quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A gata serelepe e o cachorrinho

O fim de tarde contemplado da Praia de Santana é um espetáculo de maravilhar os olhos e acalentar o espírito, momento em que o sol despede-se do dia manchando o horizonte de tons alaranjados resplandecentes, ao sumir de vez no oceano. Para nossa satisfação, um por do sol jamais é igual ao outro, o que nos faz experimentar uma nova emoção a cada crepúsculo. Este final de tarde, lá estava eu mais uma vez para prestar homenagem ao astro-rei. O dia tinha sido um daqueles quentes de dezembro, mas àquela hora de fim de tarde, uma suave brisa vinda do oceano refrescava a praia indicando que a noite seria de temperatura menos severa.

Cheguei à Praia de Santana um pouco mais cedo, como de costume, e dei uma caminhada no calçadão que se estende ao longo da praia até a curva da Paciência e voltei para me sentar num banco de concreto em frente ao mar, próximo à quadra de esportes, para aguardar o grande momento. O ar cheirava a maresia e a algas. Não demorou muito e lá apareceu ela finalmente, trazendo o seu cachorrinho pela coleira, desfilando pelo calçadão toda serelepe. O que faz o por do sol na Praia de Santana tão agradável de se ver, é a chegada dessa menina desabrochando em mulher, passeando com o seu pequeno Poodle ao longo calçadão, verdadeira personificação das ninfas dos poemas gregos; menina-moça do corpo esbelto e aparência do frescor de uma flor recém colhida, cujo perfume exala juventude, e seu olhar perdido e distante não vê nada além do caminho à sua frente, ignorando a plateia que lhe assiste, talvez por insegurança da pouca idade ou autossuficiência. Para este passeio, se veste sempre com um vestidinho de cor alegre, sandálias de couro baixas e os cabelos largados que a tornam mais bela e malvada. Seu cachorrinho vai sempre à frente e parece uma composição de bolas de algodão de tamanhos variados, amaradas com um belo laço vermelho no alto da cabeça. Ela o segue logo atrás, com passos ligeirinhos de modelo desfilando na passarela.

Pois lá ia ela com o seu bonitinho nariz empinado, quando o destino pôs em seu caminho uma dessas sujeirinhas caninas desprezadas por um proprietário de cão relapso. Eu, sentado em meu banco admirando o seus passar, pude antever por fração de segundos o terrível acidente, mas não fui rápido o bastante para preveni-lo. Isso mesmo, ela pisou na merda. O seu mundo perfeito pareceu ruir, estragando o seu passeio vespertino e transformando-o num pequeno drama juvenil. Pude ver os músculos de sua linda face se contraírem e o brilho de uma lagrima surgir em seus olhos prestes a cair, segura apenas, senão, pelo seu orgulho ferido. Em seguida, a expressão de nojo fixou-se em seu semblante irradiando-se pelo resto do corpo. Como ela não vira aquela imundice? — repreendeu a si mesma, como se fosse dado a este tipo de mulher o direito de fazê-lo. E pela primeira vez ela olhou para os lados como um pedido de socorro e só então desta vez ela pareceu ser uma criatura indefesa e humana.

Reagi com instinto e meti a mão no bolso tirando de dentro um lenço de seda italiano estampado com arabescos monocromáticos, um capricho para limpar as lentes de meus óculos de armação Giorgio Armani, e, como um cavaleiro medieval, corri em seu socorro para livrar minha princesa de seus dragões imaginários. Ao aproximar-me, ela me pareceu menor vista de perto. Ofereci-lhe ajuda obsequioso, estendendo-lhe meu dispendioso lenço, mas ela pareceu não ter atinado minha intenção porque me estendeu o pezinho como um mudo pedido para que eu mesmo a livrasse daquele infortúnio. E como um humilde cervo agradecido por aquela oportunidade única de poder tocá-la, me ajoelhei diante dela e tirei delicadamente a sua sandália de couro deslizando suavemente a ponta de meus dedos sobre seu pezinho para, em seguida, limpar o dedinho sujo, o único. Só depois me ocupei da sandália e, em seguida, a pus de volta no pé que aguardava suspenso e estirado como se executasse um movimento de balé. Concluído o meu gesto de altruísmo, ela, então, me brindou com um meio sorriso e continuou o seu passeio sem desperdiçar comigo palavra, como de desconhecesse o significado da expressão "muito obrigada", com aquele seu andar e jeito de ser serelepe.

Rio Vermelho, 15 de dezembro de 2010.

2 comentários:

Sarnelli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sarnelli disse...

Veja como são as coisas ! O infortúnio da jovem donzela , pisando naquilo que não devia estar no seu caminho, foi o seu momento de felicidade. Finalmente , esqueceu-se do por do sol, ao ficar pensando naquele breve instante de felicidade em que conseguiu passar, por um rápido segundo, o seu dedo naquele pezinho maravilhoso , embora com um dedinho sujo ? Não importa se ela tenha se esquecido de agradecer. Talvez o embaraço do momento ! Você, sim, deveria ter ficado agradecido a quem deixou aquilo na passagem da ninfeta, porque , não tivesse sido isso, a sua historinha e o seu momento de felicidade não teriam acontecido...Isso me faz lembrar aquela cena do filme " Perfume de mulher " quando o ceguinho diz para a mulher: " há segundos que valem por uma eternidade "...São para lembrar !