quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Como num filme de Capra.

É raro, mas não impossível, sermos surpreendidos por gestos de solidariedade e desprendimento em momentos em que somos apanhados por situações adversas, e mais ainda quando estes gestos partem de quem menos esperamos ou de desconhecidos. Eu fico emocionado de encher os olhos de lágrimas quando tomo conhecimento dessas situações, é como ver um filme de Capra ou ver uma pintura de Rockwell. Para quem nunca ouviu falar, Frank Capra, um diretor americano, dirigiu comédias entre as décadas de 20 e 60, seus filmes carregam uma mensagem geralmente otimista e clara sobre o lado bondoso da natureza humana e o valor do altruísmo e trabalho duro. Norman Rockwell vai pela mesma linha, foi um ilustrador americano, retratou o cotidiano das cidades do interior americano de forma inocente e bem humorada.

Estes dias, minha amiga B.H. que mora numa cidadezinha gelada próximo a Nova York, tomou coragem para por os pés fora de casa, depois de uma noite daquelas de muita neve. Tá nevando canivete lá nos States, é o tal do efeito estufa! Ela queria ir até o armazém comprar mantimentos e uma sopa quente para tomar enquanto fica em frente ao computador fuçando o Facebook. Então, ela vestiu sobre a camisa de malha uma blusa de manga comprida de flanela. Por cima desta, foi um suéter de lã fina e cobrindo este um casaco de lã virgem da Nova Zelândia. Para arrematar tudo, pôs uma jaqueta de nylon vermelha forrada com lã sintética, luvas de couro forradas, calça de lã forrada, botas de borracha forradas com lã sintética, meias grossas de lã e, na cabeça, um gorro de lã verde clorofila horrível da Sibéria – uma coisa de meter medo em criancinha. No geral, ela tinha aparência do cão chupando manga. E lá foi ela dar sua caminhada até a 'grosseria'. Ao entrar na loja, passeou pelas gôndolas do mercado colocando alguns itens no carrinho, inclusive uma lata de goiabada feita em Pacajus, no Ceará, que estava na promoção. Foi até o balcão de frios e pediu uma sopa de galinha quente.

Depois de verificar que já tinha tudo que precisava, foi ao caixa onde passou satisfeita as suas compras. Para a sua decepção, descobriu que havia esquecido uma coisa, a carteira de dinheiro! Imaginou, desanimada, seu caminho andando de volta para casa de mãos vazias, naquela manhã, na qual os termômetros marcavam -1º.F do lado de fora. Onde ela estava com a cabeça para esquecer justamente a carteira? Ficou encabulada com a situação, as pessoas na fila assistindo aquele vexame. Não tinha um tostão no bolso nem para levar a sopa quentinha que iria cair bem naquele frio. O jeito era devolver tudo às prateleiras, mas o gerente da loja tranqüilizou-a, disse que não carecia, eles mesmo fariam isto por ela. Saiu ressabiada da loja e, ao passar pela porta automática, surgiu um cavalheiro desconhecido oferecendo-se para pagar-lhe a conta. Ao mesmo tempo, uma senhora, do outro lado, lhe acenava com seu cartão de credito, também oferecendo-se para resolver seu drama monetário. E para completar o festival de bondade, um vendedor trouxe-lhe a sopa para que ela levasse como cortesia da casa. Ela aceitou de bom grado o empréstimo do desconhecido, pois viu nele a chance de poder reencontrá-lo, afinal, ele parecia ter saído de um anúncio do Marlboro, e era daquele tipo de genes que ela estava procurando para os futuros filhos dela. Dispensou o cartão da senhora gentilmente. Aceitou a sopa, pagou a sua conta na loja e, ainda, o gerente mandou levá-la de carro até a sua casa.

Alguns dizem que tudo aquilo foi uma verdadeira demonstração da bondade humana, mas outros juram que todos estavam era com medo do gorro horrível dela!


Rio Vermelho, 25 de fevereiro de 2010.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Comoção

Esses dias, lembrei muito de um colega de escola, um garoto italiano. Não me recordo seu nome, infelizmente. Mas lembro de seu olhar triste e de sua dificuldade em aprender as coisas, principalmente porque ele mal falava o inglês — eu morava, então, numa cidadezinha próxima a Nova York. Sua tristeza não era para menos, explicou-me a nossa professora de inglês, a Mrs. Taub, a sua cidade na Itália tinha sido sacudida por um terrível terremoto. Sua casa foi abaixo e sua família inteira morta como milhares de tantas outras pessoas. A cidade de Nápoles fora toda destruída. Fiquei tentando imaginar quanto sofrimento deve ter passado aquele garoto, perder assim de modo tão trágico toda a sua família de uma só vez e não ter mais onde morar. Os parentes mais próximos que lhe restaram moravam nos Estados Unidos, para onde ele emigrou, na esperança de recomeçar vida nova e curar as suas feridas. E esta foi, provavelmente, a experiência mais próxima que já tive de uma tragédia como aquela. Meu coleguinha era um sobrevivente de uma tragédia.

Ao ver pela TV as dramáticas notícias vindas do Haiti, imagens de cores ainda tão frescas nas quais pessoas ainda respiravam sob os escombros dos prédios desabados, ou eram heroicamente resgatadas, me veio à memória a lembrança daquele coleguinha italiano. Ele deve ter vivido um inferno semelhante àquele, pensei. O Haiti virou pó. O mundo inteiro correu para acudir aquela miserável ilha do Caribe, castigada pelo sacolejo da natureza. A solidariedade mundial provou que ainda não é o fim do mundo e pessoas ainda se sensibilizam com os infortúnios alheios. Até o Brasil impressionou pela rapidez e prontidão. Acostumados a ver nossos governantes agirem com tamanho distanciamento frente às nossas próprias catástrofes, afinal eles não devem ir nos locais onde o povo está sofrendo, para não se exporem a cobranças desagradáveis que os possa constranger, reza o manual do bom político. Melhor ficar de longe e fingir-se de morto até a poeira baixar. Aparecer por lá só depois, para fazer um monte de promessas e aguardar os dividendos políticos até o resultado das próximas eleições. Na catástrofe do Haiti, no entanto, o nosso presidente agiu corretamente ao oferecer ajuda. Logo de manhã cedo, ainda de pijamas, ligava para os quatro cantos do mundo exortando os mais ricos a se unirem ao Brasil, como se o Brasil fosse uma grande potência com recursos sobrando, na campanha para socorrer nossos irmãos haitianos. Isso foi bonito. No entanto, gostaríamos que ele demonstrasse a mesma disposição e solidariedade todas as vezes que os brasileiros fossem acometidos de catástrofes e acidentes trágicos. Mesmo que ele estivesse fazendo uma de suas indispensáveis viagens ao exterior, cancelasse tudo e voltasse ao Brasil correndo, pois seu povo precisava de sua presença. Sabe, aquela situação na qual um amigo ou um parente foi parar na emergência do hospital e, mesmo sem podermos fazer lá grande coisa por ele além de rezar, fazemo-nos presentes para prestarmos solidariedade aos familiares? Pois bem, era isso que gostaríamos que nossos governantes fizessem. Esperamos que nossos governantes sejam bons não apenas nos índices econômicos e realizações, mas, também de serem capazes de demonstrar um mínimo de solidariedade nos momentos de comoção.

Tudo isso me faz lembrar, também, que o Brasil deseja muito ter notoriedade internacional como algum tipo de potência influente no mundo. Nosso governo tenta há anos obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. São ações de grande visibilidade como esta como a do Haiti que o Brasil julga serem importantes para ter seu ingresso garantido nesse restrito clube. Eu espero apenas que o gesto de socorro ao Haiti não tenha sido movido por outro interesse que não o da solidariedade.

Rio Vermelho, 8 de fevereiro de 2010.