quarta-feira, 1 de julho de 2009

‘Summertime’ na Bahia.

Você deve ter percebido a tosca foto acima e deve estar se perguntando quem será aquela mulher com cara de maluca na praia do Rio Vermelho. Esta foto foi tirada uns quarenta anos antes de a câmera digital ter sido inventada, por isso a sua pobre qualidade. Ela é o inegável registro de uma incrível estória vivida pelo meu querido amigo Lula Martins, um grande artista plástico baiano, ex-morador aqui do Rio Vermelho, e que hoje vive na badalada costa da Ilha de Ibiza, no Mediterrâneo. Sujeito do sorriso fácil e franco, cuja aparência física lembra um monge tibetano. Depois de ler minha ultima crônica (Não saio daqui do Rio Vermelho), ele me escreveu saudosista, contando-me o seguinte inesquecível episódio de sua vida.

Era um escaldante verão de 1970. Vivíamos no auge da ditadura militar no Brasil, os Estados Unidos e Vietnã matavam uns aos outros numa sangrenta guerra, havia a guerra fria entre o Ocidente e a União Soviética, os pacifistas gritavam por 'Paz e Amor' e os hippies alegravam as cidades com suas roupas coloridas e propunham uma vida alternativa livre do capitalismo. Também se ouvia muita bossa nova e o rock 'n roll. Lula deveria ter uns vinte e poucos anos, sua casa ficava onde hoje é exatamente a quadra de futebol, ali na praia de Santana, e onde funcionava, também, o seu atelier. O lugar era um casarão antigo mal-tratado pelo tempo, um prédio pitoresco fincado quase na praia, de sorte que a maré ao subir, escorria a água do mar até o chão da sala, trazendo a natureza para dentro de casa. Dizendo assim, parece até poético, mas deveria ser um saco! Naquele memorável verão, Lula, estava organizando com amigos artistas e intelectuais uma viagem de Kombi até o Rio de Janeiro. Formavam um alegre grupo meio hippie. A idéia era recriar a atmosfera de uma versão baiana do Magic-Bus famoso ônibus psicodélico que fazia o incrível percurso de Amsterdã até a Nova Deli. O motivo era ir assistir ao show de uma famosa cantora americana que andava mexendo com a cabeça da juventude daquela época. Seria na Praça Ozório, onde acontece até hoje em dia a feira hippie, todos os domingos.

Pois num certo final de tarde, Lula estava visitando uma amiga, quando recebeu um telefonema pedindo que voltasse para sua casa imediatamente, pois, uma surpresa lhe aguardava. Ora, a casa de Lula funcionava como uma espécie de pouso para os amigos que vinham de tudo quanto era. As chaves até ficavam num esconderijo que todos tinham conhecimento, de modo que eles eram bem-vindos caso Lula não estivesse em casa para recepcioná-los. Ele logo imaginou que se tratava da chegada de um destes amigos, e rumou de volta para a sua casa para recebê-lo. Ao chegar, confirmou que tinha hospedes ao ver as bagagens amontoadas em sua pequena sala. E como eles não se encontravam em nenhum lugar dentro da casa, só poderiam estar na praia, que ficava exatamente nos fundos. Ao chegar na areia, Lula foi arrebatado pela surpresa de ver aquela mulher que mais parecia uma miragem brincando com as ondas, descalça na beira da praia como uma Venus pop surgindo da espuma. Era surreal demais para ser verdade. Agora volte àquela foto e olhe com mais atenção. Isto mesmo, era a Janis Joplin!

A maioria de vocês se não é fã, deve ter ouvido falar pelo menos uma única vez da Janis Joplin, esta rebelde musa do rock. Imagine o estado de admiração que ficou Lula em ter ali em seu quintal a presença de um ídolo musical. Lula ouvia seu ultimo álbum, "ChipTrill", quase que diariamente, apaixonado por aquela voz forte e vibrante. Ela estar ali diante dele era algo equivalente ao Papa bater em sua porta pedindo um copo de água gelada. Ou à visita do Harry Potter em pessoa. Lula conteve os ímpetos para não dar demonstrações de macaca de auditório, procurou agir com toda naturalidade, como se os Beatles tivessem acabado de sair de sua casa antes de ela chegar; eles também sabiam onde ficavam escondidas as chaves da porta. Como se celebridades daquele naipe entrassem e saíssem a toda hora de sua humilde casa. Enfim, mais uma vez ele teria de fazer sala para uma estrela mundial.

A Janis – olha eu aqui pegando uma intimidade – também agiu com igual naturalidade na presença de Lula e, em poucos minutos, eram como se os dois fossem amigos de longas datas. Ela estava vivendo uma aventura, uma entre muitas, com certeza. Viera ao Brasil acompanhada de um amigo texano. Passara o carnaval no Rio, onde fora impedida de desfilar numa escola de samba devido aos seus trajes hippies. Quase foi presa por fazer topless na praia de Copacabana, uma devassidão para a época. E foi expulsa do presunçoso Copacabana Palace por nadar nua na piscina! Depois de agitar o Rio, viajou de carona durante dois dias em cima de caminhão juntamente com o texano e com um amigo de um amigo surfista carioca que também era amigo de Lula, do tempo que eles pegavam ondas juntos no Arpoador, e que lhe dera o seu endereço para que ela batesse à sua porta pedindo abrigo. Ninguém reconheceu aquela moça que mais parecia uma entre tantas outras hippies estrangeiras que pegavam carona nas estradas.

Eram tempos difíceis para Janis. Ela estava no auge se sua carreira e tentava se livrar do vício que a levaria à morte oito meses mais tarde. Aquele passeio a Salvador a ajudou a ficar longe das drogas por algum tempo, mas não da birita, que era consumida já no café da manhã feito farinha. Nos inesquecíveis dias que se seguiram, Janis ficou cercada de pessoas amigas – Lula e sua turma de inseparáveis amigos - que lhe deram uma força naquele momento pelo qual ela estava passando. A turma hippie que se formara andava alegre para cima e para baixo da cidade do Salvador sem ser incomodada. Janis até achava graça de que ninguém a reconhecesse pois, ela já era muito famosa e assediada em suas andanças pelo mundo.

Mas o ponto alto de sua breve estada foi certa noite quando a turma foi parar numa espelunca na Ladeira do Carmo. Lugar freqüentado por estivadores, marinheiros e mulheres de vida fácil. A boate ficava num casarão antigo, cujas paredes eram caiadas com um tom rosado desbotado, descascadas aqui e ali, e manchadas de mofo pela umidade. O cheiro de fumaça de cigarro e perfume barato se misturavam ao da madeira velha do assoalho. A atmosfera era de festa e alegria. O vozerio dos homens falando alto e as gargalhadas espalhafatosas das mulheres eram abafadas pela música tocada por uma tosca banda de rock que ficava num canto, iluminada por uma meia luz vermelha. Lá pelas tantas, no auge da magia da bebida etílica barata consumida aos excessos, o guitarrista da banda do pretenso cabaré fez um sorriso maroto e deu a introdução da 'Sumertime'. Janis, que estava numa mesa do canto com seus novos amigos, foi tomada de um arrebatamento. Levantou-se e foi até o guitarrista para acertarem o tom da música. E o que se sucedeu depois, foi algo de mágico e inesquecível. Durante as horas que se seguiram, aquela musa do rock, parecia ter entrado em transe, tomada por algum espírito que a transformara numa mulher maravilhosa e eletrizante. Ela cantou uma musica após a outra, acompanhada daquele guitarrista que conhecia todo o seu repertório. Hoje em dia, ele deve contar, também, esta estória a seus netos, tocou com a musa do rock Janis Joplin. O bar inteiro parecia que estava enfeitiçado por aquela voz forte e vibrante cuja voz aguda rasgava o silêncio da noite janela afora. Parecia coisa do outro mundo. A turma das docas aplaudia de pé enfeitiçada por aquela estranha mulher estrangeira. Os amigos baianos de Jane estavam em estado de graça, hipnotizados. As meninas do puteiro de tia Celeste, na casa em frente, interromperam suas atividades profissionais entretendo a clientela, para dar uma chegadinha até a janela para ouvir melhor aquela voz estranha e bela que as vezes parecia um lamento. A bebida corria solta. Todos se divertiam como nunca. Dançavam e cantaram até o nascer do sol sobre a Baia de Todos os Santos.

No dia seguinte, Janis picou a sua mula para a vila hippie de Arembepe, cuja estória você já deve ter ouvido tantas vezes até que virou lenda. Mas certamente ignorava que antes, ela deu uma passadinha aqui no velho Rio Vermelho.

Rio Vermelho, 25 de junho de 2009.

9 comentários:

Cássia disse...

Genial !!!
Cheguei até me emocionar.
Cris, essa sua amiga aqui, roqueira de carteirinha se sentiu homenageada pela sua cronica, sei que não foi pra mim, mas com certeza, todos os fans do bom e velho rock'n roll irão se sentir tocados por essa preciosidade.
O nosso bairro mais boemio também já recebeu em seu solo a Musa nº 1 do Rock'n Roll !!
Obrigada Cris, por essa delícia !!!
beijos

Anônimo disse...

Oi, Cristiano,
Desde a primeira vez que li o seu blog amei seu texto, sua ironia, seu despojamento. Este aqui, sobre a Janis Joplin numa espelunca do Carmo, é especial. Deveria ser publicado pelos jornais, porque é história e também literatura. Como disse a Cássia, acima, uma delícia!

karina rabinovitz disse...

me arrepiei lendo a história!
muito bom!
beijo

Marcia Gomes disse...

Oi, Cristiano. Seu blog é bem legal. Gostei muito dessa história imponderável com a Janis. Beijos e obrigada por me enviar o convite ao seu espaço virtual.

Anônimo disse...

Caro Cristiano,
desculpe a intromissão, mas cássia rocks divulgou seu blog por causa da janis...achei legal!
sei de relatos da passagem de janis pelo Brasil, mas esse foi sensacional e emocionante!
importante frisar que ela era uma artista libertária mesmo...
vi em vídeo uma apresentação dela num programa de tv (acho que inglês) depois dessa viagem. Ela reagiu ironicamente ao apresentador, que perguntou se ela tinha vindo visitar cobra, etc. Ela respondeu elegantemente que tinha conhecido pessoas e lugares maravilhsosos no Brasil...
ela foi um ser humano fantástico!
Cláudio Moreira
aproveite e dê uma visitada no site alternativo carioca www.omartelo.com
valeu!

Surabhi disse...

Dimaiss

Sarnelli disse...

Cristiano , simplesmente genial, como disse a Cassia. Excelente, o episódio . Curti, vendo tudo o que você contou com um toque mágico e com as pitadas leves de humor, que é uma das suas especialidades. Leitura leve e ligeira que nos prende e nos obriga a ir até o fim . Tem mais ?

Cláudia disse...

Cristiano,

Primeira vez que o leio e já estou a indicar aos amigos. Muito legal saber um pouco da história que não é a oficial, mas que nos permite conhecer a atmosfera da Bahia e do Rio Vermelho, desde sempre.

Parabéns pelo texto excelente!

Prof. Sérgio Moraes | Biomédico - Especialista em Bioimagem disse...

Emocionante essa história, vai ficar guardada em meu coração como se eu estivesse vivido também ao lado dela nessa época. Perfeito saber desses detalhes que não conhecemos.

Abraço cara, muito bom o seu blog, adorei!