Nos primeiros dias do tão chamado isolamento social, por
conta da pandemia causada pelo novo corona vírus, quando a recomendação das autoridades
da saúde era algo ainda incerto na compreensão das pessoas, talvez pelo fato do
sugerido procedimento fosse uma novidade ainda desconhecida aos cidadãos e seu
efeito benéfico ainda suspeitava dúvidas, eu fazia meio isolamento.
Por conta do “fique em casa”, o largo da Mariquita, à
noite, de tão animado e movimentado, se tornara um deserto desolado de pessoas.
Os bares resistiam abertos, mas um ou outro gato pingado se arriscava a sentar
e pedir uma cerveja, talvez por medo de ser infectado ou de desobedecer às autoridades.
O mesmo acontecia com a barraca da baiana do acarajé, suas longas filas, para
pagar e receber o quitute, desapareceram, não se via mosca. A barraca do cachorro
quente, essa nem de fala. Os casais de namorados, que sentavam-se nos bancos de
madeira ao redor do pátio do largo, foram namorar dentro de casa, provavelmente,
pois decerto não deixaram de praticar tal prazerosa atividade. As crianças, que
tinham no largo um verdadeiro playground, onde corriam de um lado para o outro,
assistidas pelos olhos atentos dos pais, agora estavam amarradas nos apartamentos.
O único ponto positivo disso foi o fim da poluição sonora, promovida pela estridente
música ao vivo dos bares e grupos musicais ambulantes. Por minha vez, eu levava
o meu livro e sentava-me no mesmo banco de sempre, abaixo de uma potente luminária,
tendo à minha retaguarda uma grande viatura da polícia, com um pelotão de meia
dúzia de homens que guardavam pela minha segurança e a do local.
Pois bem, estava eu, solitário, entretido em minha
leitura, quando fui interrompido por um rapaz bem apresentado – parecia que
acabara de tomar banho e vestia-se com uma bermuda azul, folgada, que lhe
cobria os joelhos e uma camiseta regata vermelha; se não estivesse de sandálias,
o confundiria com um jogador de basquete. Foi logo falando:
— Roubaram minha motocicleta.
Do jeito aflito com que anunciou o ocorrido, achei que
o roubo acabara de acontecer.
— Pede ajuda à polícia, eles estão logo ali — sugeri,
pronto para voltar à minha leitura. Apesar de eu estar numa praça, não queria
conversa com ninguém; como expliquei, meu isolamento pessoal era pela metade.
Ir para a praça, para ler, tudo bem, mas sem ficar perto ou conversar com
ninguém. Geralmente sou bastante sociável, até sorrio para desconhecidos e os
cumprimento, como se morasse numa pequena cidadezinha do interior.
— Agora é tarde demais, isso aconteceu outro dia – ele
suspirou.
— Ah... — disse e voltei o olhar para a página do
livro.
— Posso me sentar aqui? — perguntou, já sentando.
— Pode, sim. Mas sente no outro banco, vamos manter a
tal distância social. Não queremos pegar o vírus, não é mesmo?
O rapaz sentou-se no banco que lhe indiquei, mas não
desistiu de puxar conversa. Eu já imaginava que ia ouvir mais sobre sua má
sorte. E, como eu previra, continuou:
— Minha mãe é que tinha razão. Ela dizia para eu não
trabalhar depois das 22h, mas eu fui teimoso.
— Então foi um assalto e levaram a sua motocicleta —
resumi, sem tirar os olhos do livro.
—No Campo Grande. Levaram o meu instrumento de
trabalho, sou moto-taxi.
Ao ouvi-lo, achei aquela situação
familiar e previ que ele tentaria me dar uma mordida. Para pintar a coisa com
cores mais dramáticas, ele acrescentou:
— Então minha mãe me pôs para
fora de casa. Trancou a porta e foi viajar.
Mas não ficou só nisso. Contou-me
que a mãe era muito severa e essa era a maneira de castigá-lo, por ele não ter
dado ouvidos a ela. Lembrei-me da minha mãe, tão humana, um doce de pessoa,
como todas as mães deveriam ser.
— E você está na rua desde então?
— aquela história começava a ficar sinistra, não combinava com a sua aparência
asseada e as roupas limpas que vestia.
— Dormindo em banco de praça. — E
logo em seguida, deu o movimento pelo qual eu já esperava:
— Me arranje um
dinheiro pra eu comprar um cachorro-quente.
— Não trago nada comigo, nem o
celular. Só este livro. — E não trazia mesmo.
— Ainda não comi nada hoje — lamentou-se.
— Vai lá na barraca do
cachorro-quente e conte sua história — sugeri. — Talvez eles lhe vendam fiado.
— É engraçado — ele argumentou.
—, quando eu fazia ponto no centro, aparecia um monte de veado me oferecendo cem
reais para eu comer eles. — Fez uma pose de Mister Universo, estufando o peito,
mas faltava-lhe o porte de um Arnold Schwarzenegger. Não olhava para ele, mas
percebi o gesto pelo rabo do olho. — E agora que eu preciso de dinheiro, não
encontro nenhum!
— A vida tem dessas ironias — filosofei.
— Mas também não lhe posso ser útil nem nesse quesito.
— Não tem nem dois reais?
— Como já disse, não trouxe
dinheiro e nem o celular.
Ficamos em silêncio, daqueles que
incomodam. Para mim, a conversa já tinha terminado. Eu não tirava os olhos do
livro, era uma história muito interessante, a do livro. O rapaz se levantou e,
me desejando boa noite, afastou-se. Por minha vez, desejei-lhe boa sorte em sua
procura.
Não demorou muito e ele já estava
sentado em outro banco, a duzentos metros. Ao seu lado havia outro incauto,
talvez ele tenha mais sorte com esse, pensei. De onde eu estava, era impossível
ouvi-los, mas podia jurar que ele recontava a sua trágica história e oferecia
os seus favores por cem módicos reais – talvez até com um desconto promocional
de pandemia. Enquanto o outro prestava atenção, compartilhava com o desventurado
seu saco de pipocas. Provavelmente foi no momento que aquele falou que estava à
procura de um veado generoso, que o outro se levantou e foi embora, deixando o mal
logrado rapaz ficar com o saco de pipocas.
O diabo dessa pandemia não está
fácil pra ninguém!
Rio vermelho, 20 de
abril de 2020.