Não sou saudosista e nem sempre acho que as coisas como eram feitas antigamente eram as melhores. Reconheço que há coisas que mudam para a melhor, e outras, infelizmente, nem tanto.
Como morador antigo do Rio
Vermelho, vim para cá em 1964, portanto, lá se vão 60 anos – há gente aqui há
mais tempo que eu –, assisti a lenta transformação da festa de Iemanjá, que já
foi escrita com ipsilone.
Para quem desconhece, vai aqui um
breve resumo de sua origem: tudo começou com uma oferenda dos pescadores do Rio
Vermelho, rogando a Iemanjá que aquele ano de 1923 – há 100 anos! – não fosse
de escassez de peixe como nos dois anos anteriores. Naquele ano, graças a
Iemanjá, não faltou peixe para quem quis. Como era de se esperar, nos anos que
se seguiram a oferenda foi renovada e a prosperidade continuada. E o ato devoto
consolidou-se como uma festa popular no calendário soteropolitano.
Eu recordo que largos, praças,
vias à beira-mar e transversais do Rio Vermelho eram tomadas por comerciantes
de bebida e comida que montavam seus bares nômades, lado a lado, sob barracas
de telhado de lona e mesas e bancos de madeira feitos artesanalmente – havia também
barraquinhas de tiro ao alvo e outros jogos e parquinho de diversão. Para que
não se misturassem com os do vizinho, e não houvesse dúvida sobre qual pertence
a quem, cada barraqueiro pintava os tampos de suas mesas e bancos com desenhos
geométricos semelhantes que formavam uma composição visual rica ao serem empilhados,
uns deitados sobre os outros, durante o dia – estas composições foram objetos
de ensaios fotográficos de renomados fotógrafos sobre a cultura popular – antes
da festa recomeçar. Sim, porque naqueles tempos, as comemorações à rainha do
mar duravam até duas semanas. A parte profana da festa ficava a encargo desses
comerciantes temporários, que podiam vender que bebida fosse e cerveja de
qualquer marca.
Havia um quê de improviso, de
genuíno, espontaneidade e ingenuidade simplória na organização da festividade,
que atraía devotos trazendo as suas oferendas a Iemanjá, foliões e curiosos de
todos os bairros da cidade. O dinheiro para a produção da festa ficava por
conta do arrecadado no comércio local, da doação de simpatizantes e na venda de
camisetas alusivas aos festejos, cujos organizadores eram os pescadores da
colônia de pesca do Rio Vermelho. A ajuda financeira da prefeitura era coisa
incerta – e quando vinha, era minguada – e só era garantida mesmo em ano de
eleição. Quantas foram as vezes que os pescadores penaram para conseguir essa
ajuda.
Algo que eu tenho gravado em
minha memória é o perfume adocicado de uma flor branca chamada angélica, que
era vendida às centenas ao longo das ruas para que fossem oferecidas a Iemanjá.
Não existiam outras, estas eram como se fossem as oficiais para oferenda.
Quando hoje vejo a superprodução
que se tornou a festa de Iemanjá atraindo milhares de pessoas, de não haver
espaço para andar, com seu patrocínio de marca de cerveja, a oferta inesgotável
dessa marca de bebida à venda no número infinito de vendedores ambulantes com
caixas de isopor – estes substituíram os antigos barraqueiros com seus banquinhos
e mesas de madeiras coloridos –, suas centenas de festas privadas pagantes em bares
e restaurantes, dezenas de palcos de espetáculos musicais para todos os gostos,
vendedores de flores – as angélicas foram substituídas por rosas – e outros penduricalhos
e o prefeito a jactar-se na mídia sobre os milhões que o município gastou na
festança, me pergunto, onde foi parar Iemanjá no meio dessa sandice toda.
Rio Vermelho, 1 de fevereiro de 2024.