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Outro dia acordei disposto. Iria matar alguém. Não no sentido literal, fique claro. Lavei o rosto com sabão barato depois de me escovar. Ao pegar meus óculos, gentilmente com a ponta dos dedos, sobre a bancada da pia, o dito cujo se partiu ao meio. Naquele instante, o meu mundo, onde nada de extraordinário acontece, sofreu um pequeno abalo sísmico. Sou tão dependente de óculos, apesar de enxergar razoavelmente bem sem eles, que a idéia de passar um único dia sem eles me assustou. Tive o mesmo pânico que um astronauta fumante inveterado, voando na Columbia, teve ao descobrir que se esquecera de levar um pacote de cigarros para o fim de semana! É que tenho a natureza um tanto perfeccionista, e sem óculos, não consigo ver o mundo tão perfeito em toda a sua imperfeição.
Na noite anterior, eu tinha encontrado uma solução para desatar o nó em que se encontrava a trama do meu livro. Não via a hora de me sentar nesta cadeira para começar a escrever. Iria matar um personagem que se tornara um incomodo. Infelizmente, só na ficção é que é tão simples se livrar de alguém indesejado. Na vida real, é bem mais trabalhoso e arriscado. Meu personagem já tinha cumprido a sua missão, precisava sair de cena. Se ele tivesse um pouco mais de grana, pouparia sua vida, mando-o para uma viagem longa e sem retorno à Europa, como nas novelas. Embora os óculos quebrados fossem os de longe, não precisaria deles para escrever. Porém, não conseguiria pensar mais em outra coisa se não resolvesse aquele perrengue. É que tenho usado óculos quase a vida inteira. Eles caem bem com meu rosto. Acho até que já nasci de óculos, o que deve ter sido muito doloroso para minha pobre e querida mãe. De modo que, tive de rever minhas prioridades. Deixei para cometer o meu crime mais tarde. Fui procurar um par de óculos velho pelos armários da casa. Porém, o único que encontrei me fazia enxergar pior do que estar sem óculos. Como o Dr. Luciano, meu oftalmologista vitalício, só me atenderia na semana seguinte, como fui informado educadamente pela atendente ao telefone, conclui que esperar tanto, estava fora de questão. Peguei o par de óculos velhos e a ultima receita datada de dois anos atrás. O jeito era fazer um arranjo provisório, trocando as lentes da armação velha utilizando a receita antiga. Um par de lentes novas, embora desatualizado, não sairia por mais que um BigMac com fritas, calculei.
Calcei os meus chinelos e fui até uma das duas óticas aqui do bairro. A vendedora da primeira loja foi muito solicita. Contei-lhe o meu drama e minha urgência. Enfrentaríamos uma crise pior que a do Senado, caso eu não tivesse meus óculos logo, tentei impressioná-la, embora ela parecesse não ter a menor idéia do que eu falava. Feliz de quem é desinformado. Porém, ela tinha o cacoete de vendedora. Quis me empurrar uma armação nova, pois, como me explicou didaticamente, aquela velha que eu levara comigo corria o sério risco de partir ao ser manipulada no laboratório. Resolvi arriscar, afinal, duas armações partidas na mesma semana, seria muito azar! Não se preocupe, prefiro correr o risco, já ouvi a mesma estória antes e nunca nada aconteceu, disse à vendedora. Mas ela estava disposta a impedir que seu patrão ganhasse nem que fosse um único tostão naquela ensolarada manhã. Sua receita já perdeu a validade, insistiu. Nunca ouvi aquilo. Não quis argumentar. Resolvi não perder tempo ali e fui para a outra ótica.
A outra ótica funcionava mais adiante, numa casa onde outrora morou uma senhora que, em minha infância, despertou a minha imaginação inocente de criança. Eu morava numa rua próxima, na rua do Céu. Um nome tão poético para uma rua, mas que cometeram o desatino de, muitos anos depois, subtrair-lhe a dignidade ao rebatizá-la com o nome de um político. Sabe Deus se este merecia mesmo ir ou não para o céu! Pois bem, a dita senhora era uma mulher de pele branquinha, baixinha e gordinha feito uma bola de algodão. Nos meus primeiros anos de vida, eu nunca tinha visto ninguém assim tão gordo e redondo. Como podia ser. Fiquei fascinado. Todos os dias, pouco antes do almoço, ela passava pela esquina de minha rua em direção de sua casa. Eu corria até a esquina e sentava no batente de uma casa só para assistir aquela figura que parecia ter saído de um livro de estórias infantis passar compenetrada sem nem mesmo perceber que eu existia. Guardo aquela imagem em minha memória até hoje. Atendeu-me o próprio dono dá ótica. Um camarada simpático que usava na cabeça um chapeuzinho de pano que hoje anda muito na moda e que lhe conferia, juntamente com o brinco preso na orelha, ares de cantor de boleros.
Contei-lhe o meu pequeno drama. Mostrei-lhe o par de óculos quebrado e que, depois de analisá-lo, ele se incumbiu de dar um remendo que o agüentaria tudo junto por alguns dias. Disse-me, fazendo um misterio, que tinha uma cola especial. Não quis saber detalhes, era especial e pronto. Quanto à receita velha, não haveria problemas. Nada como falar com o proprietário. Desde quando receita antiga tinha validade? O ideal seria uma nova em folha, mas estava esta estava fora de questão. Mostrei-lhe os óculos velhos para o qual queria as lentes. Ao recebê-lo em suas mãos, fez uma expressão admirada.
- Mas que beleza de peça! – exclamou analisando-a.
Comprei aquela beleza no Rio de Janeiro há mais de quinze anos, no tempo das vacas gordas. Eu procurava pelas lojas de Ipanema, numa ensolarada manhã de sábado, uma armação para por novas lentes. E como não encontrasse nenhuma do meu agrado, já estava me dando por vencido quando vi na vitrine de uma lojinha prestes a fechar, esta armação que se distinguia de todas as outras que encontrei, justamente pelo desenho incomum, que camuflava a feiúra do meu rosto, tornado-o mais palatável. É esta! Exclamei comigo mesmo. Parecia de encomenda. Era muito leve e delicada, imitando a aparência de casco de tartaruga. Entrei na loja e fechei negócio. Era a única peça da loja. Não era à toa que a achei tão especial, custava mais que uma geladeira duplex com viva-voz e conexão com internet em banda larga! O estojo, também, era algo de chamar a atenção. Bonito e sofisticado, parecia que era feito de couro de animal em extinção, tal a sua qualidade. Enfim, um bichinho daqueles iria fazer seu papel na natureza, servindo de estojo para meus novos par de óculos. Acredito até que o valor alto da armação era devido àquele estojo, e que, na verdade, eu estava pagando caro por ele e a armação vinha como brinde!
- É uma Giorgio Armani – disse surpreso. - O design desta peça é muito bonito. É raro encontrar por aqui algo tão bonito.
- Não diga. – reagi surpreso.
- É feita de um material excelente. Vai durar a vida toda. A NASA o utiliza para fazer puxador de gaveta espacial. – acrescentou oculista cantor de boleros.
- Não diga.
- Ela está ressequida. Se o senhor me permitir, passarei um produto especial para hidratá-la. Deveria cuidar melhor dela, pois é uma relíquia.
- Não diga. – respondi tentando imaginar se o fabricante daquele produto especial era o mesmo que fazia a cola.
- Há muito tempo eu não via nada semelhante.
- Não diga. E por quanto vai ficar as lentes?
- Vai lhe custar exatamente o preço de um BigMac com fritas. – anunciou depois de consultar a tabela.
Um dia depois, recebia um telefonema. Os óculos estavam prontos e me esperando. Larguei o que fazia. Calcei os meus chinelos e rumei correndo até a loja. A armação parecia nova em folha, como se tivesse saído de fábrica.
- O senhor vai me prometer uma coisa, Sr. Cristiano. – falou o oculista colocando a peça cuidadosamente em minhas mãos - Vai cuidar muito bem dela. Daqui a seis meses, volte aqui para eu hidratá-la novamente.
- Pode ter certeza disso. – respondi satisfeito.
Coloquei-o na cara e voltei para casa, orgulhoso de possuir sobre o nariz uma relíquia do Giorgio Armani, uma vez que sair por aí pelo Rio Vermelho de chinelos e vestindo um de seus famosos paletós, estava fora de questão. Eu já estava pronto para voltar ao meu trabalho e eliminar com estilo o personagem de minha estória.
Rio Vermelho, 18 de julho de 2009.
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Você deve ter percebido a tosca foto acima e deve estar se perguntando quem será aquela mulher com cara de maluca na praia do Rio Vermelho. Esta foto foi tirada uns quarenta anos antes de a câmera digital ter sido inventada, por isso a sua pobre qualidade. Ela é o inegável registro de uma incrível estória vivida pelo meu querido amigo Lula Martins, um grande artista plástico baiano, ex-morador aqui do Rio Vermelho, e que hoje vive na badalada costa da Ilha de Ibiza, no Mediterrâneo. Sujeito do sorriso fácil e franco, cuja aparência física lembra um monge tibetano. Depois de ler minha ultima crônica (Não saio daqui do Rio Vermelho), ele me escreveu saudosista, contando-me o seguinte inesquecível episódio de sua vida.
Era um escaldante verão de 1970. Vivíamos no auge da ditadura militar no Brasil, os Estados Unidos e Vietnã matavam uns aos outros numa sangrenta guerra, havia a guerra fria entre o Ocidente e a União Soviética, os pacifistas gritavam por 'Paz e Amor' e os hippies alegravam as cidades com suas roupas coloridas e propunham uma vida alternativa livre do capitalismo. Também se ouvia muita bossa nova e o rock 'n roll. Lula deveria ter uns vinte e poucos anos, sua casa ficava onde hoje é exatamente a quadra de futebol, ali na praia de Santana, e onde funcionava, também, o seu atelier. O lugar era um casarão antigo mal-tratado pelo tempo, um prédio pitoresco fincado quase na praia, de sorte que a maré ao subir, escorria a água do mar até o chão da sala, trazendo a natureza para dentro de casa. Dizendo assim, parece até poético, mas deveria ser um saco! Naquele memorável verão, Lula, estava organizando com amigos artistas e intelectuais uma viagem de Kombi até o Rio de Janeiro. Formavam um alegre grupo meio hippie. A idéia era recriar a atmosfera de uma versão baiana do Magic-Bus – famoso ônibus psicodélico que fazia o incrível percurso de Amsterdã até a Nova Deli. O motivo era ir assistir ao show de uma famosa cantora americana que andava mexendo com a cabeça da juventude daquela época. Seria na Praça Ozório, onde acontece até hoje em dia a feira hippie, todos os domingos.
Pois num certo final de tarde, Lula estava visitando uma amiga, quando recebeu um telefonema pedindo que voltasse para sua casa imediatamente, pois, uma surpresa lhe aguardava. Ora, a casa de Lula funcionava como uma espécie de pouso para os amigos que vinham de tudo quanto era. As chaves até ficavam num esconderijo que todos tinham conhecimento, de modo que eles eram bem-vindos caso Lula não estivesse em casa para recepcioná-los. Ele logo imaginou que se tratava da chegada de um destes amigos, e rumou de volta para a sua casa para recebê-lo. Ao chegar, confirmou que tinha hospedes ao ver as bagagens amontoadas em sua pequena sala. E como eles não se encontravam em nenhum lugar dentro da casa, só poderiam estar na praia, que ficava exatamente nos fundos. Ao chegar na areia, Lula foi arrebatado pela surpresa de ver aquela mulher que mais parecia uma miragem brincando com as ondas, descalça na beira da praia como uma Venus pop surgindo da espuma. Era surreal demais para ser verdade. Agora volte àquela foto e olhe com mais atenção. Isto mesmo, era a Janis Joplin!
A maioria de vocês se não é fã, deve ter ouvido falar pelo menos uma única vez da Janis Joplin, esta rebelde musa do rock. Imagine o estado de admiração que ficou Lula em ter ali em seu quintal a presença de um ídolo musical. Lula ouvia seu ultimo álbum, "ChipTrill", quase que diariamente, apaixonado por aquela voz forte e vibrante. Ela estar ali diante dele era algo equivalente ao Papa bater em sua porta pedindo um copo de água gelada. Ou à visita do Harry Potter em pessoa. Lula conteve os ímpetos para não dar demonstrações de macaca de auditório, procurou agir com toda naturalidade, como se os Beatles tivessem acabado de sair de sua casa antes de ela chegar; eles também sabiam onde ficavam escondidas as chaves da porta. Como se celebridades daquele naipe entrassem e saíssem a toda hora de sua humilde casa. Enfim, mais uma vez ele teria de fazer sala para uma estrela mundial.
A Janis – olha eu aqui pegando uma intimidade – também agiu com igual naturalidade na presença de Lula e, em poucos minutos, eram como se os dois fossem amigos de longas datas. Ela estava vivendo uma aventura, uma entre muitas, com certeza. Viera ao Brasil acompanhada de um amigo texano. Passara o carnaval no Rio, onde fora impedida de desfilar numa escola de samba devido aos seus trajes hippies. Quase foi presa por fazer topless na praia de Copacabana, uma devassidão para a época. E foi expulsa do presunçoso Copacabana Palace por nadar nua na piscina! Depois de agitar o Rio, viajou de carona durante dois dias em cima de caminhão juntamente com o texano e com um amigo de um amigo surfista carioca que também era amigo de Lula, do tempo que eles pegavam ondas juntos no Arpoador, e que lhe dera o seu endereço para que ela batesse à sua porta pedindo abrigo. Ninguém reconheceu aquela moça que mais parecia uma entre tantas outras hippies estrangeiras que pegavam carona nas estradas.
Eram tempos difíceis para Janis. Ela estava no auge se sua carreira e tentava se livrar do vício que a levaria à morte oito meses mais tarde. Aquele passeio a Salvador a ajudou a ficar longe das drogas por algum tempo, mas não da birita, que era consumida já no café da manhã feito farinha. Nos inesquecíveis dias que se seguiram, Janis ficou cercada de pessoas amigas – Lula e sua turma de inseparáveis amigos - que lhe deram uma força naquele momento pelo qual ela estava passando. A turma hippie que se formara andava alegre para cima e para baixo da cidade do Salvador sem ser incomodada. Janis até achava graça de que ninguém a reconhecesse pois, ela já era muito famosa e assediada em suas andanças pelo mundo.
Mas o ponto alto de sua breve estada foi certa noite quando a turma foi parar numa espelunca na Ladeira do Carmo. Lugar freqüentado por estivadores, marinheiros e mulheres de vida fácil. A boate ficava num casarão antigo, cujas paredes eram caiadas com um tom rosado desbotado, descascadas aqui e ali, e manchadas de mofo pela umidade. O cheiro de fumaça de cigarro e perfume barato se misturavam ao da madeira velha do assoalho. A atmosfera era de festa e alegria. O vozerio dos homens falando alto e as gargalhadas espalhafatosas das mulheres eram abafadas pela música tocada por uma tosca banda de rock que ficava num canto, iluminada por uma meia luz vermelha. Lá pelas tantas, no auge da magia da bebida etílica barata consumida aos excessos, o guitarrista da banda do pretenso cabaré fez um sorriso maroto e deu a introdução da 'Sumertime'. Janis, que estava numa mesa do canto com seus novos amigos, foi tomada de um arrebatamento. Levantou-se e foi até o guitarrista para acertarem o tom da música. E o que se sucedeu depois, foi algo de mágico e inesquecível. Durante as horas que se seguiram, aquela musa do rock, parecia ter entrado em transe, tomada por algum espírito que a transformara numa mulher maravilhosa e eletrizante. Ela cantou uma musica após a outra, acompanhada daquele guitarrista que conhecia todo o seu repertório. Hoje em dia, ele deve contar, também, esta estória a seus netos, tocou com a musa do rock Janis Joplin. O bar inteiro parecia que estava enfeitiçado por aquela voz forte e vibrante cuja voz aguda rasgava o silêncio da noite janela afora. Parecia coisa do outro mundo. A turma das docas aplaudia de pé enfeitiçada por aquela estranha mulher estrangeira. Os amigos baianos de Jane estavam em estado de graça, hipnotizados. As meninas do puteiro de tia Celeste, na casa em frente, interromperam suas atividades profissionais entretendo a clientela, para dar uma chegadinha até a janela para ouvir melhor aquela voz estranha e bela que as vezes parecia um lamento. A bebida corria solta. Todos se divertiam como nunca. Dançavam e cantaram até o nascer do sol sobre a Baia de Todos os Santos.
No dia seguinte, Janis picou a sua mula para a vila hippie de Arembepe, cuja estória você já deve ter ouvido tantas vezes até que virou lenda. Mas certamente ignorava que antes, ela deu uma passadinha aqui no velho Rio Vermelho.
Rio Vermelho, 25 de junho de 2009.