quarta-feira, 20 de julho de 2011

Cenas de um casamento.

Já vi casamento transformar-se em relação impossível de suportar convívio sob o mesmo teto, mas que para não jogar pá de cal sobre o matrimônio ameaçado, o casal apelou para soluções curiosas. Meu irmão caçula foi um deles, cansado de aturar as idiossincrasias da esposa, fez uma trouxa e foi morar longe em outro quarteirão. Resultado, o seu casamento nunca esteve tão bem desde então, contanto que cada um fique em seu canto. É verdade que ele faz visitinhas diárias à sensível esposa, mas depois volta para o sossego de sua própria casa para fazer aquilo que mais gosta que é ser ele mesmo. Eu particularmente acho um abuso esperar que uma pessoa seja obrigada a aturar outra pelo resto da vida, porque casamento deveria ter prazo de validade igual a de desodorante, quando começa a cheirar mal é porque já está na hora de colocar outro.

Com o meu amigo JR, sucedeu-se algo semelhante. Que a sua Odete quase não falava mais com ele e por causa disso ele resolveu por fim ao matrimônio de quase vinte e cinco anos de casados. Me procurou pedindo uns conselhos, como se logo eu fosse uma autoridade no assunto. Eu, que nem nunca cheguei perto de um altar, não por fobia, mas por falta de merecimento mesmo, que as moças escolhidas para a ocasião solene não me quiseram por causa da minha falta de liquidez bancária, triste de moi.

— Vou largar a Odete, pedir o divórcio. – falou sério.

— É mesmo? Mas por que isso agora? – perguntei surpreso, desconhecia que o casamento não ia bem das pernas.

— Odete quase não fala mais comigo.

— Humm... pense bem no que vai fazer, rapaz, pois uma mulher assim é difícil de se encontrar! – zombei preferindo perder um amigo, a perder uma boa piada.

Mas como quem pede conselho só quer mesmo ouvir aquilo que deseja, e no caso de JR ele esperava que eu aplaudisse a sua iniciativa, e foi o que eu fiz pois nunca fui de contrariar ninguém e mesmo que eu o desencorajasse, a sua decisão já estava tomada antes mesmo de ele vir falar comigo. Então, certo dia, ele se vestiu todo e depois foi até a sala e disse à Odete, casualmente: “Vou ali comprar cigarros e não volto mais.” JR saiu de casa e foi morar num balança-mas-não-cai ali no Politeama, enquanto Odete ficou no apartamento da Ladeira da Barra com vista para a baía, novinho em folha.

Os meses passaram, JR se sentiu sozinho no mundo. Certo dia, ele passou em frente ao antigo prédio onde morava. Ficou parado olhando lá para cima e viu a luz do apartamento acesa. Subiu e bateu na porta, Odete que atendeu surpresa.

— Como cê tá?

— Eu tô boa.

— Tá precisando de alguma coisa?

— Até qui tô, viu. A torneira da cozinha tá com aquele pinga-pinga de novo.

JR entrou no seu ex-apartamento e foi lá no quarto dos fundos, onde pegou a caixa de ferramentas e foi dar um jeito na torneira. Enquanto isso, Odete foi dar uma de boa anfitriã, pegou uma long-neck geladinha e foi fritar umas rodelas de linguiça com farofa para aperitivo, como nos velhos e bons tempos. Depois do conserto feito, JR bebeu a cerveja satisfeito, comeu da linguiça e pôs um olhar de fome para cima de Odete e fudeu-lá alí mesmo no pé da mesa. JR gostou da novidade e Odete ficou agradecida que ela estava mesmo precisando daquela assistência. Na semana seguinte, ele lá apareceu de novo e fez outro concerto doméstico pelo qual Odete mostrou-se igualmente agradecida e satisfeita. E na outra semana, mais um concerto. De uma hora para outra, um apartamento tão novo como aquele começou a ter todo tipo de problema e JR parece até que adivinhava, pois ele sempre chegava na hora certa de ferramenta em riste. A vizinha de Odete que era uma amiga apreciadora de uma boa fofoca, vendo aquele entra e sai de JR – desculpa a figura de linguagem – bateu na sua porta para se inteirar dos fatos a fim de anunciá-lo na “Voz do Brasil”.

— Cês voltaram? – quis saber.

— Qui... menina, tu acredita que o traste é melhor como amante do que como marido?

Nessa vida nada é perfeito, mesmo. Cada qual, com seu cada qual... seja lá o que for que isso signifique. Não há mais casamento tradicional, cada um casa como quer e como pode, o importante é não ficar sozinho.

Rio Vermelho, 19 de julho de 2011.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Crônica de um escândalo ou como nunca há provas suficientes.

Os jornais da semana denunciaram mais um escândalo. Felizmente eles são apenas um por semana, e não dois, três ou mais, pois, do contrário, eu não daria conta de acompanhá-los com o interesse devido. Abri o jornal ansioso por me inteirar dos detalhes, assim como faz uma dona de casa para saber as novidades dos capítulos seguintes de sua novela preferida. E lá estava estampado na primeira página, em letras garrafais, que uma alta autoridade do governo havia roubado umas pontes e estradas. Vejam a que ponto chegaram, não estão poupando nem as vias públicas! E toda vez que algo assim acontece, tenho a estranha sensação de que algo foi tirado indevidamente de meu bolso.

Embora escândalos envolvendo o governo sejam fatos abomináveis, uma vez que pessoas escolhidas por nós, através do voto obrigatório, para tratar da coisa pública não se ocupam de nada mais além do que cuidar das coisas delas, eles vão se tornando parte de nossa paisagem, assim como anúncios de outdoors ou os flanelinhas nos semáforos. Acompanhar os escândalos no noticiário virou uma distração, ainda que indigesta, igual a seguir os capítulos da novela do horário nobre – que tanto condenamos mas que não somos capazes de perder um só capítulo – e cuja trama é igualmente absurda e a maioria de seus personagens são seres igualmente desprezíveis. Eu não consigo mais passar sem acompanhar um bom escândalo e tenho crises de abstinência quando os jornais ficam mais de uma semana sem nenhuma novidade. Graças a Deus o pessoal de Brasília trabalha duro noite e dia para nos proporcionar entretenimento de qualidade milionária.

Eu só fico intrigado que todos estes escândalos só chegam ao nosso conhecimento por jornais e revistas que se dão ao trabalho de ir desencavá-los, e não porque os agentes públicos fiscalizadores, numa atitude de prestar contas à opinião pública, chamou a imprensa para botar a boca no trombone. Há claramente uma inversão de papéis, é a imprensa que está informando ao governo o que se passa no quintal deles e não o contrário. É como se eu ou você resolvêssemos, de uma hora para outra, dar uma de Sherlock Holmes investigando crimes ou prendendo bandidos porque a polícia está muito ocupada com outras atividades mais nobres para se ocupar disso. Em resumo, escândalos só existem por que há uma imprensa em nosso país para denunciá-los, do contrário tudo ficaria entre quatro paredes como a vida íntima de mamãe e papai, e a comidilha correria solta longe do nosso conhecimento.

E como nunca na história desse país nem um só agente fiscalizador veio a público, em primeira mão, revelar um mal feito pelo governo antes que a imprensa o fizesse, é porque talvez ele tenha procurado, mas nunca encontrou nada porque tudo não passa de pura invenção dessa imprensa golpista. Os escândalos não passariam de uma fabricação maquiavélica da própria mídia com o intuito de vender mais jornais e revistas e de aumentar o IBOPE do “Jornal Nacional” – alguém aí já ouviu o locutor dizer “Este escândalo é um patrocínio de OMO Total, o sabão em pó que limpa toda a sujeira”? – Mas como o tal agente público fiscalizador é impelido a tomar alguma atitude para salvar as aparências, geralmente ele faz lá umas investigações e termina engavetando o processo por faltas de provas... Deveria haver uma lei obrigando a todo político ladrão a passar recibo ou nota fiscal toda vez que recebesse a grana de um esquema, e só assim haveria provas contundentes. Mas o inquérito foi uma tremenda de uma encenação, o funcionário corrupto não é mesmo afastado de sua função, só saiu de férias usando o cartão corporativo do governo, o outro não foi preso de verdade e já no dia seguinte um zeloso juiz lhe concedeu um habeas corpus e aquelas algemas eram de mentirinha. Tudo terminou na santa paz para eles.

Uma das coisas mais divertidas de um escândalo é a expressão de surpresa e de desaprovação com que o governante ou o político enfrenta as câmeras quando o caso estoura. Ficam todos indignados como se fossem umas virgens e prometem tomar providências enérgicas doa a quem doer. Mas jamais um político ou governante foi parar atrás das grades – cumprir pena mesmo, sabe – por algum mal feito, isto porque, eu gostaria de lembrar ao caro leitor, foi ele mesmo quem criou as leis para fiscalizá-lo e que ao invés de puni-lo o livra de ir ser hóspede do Estado por uma longa temporada. Agente fica pasmo assistindo a tudo isso e com uma estranha sensação de o que estamos vendo é um clichê, pois já temos uma ideia do que vai acontecer depois e que é, indubitavelmente, coisa nenhuma, que no Brasil não é crime ficar milionário da noite para o dia sem ganhar na Megasena e o felizardo não é obrigado a comprovar de onde veio toda aquela grana. Não há provas suficientes, e o assunto está encerrado, agimos com rigor. Minha mãezinha, do alto dos seus quase noventa anos de sabedoria, me disse outro dia enquanto assistia muda pela TV mais um noticiário sobre o escândalo, “viu, você prefere ficar aí desconhecido escrevendo essas coisas, porque não vai ser político em Brasília, ficar famoso e milionário?”

Rio Vermelho, 10 de julho de 2011.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Fogueira e animação na Chapada.

No Nordeste, o São João, como nos referimos aos festejos juninos, é a mais importante de todas as comemorações, superando de longe o tradicional Natal. É um longo feriado em que as pessoas aproveitam para viajar para o interior, transformando as capitais em cidades fantasmas. Fui para a Chapada Diamantina passar o São João em Lençóis, onde lá estive pela ultima vez há quatro anos, num verão quente como o inferno. Aluguei, então, uma charmosa casinha ao pé de um morro e dei início à minha aventura literária escrevendo estórias e crônicas para este blog. Desta vez, no entanto, fui me hospedar na casa de meu irmão caçula, Pedro, no Alto do Tomba, o bairro mais alto da cidade e que acontece de também abrigar o cemitério cujos portões estão sempre abertos, embora raramente acolha novos moradores. Cheguei numa tarde de sol brilhante depois de ter deixado para trás nuvens carregadas de chuva que ameaçavam o feriado do soteropolitano, mas a temperatura estava tão agradável quanto um delicioso copo de cerveja servido bem gelado.

Meu sobrinho de 15 anos foi me aguardar na rodoviária, cujo prédio não passa de um pequeno quiosque com um balcão de passagens e outro que vende bebidas e lanches para a viagem e uma escadaria onde os viajantes aguardam pacientemente sentados nos degraus até a chegada do único ônibus que serve à cidade. O menino foi me guiar até a nova casa de meu irmão que eu não sabia para que lado ficava, e como Lençóis é uma cidade minúscula, costuma-se ir à pé aos lugares, o que, em parte, já faz parte da experiência ecológica e saudável de se ir à Chapada. Para quem nunca esteve em Lençóis, descrevo-a como uma cidade histórica de rareado número de habitantes, com ruelas apertadas e pavimentadas com pedras de cantaria e de casas geminadas construídas nos tempos do ciclo do diamante que deu origem à cidade que fica incrustrada há quase 200 anos num esplendido vale, cercada de exuberantes florestas que nos convidam a explorá-las em longas caminhadas e abundante manancial de água que deleita seus visitantes e moradores com deliciosos e revigorantes banhos de cachoeira ou em caldeirões cavados pela natureza na rocha.

Minha sacola estava meio pesada, em parte por causa dos presentes que eu levava em seu interior, sim, sempre eles, aonde quer que eu vá, estou sempre carregando presentes como se fosse eu um Papai Noel fora de época. O sobrinho resolveu pegar alguns atalhos para encurtar caminho até o nosso destino, o que já foi para mim uma aventura e, no meio da jornada, desejei voltar para a rodoviária para pegar o ônibus seguinte de volta para casa! Isto porque o tal atalho mais parecia uma maratona de resistência física. Começamos passando por vielas sinistras, subimos escadarias de pedras irregulares intermináveis, pegamos atalhos pelo meio do mato e atravessando barrancos entre córregos, subindo, sempre subidas íngremes e sem fim que me faziam bufar de exaustão carregando no lombo aquela sacola pesada, mas, ao contrário de isto ser um sofrimento, até me deu um certo alívio pois, se eu tinha alguma suspeita de que eu talvez padecesse de uma deficiência cardíaca, aquela dúvida se dissipou naquele momento. Meu coração nunca esteve tão sadio, batia forte querendo sair pela boca que tive de manter fechada durante todo o trajeto.

Pelo caminho até em casa, percebi como o São João é tão levado a sério por estas bandas, ao ver as ruas enfeitadas com bandeirolas coloridas e, em frente de cada residência, havia uma fogueira já montada à espera de ser queimada logo mais à noite. Cada qual era feita com toras de árvores serradas novinhas em folha, o que me fez dar uma olhada suspeita na floresta em volta da cidade, para me certificar que ainda sobraram árvores para o São João dos anos seguintes. Algumas senhoras varriam a frente de casa ou colocavam o último galho que faltava para completar a sua fogueira. Chegando à casa de Pedrinho, desmaiei na cama e só despertei ao anoitecer quando ele me acordou para informar que fomos convidados para uma festa junina na casa de um amigo.

E na hora marcada, lá eu estava pronto para a farra, revigorado pela soneca e pelo ar puro da Chapada. Fazia uma noite geladamente agradável e, por isso, joguei por cima um agasalho e fomos os três, eu, Pedrinho e a namorada, para a casa do senhor Taurino, nosso ilustre anfitrião. – Este homem faz uma proeza danada, com o seu único braço que possue, desenha paisagens da Chapada com areias coloridas dentro de garrafinhas que são vendidas nas lojas de suvenires em Lençóis, umas relíquias. – Pelo meio do caminho, ouvimos músicas juninas tocando por todos os lados, pulamos muitas fogueiras que ardiam em homenagem a São João, assistimos as faíscas coloridas dos fogos queimados por crianças e marmanjos alegremente, ouvimos estouros de bombas, testemunhamos um casamento na roça com a noiva chegando montada num jegue ornado com flores e crianças e adultos tentando subir no pau de sebo onde um monte de brindes e guloseimas os aguardavam lá no topo, mais típico que isso, só em documentário da Globo numa enfadonha sexta feira à noite.

Pegamos uma estradinha de barro que começava ao lado do antigo mercado e fomos caminhando deixando a cidade para traz e entrando no breu da noite tendo só o brilho das estrelas e as sombras das grandes árvores como nossos guias. A casa de Taurino ficava escondida por trás de uma enorme mangueira numa curva e não foi difícil avistá-la por causa de uma grande fogueira que queimava em sua porta. Era uma casa simples e de acolhedor calor humano, e o nosso anfitrião é conhecido por seu espirito festeiro e pela fartura de sua mesa. Logo na chegada, a sua patroa veio sorridente ao nosso encontro e pôs na minha mão um copo de quentão, que lá por aquelas bandas, é feito de cachaça, gengibre, cravo da índia e outros ingredientes, e me apresentou a uma farta mesa onde bolos de milho, aipim, carimã e tapioca, queijadas, pamonhas, arroz doce, beijus, amendoim cozido, milho cozido e assado quentinhos, mugunzá, mingaus, licores, doces, laranjas descascadas e cortadas em banda para serem chupadas e talhas de melancias estavam à nossa espera para serem devorados com apetite. No quintal da casa, para onde fui atraído pelo som animado de uma sanfona, triangulo, tambor e pandeiro tocando o autentico estilo pé-de-serra, o forró corria solto. Uma moça moreninha ali da região usando um vestidinho de chita florido e tranças no cabelo lançou-me um olhar tímido e sonso, chamei-a para dançar um forró agarradinho, de rosto coladinho no melhor estilo mela cueca.

Depois de duas danças, fui recobrar o fôlego – e a compostura – bebendo uma cervejinha gelada e me aproximando de uma roda onde só havia homens contando anedotas cabeludas que eu enriqueci com duas do meu repertório. Um dos homens era um conhecido garimpeiro das antigas e meu amigo, o João Valente, um velho forte e dos modos rudes, mas uma pessoa da melhor qualidade. Havia outro, um sujeito que eu conhecia apenas de encontrar e conversar em saraus culturais em Salvador, mas que eu sabia que era de uma família tradicional da região, um sujeito meio besta cheio de credenciais acadêmicas e da fala rebuscada e que era professor de história na universidade. Ele veio me cumprimentar calorosamente e começou a falar difícil sobre alguma coisa enfadonha que eu não dei importância, pois minha atenção estava voltada para uma assadeira contendo um leitão à pururuca que estava sendo posta à mesa juntamente com uma travessa de farofa de manteiga de garrafa com miúdos fritos na banha e outra de feijão tropeiro.

— E o que tem feito? – perguntei com água na boca sem tirar os olhos da mesa.

— Candidatei-me ao legislativo e fui eleito vereador de Lençóis. – respondeu orgulhoso.

— E a docência? – quis também falar difícil.

— Perdi a minha cátedra. – respondeu com expressão triste.

— Eu lamento muito. – disse depois de fazer uma pausa com um olhar sério sabendo o quando ele se orgulhava de ser professor universitário.

João Valente, que assuntava toda aquela estranha conversa com olhar desconfiado, aproximou-se do homem e deu-lhe uns tapinhas no ombro e falando por detrás dos seus grossos bigodes brancos e boca meio desdentada, disse solidário:

— Olhe... isto que aconteceu com a sua cátedra não foi culpa sua, viu. Você é homem e agente sabe disso. Você é macho! E foi por uma boa causa...

Aproveitei a deixa e fui com apetite ao leitão à pururuca.

Salvador, 3 de julho de 2011.