domingo, 25 de novembro de 2012

O príncipe da mamãe.*

Houve um tempo, não muito distante, em que o professor era tratado respeitosamente por seus discípulos por “senhor” – ou por “senhora” –, e acatávamos em silêncio a sábia reprimenda, estava no seu direito como educador, pois fazia parte de sua missão moldar a nossa formação. Não havia coisas como detector de metais no portão da escola e nem catracas que liberavam a nossa entrada mediante a verificação, através de um cartão de plástico com um chip, se a mensalidade já tinha sido depositada na conta bancária do dono do estabelecimento. Educação, então, era uma vocação, e não um comércio praticado por um dono de colégio semianalfabeto.

A diretora da escola onde estudei era uma espécie de santa viva e nascera para educar. Seu nome era majestoso como o de uma rainha, Maria Helena Neves da Rocha. Guardava na memória – não a do computador – o nome e sobrenome de seus quase dois mil alunos, assim como os de seus pais, e fazia ela mesma questão de entregar-nos pessoalmente os boletins, indo de sala em sala. Quando as notas eram ótimas, ela nos parabenizava pelo esforço, mas quando estas não eram lá aquelas maravilhas, não tinha nenhum pudor em dizer “suas notas estão medíocres, estude mais da próxima vez!” Ouvi isto uma única vez e quase morri de vergonha, nunca mais deixei que isto acontecesse. Dona Maria Helena era por todos nós respeitada e jamais elevava o tom de sua voz ou nos fazia ameaças, sabia falar com doçura com os estudantes, e por isso a admirávamos. O pai – ou mãe – ao assinar o boletim escolar aborrecia-se ao ver as notas baixas e esfregava-o na cara do filho, “Tá bonito isso?” Aluno era tratado como aluno e ponto final.

         Hoje em dia, não existem mais alunos, são todos clientes, e, como tal, vale sempre aquela máxima que diz que “todo cliente sempre tem razão”. O pai, quando recebe, por e-mail, o boletim do menino com notas vergonhosas, imprime-o e vai até a escola para esfregá-lo na cara do coitado do professor como se fosse responsabilidade deste fazer o filho aprender, “Tá bonito isso?” Por estas e por outras que professor vive com os nervos à flor da pele, aplacando o estresse à custa de tranquilizantes que mal pode comprá-los. Nem político safado e ladrão é vítima de tanto abuso verbal e psicológico como um professor na sala de aula hoje em dia e, no entanto, há pais que não deixam de falar em se construir um mundo melhor para os filhos, quando estes mal sabem que jamais haverá um mundo melhor se eles não criarem e educarem os seus para serem cidadãos dignos de viver neste mundo.

         A mãe insatisfeita com as fracas notas do filho foi tomar satisfação com a coordenadora e a encontrou em sua sala apertada com uma mesinha apenas e duas cadeiras para os visitantes. As paredes eram decoradas com fotos de alunos fazendo atividades.

         — Eu sou a mãe do príncipe. – anunciou com ares de nobreza.

         — Não me lembro de nenhum aluno com este sobrenome... – respondeu a coordenadora estudando aquela figura que mais parecia ter saído de dentro da coluna social da revista do Yacht Clube.

         — Como? A senhora não sabe quem é o meu príncipe! Ele é um garoto formidável, todo mundo gosta dele.

         — E qual é o nome dele?

         — Bruno.

         — Ah!

         — Já sabe de quem estou falando?

         — Ainda não. De qual série?

         — Ora, do segundo ano.

         — Hum... E qual dos 59 Brunos do segundo ano a senhora está se referindo?

       — Ora, do Bruno Lima de Carvalho! Então, já sabe quem é agora? – perguntou impaciente.

         — Agora, claro que sei, sim! A senhora está se referindo à “Mãinhia”. – respondeu finalmente à coordenadora, lembrando-se do garoto acima do peso que vivia se empanturrando de batatas fritas de saquinho, balas e outras porcarias que ia deixando vestígios pelo caminho denunciando a sua passagem, e que era um pequeno mau caráter, mentiroso, cínico e dissimulado que sonhava um dia virar político, já tinha talento para tanto.

         — Mãinha? Mas que diabo de apelido horrível é este, porque vocês chamam o meu príncipe assim? – perguntou indignada.

         — É porque ele sempre diz coisas como “se eu tirar nota baixa no teste, mãinha vai me bater”, “se eu chegar assim em casa, mãinha vai me comer de porrada”, “se mãinha souber disso, ela vai me arrancar o couro.”

         — Ah, é? – perguntou, não mais parecendo tão nobre desta vez.

         A coordenadora a fitou em silêncio por alguns instantes como se estudasse aquela mulher sentada à sua frente e, em seguida, perguntou:

         — Eu estou curiosa, gostaria de entender melhor o seu Bruno. Diga-me, a senhora costuma dar surra no seu príncipe?

Rio vermelho, 29 de novembro de 2011.

*Estória me contada pelo amigo Gabriel Lopes Pontes.

sábado, 10 de novembro de 2012

Das desventuras de se ir ao concerto


Assistir um concerto de música clássica em Salvador, terra da música axé, requer concentração, obstinação e, sobretudo, nervos de aço. Uma tremenda contradição, considerando-se que concertos de música clássica deveriam ser eventos culturais de propriedades relaxantes que nos transportam para um mundo onírico de sensações auditivas. Digo isto com a experiência de quem não perde uma apresentação de nossa querida orquestra sinfônica, que completa 30 anos de existência no decorrente ano.

Ao escolher um assento para assistir o último concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia, um dos raros programas culturais noturnos para o qual me animo a deixar o conforto de meu lar, apliquei uma técnica desenvolvida por mim mesmo, baseada em minhas desafortunadas experiências. É um evento de poltrona livre, isto é, os assentos não são demarcados, é preciso saber escolhê-los com sabedoria.

         Nunca me sento muito próximo a velhinhas. Uma só velhinha, é um ser inofensivo, um doce de pessoa como todas as velhinhas geralmente o são. Entretanto, um bando delas, sentadas lado a lado na fila logo à frente, à atrás ou ao lado, pode ser um pesadelo. Todos os seus pensamentos e emoções precisam ser verbalizados durante o espetáculo e, nesta idade, senhoras idosas desenvolvem o tom de voz dos contraltos, de modo que, mesmo sussurrando, elas são perfeitamente audíveis. “Ele teve ter menos que quarenta.”, cochichou, certa vez, uma para a coleguinha ao lado, em referência à idade de nosso jovem maestro. Outra disse: “Agora vai tocar o violino.” E, como num passe de mágica, realmente os violinos começaram a tocar harmoniosamente. Logo atrás de mim, uma delas sabia a música de cor e resolveu solfejá-la como se estivesse no banho. Outra tinha consigo uma dessas bolsinhas de mão que fazem um click toda vez que são abertas ou fechadas. Repetidas vezes, ela abria e fechava a sua bolsinha para tirar e colocar de volta uma latinha de pastilhas que fazia questão de chacoalhá-la antes de abri-la.  Portanto, evitem sentar-se muito próximo a estas senhoras.

         Indivíduos muito afeiçoados a seus celulares também devem ser evitados. Fique atento àqueles que antes de começar o concerto estão muito concentrados em seus brinquedinhos ao invés de estarem lendo o programa do concerto, por exemplo. Isto pode significar que eles não estão emocionalmente preparados para se separar de seus aparelhos por algum momento durante a sessão, e se a luz da tela o incomodar cada vez que o celular é verificado na angústia da espera por aquela mensagem muito importante, ou para saber se alguém telefonou, é melhor sentar-se bem longe destes cidadãos, pois é aporrinhação na certa!

         Crianças são geralmente pequenos seres chatos e inquietos por natureza, e que deveriam ficar em casa toda vez que vou ao concerto. Entretanto, há pais que entendem que elas devem ter um pouco de cultura e por isso as arrastam para um concerto de música clássica cuja programação tem duração de mais de duas horas, pobre coitadinhos. Ora, se para um adulto já não é tarefa fácil ficar duas horas sentados comportadamente, quem dirá para uma criança agitada. Alie-se a isto, o fato de a mãe ser uma neurótica e mandona que quer dominar a fera durante o espetáculo. Deu para ter uma ideia, né? Evito sentar próximo a pequerruchos, só de minhas lindas sobrinhas, quando as levo, pois estas são uns anjinhos. Neste concerto em particular, eu havia escolhido um assento no primeiro setor a poucas filas do palco, mas fui expulso de lá por um enxame de crianças que chegou inesperadamente não se sabe de onde. Eram alunos de uma escolinha indo ao seu primeiro concerto, que maravilha, meu coração palpitou.

         Se houver uma moça bonita e desacompanhada, certamente sentarei ao seu lado para lhe impressionar com a minha erudição – ou com a falta dela – durante os breves intervalos. E foi justamente isto que fiz, depois de sentar em quatro lugares diferentes, seguindo aquela minha técnica, antes de começar o espetáculo. Sentei-me finalmente na ponta de uma fila ao lado de uma bela e jovem morena.

         Cumprimentei-a com um largo sorriso ao sentar-me ao seu lado, ao que ela me correspondeu mostrando-me os seus perfeitos dentes. “O programa de hoje está ótimo.”, disse-lhe mostrando-lhe o programa daquela noite, percebi que ela não possuía um. “Nunca vim num concerto antes, é a minha primeira vez.”, disse ela humildemente, o que só a fez parecer mais bela. “Você vai gostar, é só entregar-se à musica.”, tranquilizei-a. “O concerto já começa.”, disse-lhe. Em seguida, os músicos estraram no palco ocupando os seus lugares e todos aplaudimos, como é de costume. Logo depois, veio o maestro, empertigado, novos aplausos e teve início o concerto, quando ele agitou a batuta no ar.

         Mal o concerto começara e a bela mocinha transformou-se numa bruxa, ao sacar de sua bolsa o seu Samsung Galaxy, cuja tela brilhava feito um farol de caminhão. Enviou um texto de mensagem que não demorou a ser respondido. Mais um instante, e lá se foi ela novamente enviando outra mensagem e recebendo a replica. Olhei em volta, a casa estava lotada e eu preso naquela armadilha. As trocas de mensagens não paravam, a conversa deveria estar mais interessante que o concerto. Lá pelas tantas, ela aproximou-se e perguntou sussurrando em meu ouvido se o concerto ainda demoraria muito, ao que respondi que não havia hora certa para acabar e que a palavra concerto derivava da expressão latina que queria dizer “não acaba nunca”, e que se ela tinha algum compromisso, melhor que se apresasse ou, do contrário, chegaria atrasada. Jamais se sente ao lado de uma mulher com cara de anjinho, nunca se sabe que modelo de aparelho celular ela carrega na bolsa!

Rio Vermelho, 8 de novembro de 2012.