Para D.G.M.C. com carinho.
Fui subitamente retirado de meu sono certa manhã, antes da hora de eu habitualmente me por de pé. Justamente neste que é o mais gostoso dos sonos, por que este é o intervalo entre a vigília e a consciência, o que nos faz sentir uma agradável sensação de preguiça e de desejo de prolongar aquele momento de bem estar até o infinito. Acordei porque alguém ousava dar batidas em algum lugar lá fora pelas cercanias. Eram como suaves marteladas sobre a madeira verde, mas ainda assim irritavam. Batia duas vezes e parava, e depois reiniciava com uma só batida de cada vez entre breves intervalos. Eram batidas irregulares que começavam e se interrompiam, para depois de alguns instantes reiniciarem novamente, alguém lá fora não sabia cravar um prego. Praguejei contra aquele miserável que resolvera trabalhar naquela preciosa hora da manhã. E como o renitente barulho parecia não ter fim, levantei-me, a contragosto, para ver o que se passava e me arrastei até a janela do meu quarto, que naquela noite tinha dormido fechada, o que contrariava o meu hábito de deixa-la escancarada. Eis que me surpreendi ao ver a figura do meu inconveniente martelador pousado no parapeito bicando o vidro da janela, um pica-pau. Sem saber o que fazer, uma vez que qualquer reclamação verbal seria inútil dada à falta de compreensão que um pica-pau tem da linguagem humana, mesmo que este fosse um poliglota, resolvi apenas abrir a janela para que ele não bicasse mais o vidro. Dei o assunto por resolvido e voltei para onde eu estava e tentei voltar ao sono merecido.
Acordo todas as manhãs com o gorjeio dos pássaros anunciado o início de um novo dia, apesar de eu morar no coração da cidade e não no meio do mato. Pássaros e outros pequenos seres do mundo animal visitam livremente a nossa casa e vem e se vão a toda hora e por isso me sinto um bem afortunado por tais visitas. Nunca lhes faltam pedaços de mamão ou banana espalhados pelo jardim para saudar tão ilustres visitantes, graças aos cuidados de minha mãe que faz assim desde que me entendo por gente. Meu pai, quando andava nesta terra, tinha o mesmo hábito e não me recordo se isto foi invenção dele ou dela, coisa de gente que nasceu e se criou em fazenda. Os passarinhos são os primeiros que chegam, fazem o seu banquete até se fartarem e depois alçam voo para outras vizinhanças, em seguida, aparecem bandos de saguins que vem trepando pelos fios elétricos e depois pulam para as árvores aqui de casa e vão descendo de galho em galho até alcançar os pedaços das frutas bicadas que depois de comer bastante vão se embora para que lagartixas e calangos tenham a sua vez, sim porque do homem até as diminutas formigas comem daquelas frutas. À noite, no silêncio e no breu entre os galhos das árvores e plantas, surgem silenciosamente morcegos frugívoros que põem fim ao que sobrou, nada é desperdiçado nesta cadeia alimentar formidável.
Eu nem bem pregara os olhos de novo e senti sobre o rosto algo caído do teto e ao olhar procurando pelo o que se passava lá em cima me surpreendi com o mesmo pica-pau da janela fazendo seu ninho entre as ferragens da luminária logo acima de minha cama. Não quis entrar numa polêmica com a ave e achei mais sensato apenas empurrar minha cama para o outro lado e tentar continuar o meu sono. Os bichos circulam livremente por fora e dentro de casa, no meu quarto entrou este e fez um ninho mas não foi o único. Na ausência de gente na cozinha, pela porta que dá para o quintal, entram pássaros e lagartixas procurando por migalhas; os saguins arriscam-se até o peitoril da janela onde alguém esqueceu um pedaço de fruta ou biscoito. Até os morcegos erram o caminho no meio da noite e voam janela a dentro sobre nossas cabeças na sala procurando pela porta de saída. Certa noite, vi maravilhado uma imensa coruja branca empoleirada num galho da árvore em frente à minha janela, que alçou voo com suas compridas asas ao me olhar olho no olho. Acho que isto é o mais bucólico que se pode conseguir ao se viver num centro urbano onde, aqui em casa, gente e bichos convivem harmoniosamente, desfrutando da presença do outro, nós humanos por termos o privilégio da companhia de criaturinhas de Deus e elas por terem quem as alimente com frutas frescas.
Aquela noite, dormi de janela aberta para não ser acordado para abri-la de madrugada pelo pica-pau. Mas quando me levantei, percebi que ele não aparecera. Não veio também no dia seguinte, o que me deixou preocupado com a sua súbita ausência, será que ele se ofendeu com alguma coisa ou foi o meu ronco que o afugentou? Ou será que ele mudou seu horário de trabalho? De uma coisa eu estava certo, ele não voltara mais, apesar de minha janela estar sempre aberta para ele e ele ser bem-vindo. Percebi que a construção de seu ninho tinha sido deixada para trás inacabada. Lamentei e fiquei matutando o que teria acontecido ao bichinho.
Quando eu venho do banho de mar, tenho por hábito de tirar o sal do corpo no quartinho lá dos fundos por que a água de lá cai deliciosamente forte e fria como uma bica e completa toda a experiência de uma agradável manhã na praia. Ao abrir a torneira, a água bateu forte sobre o piso fazendo um estardalhaço e provocando uma agitação sobre a minha cabeça. Olhei para cima e vi no buraco da fiação elétrica onde fica o bocal da luz um ninho habitado e em volta dele voava o famoso pica-pau. Imediatamente fechei a água e saí de lá para não assustar aquela pequena família. O mistério do sumiço do pica-pau estava desvendado, que foi construir o seu ninho onde houvesse mais privacidade. Enquanto escrevo estas mal traçadas linhas, no final de uma tarde de domingo depois da chuva, ouço um trinado ao longe... bem-te-vi, bem-te-vi!
Rio Vermelho, 19 de junho de 2011.