domingo, 11 de março de 2012

Lição de cidadania na Rua do Lajedo.

A minha rua aqui em Lençóis foi batizada com o simpático nome de Rua do Lajedo, um nome pouco comum que evoca à minha mente reminiscências de coisas rústicas como argila, olaria e objetos de cerâmica da cultura popular feitos no torno. Trata-se de uma rua estreita que começa uma casa acima da minha e se estende até um pedaço de riacho conhecido como Lava Pés e onde lavadeiras fazem o seu exaustivo trabalho. Um curto trecho desta rua foi recentemente pavimentado com blocos de granito, e por isso a sua superfície ainda é áspera, e muitos e muitos anos ainda se passarão até que o chão se torne liso e encerado, e as bordas de suas pedras levemente arredondadas pelo desgaste do vai e vêm de transeuntes. Depois de minha casa, a rua faz um joelho e quebra para o lado e aí o tal pavimento acaba, o chão é de terra e de rochas do próprio solo e sobre as quais duas fileiras de casas geminadas se estendem ao longo de cada lado da estreita e simpática rua.

As ruas de Lençóis são muito mais que simples vias de passagem, isto porque os moradores as utilizam como extensão de suas casas. É lá que a vida doméstica acontece a céu aberto, é onde se lava a roupa suja e o rapaz vai namorar a moça, no cair da noite, na porta de sua casa.

Em minha primeira manhã em Lençóis, abri as janelas da frente de casa para que o ar fresco e o sol invadissem a sala, e a primeira coisa que vi foi a vizinha da casa em frente, uma solícita senhora da boca desdentada, varrendo zelosamente não apenas a porta de sua casa mas, também, o pedaço de rua em frente. Achei curiosa aquela cena, pois venho de uma cidade onde as pessoas utilizam a rua para jogar o lixo. Mais tarde, voltei à janela e lá estava ela sentada ao meio fio com uma grande bacia entre as pernas, lavando a roupa suja. Enquanto esfregava vigorosamente cada peça, falava com seu pequeno neto, sentado logo a seu lado, lhe dizia, com um convincente argumento, para ir escovar os dentes ou, do contrário, ficaria banguela que nem ela. Ao terminar de lavar a roupa, pendurou-a num varal improvisado que atravessava a rua e o qual ela levantava com a ajuda de uma vara para que este não atrapalhasse a passagem. Então, a rua serve de área de serviço.

Na segunda-feira de carnaval pela manhã, eu me encontrava escrevendo, quando minha concentração foi distraída por vozes que vinham do lado de fora, em frente à minha casa. Interrompi o serviço, fui até a janela dar uma espiada e me surpreendi ao ver que minha vizinha recebia visitas, sentavam-se ao meio fio, proseavam animadamente. Fui me juntar a eles sentando-me nos degraus da minha porta. Participei da conversa por um tempinho como se fosse um amigo de longas datas e depois voltei ao trabalho. Quando veio a noite, percebi que depois da última novela, os vizinhos preferem ir para a porta de casa ficar conversando ao invés de ir assistir na TV um “reality show” que prima pelo mau gosto. De pé, à entrada de casa, duas casas à diante, um casal de jovens namorava à moda do tradicional “namoro de porta”. O pai da moça fica na sala, do lado de dentro, vigiando os movimentos das mãos do rapaz, que mão-boba é considerada uma falta grave aqui por estas bandas. Então, a rua serve, também, como sala de visitas.

No dia seguinte, ao convidar o sol a entrar em minha casa abrindo-lhe a janela, lá estava a dona Jandira, minha vizinha de frente, escovando os poucos dentes que lhe restam e varrendo a porta da rua ao mesmo tempo. Cumprimentamo-nos calorosamente com um bom dia, apesar de o dia estar meio nublado, como, aliás, em todas as manhãs cedo durante minha breve estadia em Lençóis. Elogiei o seu zelo por nossa rua e ela disse-me satisfeita que os moradores cuidavam da rua, razão pela qual não se viam mosquitos, baratas ou ratos pelas redondezas. À tarde, as crianças brincam animadamente na rua varrida, em segurança, para a despreocupação dos pais, outros ligam o som às alturas e sentam-se na porta de casa para ouvir música, ainda que de gosto discutível. Um rapaz, mais adiante, tem uma motocicleta e aproveita a tarde de feriado para dar um trato na máquina, na rua, em frende de casa.

Na minha Rua do Lajedo, raramente passa um automóvel e quando tal acontece, uma tartaruga consegue ser mais veloz que ele! Mas uma coisa me chamou a atenção depois da quarta-feira de cinzas, a casa da frente ficou o dia todo fechada. E o mesmo se sucedeu nos dias seguintes. Eu não ouvia mais o vozerio em frente de casa, e também percebi que a nossa frente não era mais varrida, as folhas secas e poeira se acumulavam. A dona Jandira estava fazendo falta. No sexto dia, cheguei a imaginar que ela tinha nos abandonado. Enquanto eu escovava os dentes, pela manhã cedo, olhava pela janela o estado que ficara a frente de nossa casa sem a minha zelosa vizinha, as folhas se acumulavam e a poeira, também, e pensava comigo mesmo, onde teria ido ela, nem me avisara. Fui até o quintal de casa e voltei com a vassoura para varrer a frente da rua.

Chapada Diamantina, 5 de março de 2012.

8 comentários:

Anônimo disse...

Cristiano, vc tem uma sensibilidae cotidiana elevada. Andei muito em Lençóis nos anos 90, Lajedo era um bar am cima do morro perto do mercado, nesse lugar vi até um show para poucos(privilegiados) de Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin.gostei do que você escreveu, vi com meus olhos a realidade cotidiana do "dolce fa niente", mas, me desculpando, tentar ser um Jorge amado(crítica, se não for ofensa!), parece uma taref hérculea. Mais pareceu uma matéria jornalística que a expressão interior de algém. Se solte mais, coloque mais 'você' no que escreve, e preocupe-se menos com sintaxes, voc~e vai ver que sua capacidade é infinita. Grande abraço

Sarnelli disse...

Para mim , foi rever cenas conhecidas que me levaram de volta à minha infância em Mata de São João, onde as coisas, em alguns lugares, aconteciam desse jeito . Eu identifico nos seus escritos um humor leve que me agrada .

Anônimo disse...

Cristiano, continuo lendo cada nova postagem, como sempre simples e com uma beleza nos detelhes do local.
Um abraço, Paulo.

Anônimo disse...

Deus abençoe a humanidade e a doçura da rua dos Lajedos...... te abraço
Marcella

Anônimo disse...

Cada vez que leio uma coisa sua mas te admiro.Parabéns.
Mônica Aroucha

Ana Martha Falzoni disse...

Muito bacanas estes costumes do interior. Coisa que não se vê mais por estas bandas de cá. Gostei, Cris. Você vê nas pessoas detalhes que poucos percebem, o que torna seu relato sensacional.

Manti disse...

Finalmente, meu primeiro comentário. É assim, a nossa cidade de Lençóis q costumo chamar tb de Zençóis. Obrigada pelas suas cartas, curto demais!

Anônimo disse...

Caro Cristiano, bacana o seu olhar para a rua, percebendo e revelando aspectos que, não temos mais a capacidade de ver. Gosto dessa relação do espaço privado para com o público, mas também observo o quão perigosa é essa apropriação sem valorizar-se o uso da boa educação relacionada aos direitos de cada um. Com exceção da praga do SOM, que é mesmo uma PRAGA, acredito ser essa a convivência ideal entre moradores da mesma rua. Parabéns pelo olhar e pelo texto. Valeu!
Luiz Mario