domingo, 17 de abril de 2011

O bom senso pode estar à sua frente.

O presente texto passou pelo tempo de gaveta. Explico: depois de escrito, é de boa prática literária deixar o texto passar por um breve período de maturação numa gaveta, assim como se faz com o vinho, envelhecido no barril de carvalho. Depois, é retirá-lo e revisá-lo, dando a sua forma final, tendo as ideias do autor curtidas e amadurecidas. Este é um bom método para quem escreve e, se você aí me lendo, costuma escrever e tiver uma gaveta velha em casa, sugiro fazer a experiência!

Eu contava que tinha voltado à Cidade Maravilhosa. No mesmo dia em que aportei no Rio, fui almoçar na rotisseria árabe do Largo do Machado, que minha doce amiga Daniela, uma paulista de berço e carioca por vocação, também é uma habitué. Eu já falei antes das qualidades gastronômicas do lugar em outra crônica, por isso mesmo, me eximirei de repeti-las, apesar de que o lugar merece mesmo. Eu não sentia tanta fome assim, pois eu tivera um farto e rico café da manhã de batas fritas, amendoins, biscoitos e suco de laranja em caixa durante o vôo para o Rio, mas, por hábito, fui fazer minha refeição do meio dia, para não precisar fazê-la mais tarde.

Este é um daqueles lugares de se comer de pé encostado no balcão de vidro, aquecendo a barriga no calor que emana dos quitutes mornos expostos do lado de dentro ou em estreitas mesas de pernas altas desprovidas de cadeiras, inventadas tão somente para o propósito de o cidadão não esquentar assento. É pedir, comer e ir embora. Eu gosto de comer no balcão porque é uma feliz oportunidade para incitar conversa com a pessoa ao lado, porque me dá prazer em conversar com estranhos que, não são mais tão estranhos assim depois de alguns minutos de conversa fiada. Eu faço assim no Rio porque o carioca é um tipo de pessoa aberta a tais intromissões. Alguns de vocês aí me lendo me conheceram nestas circunstancias e sabem do que estou falando. E se eu não fizer assim, de onde mais vou tirar material para minha lavra? Certa vez, para a minha surpresa, uma bela moça me confidenciou, entre uma mordida e outra num quibe, que estava de jejum de sexo há mais de um ano, o que me fez supor que ela pretendia terminar ali aquela sofrida dieta. No entanto, naquele dia ensolarado, resolvi fazer diferente, e fui comer sentado.

Existe, nos fundos do lugar, um conjunto de 12 pequenas mesas com cadeiras dispostas em três fileiras onde poucas pessoas se dão ao trabalho de sentar e fazer o pedido, e foi para lá que eu fui. Acomodei-me na ultima mesa, numa cadeira que me dava uma ampla visão do salão que, àquela hora do dia, já fervilhava de comensais que se entupiam de quibes, esfirras, caftas e outras delicias. É comum pessoas estranhas compartilharem a mesma mesa neste tipo de restaurante, o que atesta a forma cosmopolita de ser do carioca. À minha frente havia uma mesa ocupada por duas moças sentadas uma de frente para outra e, pela completa ausência de comunicação entre ambas, deduzi que elas não se conheciam e nem estavam afim de papo. Vestiam roupas elegantes e sóbrias de escritório e tinham o olhar distante e perdido. Mas não deixei de perceber que a moça que estava sentada de costas para mim, pagou a conta e foi-se embora rapidamente, deixando em seu lugar uma cafta em perfeitas condições e mais de meia porção de arroz com lentinhas com rodelas de cebolas douradas por cima e que ainda exalavam fumaça e um adocicado perfume. Achei aquilo um desperdício, uma falta de consciência. Onde já se viu jogar comida fora quando existe tanta gente no mundo passando fome? Me incomodou ver aquele monte de boa comida largada ali para acabar no lixo, ou, na melhor das hipóteses, ser reciclada para ir parar no prato de outro freguês desavisado. Eu não conseguia aceitar aquilo e me veio logo a ideia ir até aquela mesa e confiscar as sobras! No entanto, o pudor me reprimia de agir. Fui dominado pela vergonha de tomar uma atitude aparentemente insólita, mas que eu a considerava ser a mais sensata. O caro leitor deve estar me reprovando por esta insensatez, pois, onde já se viu uma pessoa de recursos e em perfeito estado de juízo se apoderar da sobra alheia num restaurante? Para mim, no entanto, aquilo era uma questão de justiça, ou uma atitude ecologicamente correta, para aqueles que veem ecologia em tudo. Fiquei ruminando aquela vontade e me controlando para eu não ter um comportamento que por certo seria condenável aos olhos dos outros fregueses do árabe. Será que a minha atitude seria tão ruim assim? Eu poderia justificar a todos que eu tinha um peixe dourado em meu aquário que este era louco por comida árabe, especialmente de caftas com arroz com lentilhas e que tudo iria para ele. Isto, sim, me parecia ser uma explicação razoável. Mas para meu desapontamento, enquanto eu me perdia naquelas hesitações, o garçom veio e pelo que eu presumi ter sido um pedido da moça que ficara, pois não tenho ouvidos de tuberculoso para ouvir o que lhe dizia, o garçom recolheu toda a sobra que a outra moça desnaturada largara para trás. Tudo iria parar no lixo, lamentei. Voltei-me, desconsolado, para o meu prato e comecei a comer o meu pedido que o meu garçom acabara de por à minha frente, duas esfirras, uma de ricota com espinafre e outra de carne, acompanhadas de um espesso suco de manga. Nem se passaram cinco minutos e eis que o garçom que atendia a mesa da frente voltou diligentemente trazendo consigo uma quentinha que entregou à moça que ficara e que provavelmente continha as sobras de comida da outra que fora se embora e que eu tanto hesitara em me apoderar! Estava claro que minha ideia não era um absurdo tanto assim, foi apenas a minha educação pequena burguesa que falara mais forte pois, alguém tomara a minha dianteira e agira sem nenhum constrangimento.

Rua Paissandu, 21 de março de 2011.

4 comentários:

Anônimo disse...

PARABÉNS, MEU VELHO, PELA NATURALIDADE E HUMOR LEVEMENTE ÁCIDO, COM QUE SEMPRE NOS BRINDA EM SEUS TEXTOS. AINDA PRETENDO VER P/ AQUI ALGUMA DAS HISTÓRIAS E RESENHAS CONVERSADAS ENTRE NÓS, PRESTIGIANDO FIGURAS PITORESCAS QUE TANTO CONHECEMOS.
MARCELO DA SILVEIRA.

Anônimo disse...

Oi Cristiano,
na próxima, nao hesite em pedir a quentinha, viu?... rsrsrsr
obrigada!! Fez-me mais entusiasmada para iniciar uma segunda-feira chuvosa e de trabalho, em Praia do Forte!!
Bjs,
Astlé

Sarnelli disse...

Pô, Cristiano ! Viu no que dá uma indecisão ? É assim em todos os setores. No trânsito,por exemplo , um segundo de indecisão pode causar uma tragédia ... Estamos vendo que precisamos até mesmo ,em alguns momentos, agir por impulso e ligar menos para o que os outros possam pensar... no seu caso, acho que deve ficado com a lição , com o arrependimento , e sem o jantar caído do ceu ... Perdeu de 1 x 0 para a moça... Pagou o preço da sua indecisão vendo a moça que ficara, sair que a sacolinha contendo a quentinha nas mãos ...
Com relação à gaveta velha, você tem razão. Nós sempre temos alguma coisa a acrescentar, a modificar , eliminar e ou mesmo substituir. Já estou praticando o processo, a não ser quando estou com pressa de colocar um texto no ar...

Anônimo disse...

Gostei desta crônica! Quando voltar ao Rio, se zúzu correr bem (não costumo ser senhor de meu tempo), vou te apresentar um outro restaurante de comida árabe.
Rogério Costa