quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O que foi que aconteceu com a festa de Iemanjá?

    Não sou saudosista e nem sempre acho que as coisas como eram feitas antigamente eram as melhores. Reconheço que há coisas que mudam para a melhor, e outras, infelizmente, nem tanto.

    Como morador antigo do Rio Vermelho, vim para cá em 1964, portanto, lá se vão 60 anos – há gente aqui há mais tempo que eu –, assisti a lenta transformação da festa de Iemanjá, que já foi escrita com ipsilone.

    Para quem desconhece, vai aqui um breve resumo de sua origem: tudo começou com uma oferenda dos pescadores do Rio Vermelho, rogando a Iemanjá que aquele ano de 1923 – há 100 anos! – não fosse de escassez de peixe como nos dois anos anteriores. Naquele ano, graças a Iemanjá, não faltou peixe para quem quis. Como era de se esperar, nos anos que se seguiram a oferenda foi renovada e a prosperidade continuada. E o ato devoto consolidou-se como uma festa popular no calendário soteropolitano.

    Eu recordo que largos, praças, vias à beira-mar e transversais do Rio Vermelho eram tomadas por comerciantes de bebida e comida que montavam seus bares nômades, lado a lado, sob barracas de telhado de lona e mesas e bancos de madeira feitos artesanalmente – havia também barraquinhas de tiro ao alvo e outros jogos e parquinho de diversão. Para que não se misturassem com os do vizinho, e não houvesse dúvida sobre qual pertence a quem, cada barraqueiro pintava os tampos de suas mesas e bancos com desenhos geométricos semelhantes que formavam uma composição visual rica ao serem empilhados, uns deitados sobre os outros, durante o dia – estas composições foram objetos de ensaios fotográficos de renomados fotógrafos sobre a cultura popular – antes da festa recomeçar. Sim, porque naqueles tempos, as comemorações à rainha do mar duravam até duas semanas. A parte profana da festa ficava a encargo desses comerciantes temporários, que podiam vender que bebida fosse e cerveja de qualquer marca.

    Havia um quê de improviso, de genuíno, espontaneidade e ingenuidade simplória na organização da festividade, que atraía devotos trazendo as suas oferendas a Iemanjá, foliões e curiosos de todos os bairros da cidade. O dinheiro para a produção da festa ficava por conta do arrecadado no comércio local, da doação de simpatizantes e na venda de camisetas alusivas aos festejos, cujos organizadores eram os pescadores da colônia de pesca do Rio Vermelho. A ajuda financeira da prefeitura era coisa incerta – e quando vinha, era minguada – e só era garantida mesmo em ano de eleição. Quantas foram as vezes que os pescadores penaram para conseguir essa ajuda.

    Algo que eu tenho gravado em minha memória é o perfume adocicado de uma flor branca chamada angélica, que era vendida às centenas ao longo das ruas para que fossem oferecidas a Iemanjá. Não existiam outras, estas eram como se fossem as oficiais para oferenda.

    Quando hoje vejo a superprodução que se tornou a festa de Iemanjá atraindo milhares de pessoas, de não haver espaço para andar, com seu patrocínio de marca de cerveja, a oferta inesgotável dessa marca de bebida à venda no número infinito de vendedores ambulantes com caixas de isopor – estes substituíram os antigos barraqueiros com seus banquinhos e mesas de madeiras coloridos –, suas centenas de festas privadas pagantes em bares e restaurantes, dezenas de palcos de espetáculos musicais para todos os gostos, vendedores de flores – as angélicas foram substituídas por rosas – e outros penduricalhos e o prefeito a jactar-se na mídia sobre os milhões que o município gastou na festança, me pergunto, onde foi parar Iemanjá no meio dessa sandice toda.   

  

       Rio Vermelho, 1 de fevereiro de 2024.

domingo, 7 de janeiro de 2024

E que venha mais um ano novo.

Outro dia uma amiga respondeu à minha mensagem natalina, pelo aplicativo, dizendo que ela estava bem e com muita saúde e resistência às pragas do mundo, e que os idosos da família já estavam se despedindo, mas que já vinha reabastecimento do outro lado, certamente uma alusão aos jovens da família e a outros que já estão a caminho. Esta transição entre o velho e o jovem é um clássico exemplo da repetição do ciclo da vida, que se renova a cada geração.

O inicio de um ano novo é semelhante a esta repetição, visto por quase todos como um recomeço, um novo ciclo que se reinicia e, por isso, aguardado com entusiasmo e esperança por acontecimentos venturosos.

E já no primeiro dia do ano, encontrei casualmente com a filha de um querido casal de amigos. Ela era uma menina a última vez que a vi, e agora é uma mulher feita, carregando uma barriga de seis meses. Os pais, que só vejo em suas peripécias através das redes sociais, estão de cabelos brancos e têm o privilégio de morarem na encantadora Chapada Diamantina. O pai veio da Alemanha há muitos anos e agora a filha é que mora lá. É a nova geração que faz o caminho de volta, como ela mesma disse.

A mensagem de minha amiga e o reencontro com a filha de meus amigos para mim trazem esse significado de renovação pessoal que o início de um novo ano apenas representa simbolicamente, embora, o que acontece realmente é que o dia 10 do primeiro mês do ano é apenas uma continuação no tempo do dia 31 do último mês do ano que passou. Sem nenhum romantismo, é só uma troca da folhinha velha pela nova, pendurada na parede. Se alguma coisa tiver que mudar de verdade, cabe a cada um de nós fazer esta mudança manualmente e não esperar pelo automático. Algumas pessoas aderem a uma lista de resoluções para o ano novo e merecem aplausos por conseguirem cumpri-la, mesmo que não totalmente, ao passo que outras apenas repetem a lista do ano passado, que é uma cópia idêntica à do ano anterior.

Para todos aqueles que têm me acompanhado neste blog ao longo dos anos, desejo de coração que realizem as suas listas, caso as tenham feito, e, para aqueles que não são tão sistemáticos, desejo o mesmo sucesso também. O meu melhor abraço para todos e feliz ano-novo.

 

Rio Vermelho, 2 de janeiro de 2024.