A praça pública, este lugar aberto onde os acontecimentos mundanos acontecem, o camelô comercializa, o pregador anuncia o fim do mundo, o poeta recita versos, o pedinte expõe as suas mazelas, mudou-se para dentro do ônibus, e viajar de coletivo ‒ como o baiano chama o meio urbano de transporte ‒ dentro da cidade soteropolitana, tornou-se um exercício de tolerância, e haja paciência! Quando desembarca um, sobe outro logo em seguida, continuamente ao longo da viagem.
Quem nunca teve o breve sossego do traslado
urbano interrompido por uma voz altissonante, desculpando-se por incomodar e,
em seguida, anunciar a venda de doces e salgados que irão ajudar a passar o
tempo da viagem? Ou de uma pomada milagrosa ‒ com cheiro forte de cânfora ‒ capaz de aliviar
o cansaço das pernas e o suplício do reumatismo? Por sinal, esta milagrosa
porção se parece muito com outra que tira mancha de móveis e pisos, e se não
for a mesma, é parente em primeiro grau da outra. Capinhas para guardar a
identidade e, agora a carteira de vacinação também são oferecidas. Escovas de
dente, fones de ouvido, cabos USB, meias, sabonetes de aroeira, balas de
gengibre, raladores de verdura, coadores de café, canetas, palavras-cruzadas, a
lista é infinita! Alguns carregam uma grande sacola com um verdadeiro bazar árabe
dentro. Para quem nunca ouviu falar num bazar árabe, é uma loja de propriedade
de um cidadão de origem do oriente médio, que vende todo tipo quinquilharia e
miudeza.
Entretanto, há aqueles que não vendem coisa
alguma, mas pedem ajuda para o tratamento daquela filha de nove anos que está
em casa acamada e que não fez ainda nenhuma refeição hoje e que padece de uma
doença no sangue muito rara e complicada, que o SUS não trata. Obviamente o remédio
custa muito caro e a filha não o toma há dois dias. Bem, essa doença não me parece
ser tão rara assim, pois já ouvi o mesmo apelo uma dúzia de vezes e acredito
que se trata de algum vírus que só ataca meninas. Já é hora das autoridades
sanitárias fazerem algo a respeito!
Não sei se já repararam na semelhança do
discurso introdutório desses vendedores ambulantes e pedintes, o timbre de voz,
a forma que pronunciam certas palavras. Parecem que frequentaram o mesmo Curso de
Oratória para Ambulantes e Pedintes da Cidade de Salvador. Falam como se
tivessem tido o mesmo mestre. Eu não estou aqui para pedir nada a ninguém, mas
pedem. Não direi que tenho crianças em casa me esperando para que levem um
pouco de comida para matar a fome, mas dizem. Sempre evocam o povo de Deus que
viaja no coletivo. Buscam cumplicidade com o ouvinte ao cobrar dele resposta em
uníssono ao cumprimento do bom dia, ou boa tarde, como nos programas de
auditório. O tom é dramático e chantagioso, daqueles que tencionam dobrá-lo
pelo apelo ao seu sentimento de culpa. Manipular sentimentos é uma arte, políticos
em véspera de eleição que o digam!
O mais criativo apelo que já ouvi foi de um
cidadão apresentando-se como um extraterrestre ‒ era tão feio que apostaria as minhas tranças que era um mesmo! ‒, podia estar abduzindo pessoas, mas estava
ali pedindo humildemente, que não queria dinheiro, mas um pouco de combustível aeroespacial
para seu disco-voador, para voltar para casa, mas, na impossibilidade de
conseguir este, ele aceitaria algumas moedas!
Rio Vermelho, 5 de outubro de 2022.