quarta-feira, 24 de maio de 2023

Se vai soltar, pra quê prender?

A faxineira veio me contar uma coisa dias a trás, no seu dia aqui em casa. Sempre tão bem humorada, Lindalva ‒ nome fictício para Lindalva ‒estava muito aborrecida. O marido, que faz consertos e arremedos em eletrodomésticos, tinha sido assaltado naquela fatídica manhã, a caminho da padaria.

Como é de se imaginar, só levaram-lhe o aparelho de celular o queridinho dos assaltantes da atualidade, já se foi o tempo em que levar uma correntinha de ouro era um bom negócio, um celular de configurações avançadas é liquidez imediata! ‒, com apenas três meses de uso e ainda sete prestações futuras para quitá-lo. Doloroso ter um bem tão necessário hoje em dia roubado, e ainda mais sacrificar-se para pagá-lo sem mais possuí-lo.

Quem já teve o celular roubado sabe muito bem a aporrinhação que é recuperar as informações contidas no antigo, trocar senhas desse e daquele aplicativo, reaver contatos profissionais e afetivos, chorar por todas as lindas fotos de pores do sol perdidas para sempre, enfim, um pesadelo. Em se tratando de um trabalhar autônomo como o marido da fictícia Lindalva, isso pode significar a sua ruina por algum tempo, uma vez que a sua empresa estava contida no miserável aparelhinho.

Na semana seguinte, ela me atualizou sobre a tragédia de seu consorte ‒ ela é a rainha do lar e proprietária da casa onde moram: inconformado, o marido foi se queixar com as autoridades locais. Eles moram lá para as bandas de Periperi, zona sob a jurisdição de uma facção do tráfico. Assaltos na região são proibidos pela tal facção ‒ não se rouba vizinho e ponto final ‒, por isso o aparelho foi devolvido em menos de 24 horas, com um pedido de desculpas. Não duvido que o assaltante tenha sido julgado na mesma hora e sentenciado no instante seguinte e a pena executada no mesmo fôlego. Melhor assim, o meio ambiente agradece a economia com papelada e burocracia.

Enquanto isso, no Rio Vermelho, onde os aluguéis são pela hora da morte e o IPTU doe no bolso como uma nevralgia dental num feriado prolongado, os assaltos foram autorizados pela facção que comanda o bairro. Fizeram um arrastão aqui semana passada. Cinco amigos já tiveram os seus celulares levados ‒ fora os casos que sei só de ouvir falar ‒, um deles está pagando simultaneamente as prestações de três aparelhos! A vendedora da loja de celular quando o vê adentrando a loja, o recebe com um largo sorriso de satisfação e braços abertos e a seguinte saudação: “Meu cliente favorito!”. Cada vez que vai embora, o coitado leva um aparelho mais caro e sofisticado. Estou torcendo para que este não levem antes de ele quitá-lo.

Uma senhora muito distinta e benfeitora aqui do bairro foi uma das vítimas desse bem sucedido arrastão. Levaram-lhe a Vuitton com celular e tudo dentro ‒ o assaltante mal sabia que a bolsa valia quarenta vezes mais que o caríssimo aparelho de celular. Tal é o apreço que ela merece de nossa comunidade, que a notícia se espalhou pelo bairro como fogo no mato seco. “Dona Menina foi assaltada!"

A polícia foi acionada e mostrou serviço. Em menos de duas horas a rica bolsa e o seu conteúdo foram devolvidos intactos à proprietária e o assaltante, um notório vagabundo aqui das redondezas do largo de Santana, onde se deu o incidente, preso em flagrante, foi parar na delegacia. O caso todo poderia ter sido dado por encerrado e uma demonstração da eficiência de nossa polícia celebrada. Mas infelizmente o trabalho da polícia parece um conto saído de um livro de Kafka; mais adiante explico melhor. Dois dias depois, quem foi visto serelepe no largo de Santana? Escondam suas bolsas e celulares!

Essa situação complexa é fácil de entender: a polícia tem a insensata tarefa de enxugar gelo no molhado. Isto porque, como se legisla em causa própria nesse país, as leis foram feitas para manter os bandidos fora da cadeia e suas vítimas aprisionadas na revolta pela injustiça e no medo.

 

 

Rio Vermelho, 19 de maio de 2023.