O doutor Ubirajara dos Prazeres, ou simplesmente Bira, como era chamado por sua amada esposa e amigos mais chegados, era um respeitável pai de família, sujeito pacato e de natureza dócil. Um funcionário público exemplar da Procuradoria da Dívida Ativa do Município de Salvador há mais de quinze anos. E casado com dona Elvira, uma mulher que gostava de dar ordens e acostumada a ser obedecida, não apenas pelos serviçais domésticos, mas também pelos filhos e pelo fiel e obediente esposo, cujo temor à mulher era uma mancha em seu currículo, pois os amigos não admitiam como o homem que trazia o pão para a casa, pudesse ser tão submisso à esposa.
No entanto, Elvira tinha um bom coração e, por isso, permitia que o marido encontrasse os amigos às sextas-feiras depois do expediente na repartição, para a tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos. Mas ele que não se atrevesse a chegar bêbado em casa, pois, do contrário, iria passar a noite, de castigo, no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava que o marido brincasse, em companhia da turma de amigos de longas datas, a segunda e terça-feira de carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, localizado no Largo Dois de Julho. Apesar de sua natureza sossegada, existia no âmago de Bira um folião inveterado.
Era o ano da graça do Senhor de 1965 e os carnavais daquela época eram uma divertida brincadeira popular com fantasias de pierrôs e colombinas, serpentinas e confetes, pulados ao ritmo de românticas marchinhas carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca envelhecerem, e nos quais pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas e bailes noturnos até o raiar do sol. E não o poderoso e milionário empreendimento comercial que existe nos dias hoje, no qual o duro é apenas um mero expectador frustrado. Naquele ano, Bira contava os dias para cair na folia vestindo a fantasia de pirata que ele mesmo confeccionara a partir de uma camisa de mangas compridas velha e um chapéu de palha pintado de preto com um lenço vermelho amarrado em volta. Sua maior despesa naquela brincadeira, fora o investimento numa mamadeira infantil, na qual o rum Montilla foi despejado cuidadosamente com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E quando a noite de segunda-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro de Nazaré, onde residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia muita alegria e diversão sadia.
Mal entrou no pátio do clube, foi dominado pelo frenesi provocado pelas marchinhas tocadas pela tradicional e famosa Banda do Maestro Tabajara e Companhia. O pacato Bira então se transformou num homem faceiro e divertido, proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se aos amigos queridos e caiu na folia noite adentro.
Naquele baile os homens se fantasiavam alegremente, mas não usavam máscaras porque não era permitido, ao contrário das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Bira pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não as desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem cansar e se dar conta do tempo que parecia infinito. Quem via os dois naquele estado divertido pensaria que ambos eram par de longas datas. A moça tinha um requebrado e trejeitos que enfeitiçaram como nunca o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, diga-se de passagem, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente, fez gracejos com aquela moreninha da qual só pôde apenas ver os lábios grossos e gordurosos, pois, como todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara colorida e enfeitada. Bira era só alegria, nada da chatice de repartição pública ou de receber ordens da patroa em casa, aquela noite era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas, a magia do carnaval daquela noite começava a desvanecer-se. O sonho acabara. Na despedida, perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la algum dia, quem sabe em outros carnavais.
Do Clube dos Fantoches, desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra feito uns moleques, e foram até o Mercado Modelo para rebater a ressaca com o famoso mocotó de dona Lurdes, cozido magistralmente na apertada cozinha de seu modesto restaurante, em suas panelas sebentas. Lá pelas sete da manhã, ao chegar finalmente em casa vindo da esbornia, entrou nas pontas dos pés e deu de cara com outra, se não o seu algoz que o aguardava mal humorada.
― Até que fim chegou o pé-de-valsa! Então, dançaste com uma fulana de rosto coladinho a noite inteira, heim, filho da puta! – bradou Elvira.
― E como você sabe? – admitiu com coragem, ainda sob o efeito maléfico da bebedeira.
― Ela acabou de me contar. Você dançou foi com a empregada! – disse apontando em direção da cozinha.
Chapada Diamantina, 18 de fevereiro de 2012.