cheiro da churrascaria aqui do bairro. O mais sensato seria, era esquecer o prejuízo, se é que houve algum, e simplesmente comprar um novo par. Mesmo assim, agi contrário à minhas elucubrações e, resolvi arriscar. Deixei a loja de mãos vazias, não levei as sandálias ainda daquela vez. Na segunda feira seguinte, telefonei para as Havaianas contando o meu drama. Para minha surpresa, não houve gravação alguma me pedindo para aguardar um instante, pois, minha ligação era muito importante para eles, ou aquele grande sucesso das paradas da categoria musica de espera, tão irritante aos ouvidos. Fui atendido na bucha. Lembrei que não estava ligando para a companhia telefônica ou para o Banco do Brasil. A moça foi muito educada e solicita e, depois de satisfazer-lhe a curiosidade feminina com algumas respostas sobre a minha pessoa e o par de sandálias, informou-me que eu receberia correspondência com instruções, despediu-se polidamente. Nunca vi nada tão simples. Ela nem sequer tentou por a culpa em mim pelo dano, eximindo seu patrão da responsabilidade, como faria qualquer gerente de banco bem treinado ou outro atendente de serviço de atendimento ao cliente. Ao contrário, tratou-me como pessoa honesta e com boas intenções, o que, aliás, eu sou e tenho. Senti-me justiçado. É tão comum pessoas se sentirem injustiçadas, mas desta vez ocorreu o justamente o contrário. Dias depois, recebi um envelope com as tais instruções. Fui até a agência do correio aqui perto de casa levando o pé de sandália avariado. Entreguei-lhes um cupom que veio junto com as instruções e recebi em troca uma embalagem para por a sandália. Assunto encerrado. Semanas depois, recebi em casa um novo par igualzinho ao que eu tinha comprado. As Havaianas tinham ganhado a minha admiração e fidelidade.
Tudo poderia ter passado como por um desses contratempos que acontecem na vida da gente, de vez em quando e, depois, caem no esquecimento. Não é que quase seis meses depois a dita cuja quebrou a tira de novo? Desta vez, resolvi não fazer mais nada a respeito. Nada de reclamar ao fabricante. Também não comprei sandálias novas, ao contrario, fiz uma combinação. Passei a usar o pé cuja tira estava intacta com o de outra sandália já aposentada. E tem gente que ainda diz que aposentados não servem mais para nada! Foi uma combinação estranha, algo fora dos padrões. Todos olhavam para os meus pés, curiosos com aquela dupla de sandálias incomum. Eu nunca chamara a atenção tanto para mim. Eu achei que estava bom, embora uma sandália fosse cor de marfim com tiras largas em duas tonalidades, azul marinho nas bordas e gelo ao centro e com o design sofisticado parecendo uma prancha. O outro pé era o de um modelo convencional, tinha as tiras pretas estreitas com solado estampado com um motivo praiano em azul e preto. Era uma combinação estapafúrdia e por isso mesmo achei que poderiam dar certo. Quem sabe eu estivesse inventando moda. Afinal, com tanta idiotice por ai virando moda, talvez a minha hora tivesse finalmente chegado. Nunca ninguém pensou em fazer aquilo antes. Seria a última moda do verão. Calçar sandálias com pés diferentes. Dizendo assim até parece coisa simples, mas é uma idéia meio subversiva, algo que mexe com a moral de pessoas acostumadas a ter tudo certinho. Era o caso de patentear aquele invento. Inventos como aquele são patenteáveis. Pode-se patentear de tudo, desde uma simples idéia até a coisa propriamente dita. Já tive outras grandes idéias, e algumas delas até foram roubadas. Por exemplo, os japoneses me passaram a perna com a minha invenção da câmera digital! Mas desta vez eu iria ser mais esperto e registrar logo a minha genial criação. Eu já podia até imaginar a minha idéia virando "case study" em doutorado de curso de marketing. Eu tendo a minha própria grife de sandálias descasadas. Posando os pés para foto de capas de revistas de moda. Bastaria comprar um monte de Havaianas de modelos diferentes e misturar tudo! Uma simples e obvia invenção mudando o curso de uma vida. Eu andava por ai chamando a atenção das pessoas para mim, com o meu invento literalmente a meus pés.
Um dia achei que algo estava errado. Minha consciência de reclamador inveterado me dizia para não me acomodar, e que eu devia me queixar novamente às Havaianas, as que não soltam as tiras. Mandei-lhes um e-mail falando-lhes do ocorrido e dei o assunto por encerrado. Já tinha feito a minha parte. Eu não esperava uma reparação material. Imaginei que eles me responderiam de forma educada, lamentando o ocorrido e informando-me que eu estava desafiando as leis estatísticas, pois, ninguém no mundo jamais teve dois pares de sandálias Havaianas com as tiras partidas em espaço de tempo tão curto e, por isso, lamentavelmente, a troca não seria feita. Troca de uma troca estava fora de questão. Mas, para minha surpresa, dias depois recebi um telefonema das Havaianas, e o resto vocês já podem imaginar. Ganhei outro par de sandálias! Pode-se viver disso, mas para mim, já basta. As Havaianas já provaram que me levam a sério.
Rio Vermelho, 13 de outubro de 2009.