Hoje eu faço um mea-culpa. Esta
minha postura é tão rara quanto a ouvir o belo canto do uirapuru no coração da
floresta amazônica. Devo admitir que sou orgulhoso o bastante para não praticar
tais atos de humildade e engrandecimento da alma. No entanto, achei que tinha
passado dos limites e só uma autocrítica pública me livraria do sentimento de
culpa que tem me consumido.
A minha insensatez tem se expressado sob forma de queixas àqueles
que fazem do aparelho celular não apenas um instrumento destinado à comunicação,
mas como um objeto de atrito social. Seu uso descontrolado em qualquer ocasião,
mesmo nos lugares onde são expressamente proibidos tem gerado conflitos entre
aqueles que possuem bom senso e os que não sabem para que isto serve.
Ontem fui ao cinema. Sim, este mesmo que é a fonte do meu lazer,
também é a causa de meus dissabores. A linda moça veio e acomodou-se ao meu
lado e antes que o filme iniciasse, ela sacou de sua bolsa o aparelho celular e
checou as mensagens ou seja lá o que fosse de tão importante. Como todos sabem,
ao ser acionada, a tela do aparelho celular emite uma brilhante e continua luz.
Isto não representaria inconveniente algum se não ocorresse numa sala escura
como a do cinema, cuja principal característica é ficar um breu durante a
exibição do filme. No escuro, a luz do celular provoca desconforto à visão dos
que estão sentados ao lado usuário do aparelho, assim como daqueles localizados
logo atrás dele. Não tem como não se sentir incomodado numa situação como esta.
Eu tento não ser intolerante – ó, Deus, como eu tento! – me
contenho em não protestar até que o filme comesse e ainda assim sempre dou uma
margem de tolerância de mais cinco minutos para que o proprietário do celular
possa se acostumar com a ideia de ficar longe dele pelos próximos longos minutos
que durar o filme. No entanto, passados os meus tais cinco minutos de
tolerância, a minha vizinha continuou ligando de forma intermitente o seu aparelho
e sua luz ao lado a me incomodar. Como aquilo me parecia que não teria fim se
eu não interferisse, pedi-lhe educadamente que desligasse aquela merda. Ela
disse que sim e pôs o aparelho dentro de sua grande bolsa. Constrange-me pedir
a um adulto para se comportar.
Não
demorou cinco minutos, no entanto, e lá estava ela novamente de olho no
celular. Desta vez, entretanto, ela teve o cuidado de acendê-lo dentro da
bolsa. Provavelmente o excesso de tintura loura em seus longos fios de cabelos
tenha lhe subtraído a pouca quantidade que ainda lhe restava de inteligência,
pois só a ignorância justificava o fato de ela não perceber que mesmo estando parcialmente
dentro de uma enorme bolsa, o seu celular continuava a emitir luz e a incomodar
as pessoas ao seu redor.
Eu fiquei refletindo sobre o que faria uma pessoa adulta e aparentemente
sadia como ela insistir no erro. E foi neste instante que um sentimento de
culpa se apoderou de mim e me fez ter vergonha de mim mesmo. A personagem do
filme que assistíamos admitia naquele mesmo instante que ela era viciada em
sexo – não vá assistir a Ninfomaníaca esperando ver cenas picantes, pois este
filme é apropriado a passar na Sessão da Tarde sem cortes. Se quer ver
sacanagem explícita com história, assista Azul é a Cor Mais Quente, é até
educativo. – e que não podia controlar aquele vício que era maior que ela mesma.
Então eu acordei para o fato que o mesmo acontecia com a criatura ao meu lado.
A coitada era uma viciada em celular – não no aparelho propriamente, mas na necessidade
de estar conectada à internet. Sua vida não valia coisa alguma se ela não
pudesse a cada cinco minutinhos dar uma olhada na tela do aparelho. A sua vida
devia ser tão vazia quanto a da protagonista do filme, que contava angustiada o
seu drama, num tom confessional, a um desconhecido. A vida da personagem ao meu
lado e assim como à da tela era preenchida pelo vazio e pelo equívoco. Checar o
celular a cada instante na expectativa de que daquela vez houvesse realmente
algo de importante que desse sentido à sua existência deveria ser o seu
martírio.
Eu me senti um injusto e insensível por estar exigindo de um
viciado algo que ele não tem poder para controlar. Era como pedir a um alcoólatra
para não tomar o primeiro gole do dia ou ao dependente químico para se abster de
dar aquela cheirada que lhe proporcionará conforto. Assim como há em curso uma
epidemia de crack aniquilando a nossa juventude sem que se faça nada a
respeito, uma multidão de viciados em estar atualizado através da internet se
multiplica silenciosamente sem que as autoridades de saúde pública atentem para
o fato.
Eu não
sou um viciado em coisa alguma, mas gostaria. Todos os anos eu me prometo que
adquirirei algum vício, mas sempre fracasso até neste intento. Mas sou capaz de
entender e de imaginar a aflição e tormento de um viciado e o inferno que deve
ser para aquela moça ficar desprovida de seu aparelho celular por alguns minutos
durante a exibição de um filme. Não checar as suas mensagens a cada instante,
não ver a última postagem do amigo na rede social deve ser para ela uma tortura
tal como deve ser para o político praticar um único ato honesto uma vez na
vida. É algo incompreensível para a sua compreensão enferma e por isso não me
surpreendo se ela tiver me considerado um homem mau. Ela merece a minha
compaixão e não a recriminação. Depois do filme, ofereci-lhe o telefone de um
amigo, um excelente psiquiatra. Fiz bem?
Rio Vermelho, 22 de
janeiro de 2014.