A faxineira veio me contar uma coisa dias a trás, no seu dia aqui em casa. Sempre tão bem humorada, Lindalva ‒ nome fictício para Lindalva ‒estava muito aborrecida. O marido, que faz consertos e arremedos em eletrodomésticos, tinha sido assaltado naquela fatídica manhã, a caminho da padaria.
Como é de se imaginar, só
levaram-lhe o aparelho de celular ‒
o queridinho
dos assaltantes da atualidade, já se foi o tempo em que levar uma
correntinha de ouro era um bom negócio, um celular de configurações avançadas é
liquidez imediata! ‒, com
apenas três meses de uso e ainda sete prestações futuras para quitá-lo. Doloroso
ter um bem tão necessário hoje em dia roubado, e ainda mais sacrificar-se para
pagá-lo sem mais possuí-lo.
Quem
já teve o celular roubado sabe muito bem a aporrinhação que é recuperar as
informações contidas no antigo, trocar senhas desse e daquele aplicativo, reaver
contatos profissionais e afetivos, chorar por todas as lindas fotos de pores do
sol perdidas para sempre, enfim, um pesadelo. Em se tratando de um trabalhar
autônomo como o marido da fictícia Lindalva, isso pode significar a sua ruina
por algum tempo, uma vez que a sua empresa estava contida no miserável aparelhinho.
Na semana seguinte, ela me
atualizou sobre a tragédia de seu consorte ‒
ela é a rainha do lar e proprietária da casa onde moram: inconformado, o
marido foi se queixar com as autoridades locais. Eles moram lá para as bandas
de Periperi, zona sob a jurisdição de uma facção do tráfico. Assaltos na região
são proibidos pela tal facção ‒
não se rouba vizinho e ponto final ‒, por isso o aparelho foi devolvido
em menos de 24 horas, com um pedido de desculpas. Não duvido que o assaltante
tenha sido julgado na mesma hora e sentenciado no instante seguinte e a pena
executada no mesmo fôlego. Melhor assim, o meio ambiente agradece a economia
com papelada e burocracia.
Enquanto isso, no Rio Vermelho,
onde os aluguéis são pela hora da morte e o IPTU doe no bolso como uma nevralgia
dental num feriado prolongado, os assaltos foram autorizados pela facção que
comanda o bairro. Fizeram um arrastão aqui semana passada. Cinco amigos já tiveram
os seus celulares levados ‒
fora os casos que sei só de ouvir falar ‒, um deles está pagando simultaneamente
as prestações de três aparelhos! A vendedora da loja de celular quando o vê
adentrando a loja, o recebe com um largo sorriso de satisfação e braços abertos
e a seguinte saudação: “Meu cliente favorito!”. Cada vez que vai embora, o
coitado leva um aparelho mais caro e sofisticado. Estou torcendo para que este
não levem antes de ele quitá-lo.
Uma
senhora muito distinta e benfeitora aqui do bairro foi uma das vítimas desse
bem sucedido arrastão. Levaram-lhe a Vuitton com celular e tudo dentro ‒ o assaltante
mal sabia que a bolsa valia quarenta vezes mais que o caríssimo aparelho de
celular. Tal é o apreço que ela merece de nossa comunidade, que a notícia se
espalhou pelo bairro como fogo no mato seco. “Dona Menina foi assaltada!"
A
polícia foi acionada e mostrou serviço. Em menos de duas horas a rica bolsa e o
seu conteúdo foram devolvidos intactos à proprietária e o assaltante, um notório
vagabundo aqui das redondezas do largo de Santana, onde se deu o incidente,
preso em flagrante, foi parar na delegacia. O caso todo poderia ter sido dado
por encerrado e uma demonstração da eficiência de nossa polícia celebrada. Mas
infelizmente o trabalho da polícia parece um conto saído de um livro de Kafka;
mais adiante explico melhor. Dois dias depois, quem foi visto serelepe no largo
de Santana? Escondam suas bolsas e celulares!
Essa
situação complexa é fácil de entender: a polícia tem a insensata tarefa de
enxugar gelo no molhado. Isto porque, como se legisla em causa própria nesse
país, as leis foram feitas para manter os bandidos fora da cadeia e suas vítimas
aprisionadas na revolta pela injustiça e no medo.
Rio Vermelho, 19 de maio de 2023.