domingo, 20 de maio de 2012

Ode ao amor.


Certa vez, escrevi uma linda carta declarando o meu amor, mas que jamais foi respondida. E na certeza de que a tal missiva encontrara a sua destinatária no gozo de boa saúde, fiquei triste com a sua indiferença ao decidir-se que eu não merecia resposta alguma. É intrigante o comportamento humano diante de situações que envolvem razões do coração, sobretudo o do sexo oposto, pois, se aquela não fosse uma carta de amor e sim uma de injúrias, certamente eu teria recebido o contra-ataque na sequencia. Mas, ao contrário, a minha carta era suave e gentil, romântica como um poema de amor exaltando as qualidades da amada e defendendo as razões do nosso amor, escrita com todo o ardor de meu coração sincero e apaixonado. A algumas poucas amigas, pedi-lhes que a lesse para que dessem o seu veredito. A resposta foi que todas desejaram um dia ter recebido uma carta tão corajosa assim de um homem apaixonado que abre o seu coração sofredor e cuja ferida ainda continua aberta. Houve quem se oferecesse como substituta, e até uma dama casada me quis como amante. Recusei todas as ofertas, o meu coração estava reservado para a outra. Este mal logrado episódio de conquista amorosa me fez lembrar outro, no qual o meu saudoso pai foi ator coadjuvante.
         Um de seus admiradores e amigo tinha por hábito ir ao seu atelier visitá-lo vez por outra, porque lhe fazia bem conversar com um homem das artes e assisti-lo em seu labor, que papai não se incomodava de prosear enquanto pintava. Seus quadros eram impregnados de poesia e lirismo, e contemplar a sua criação era um raro privilegio só experimentado pelo amante da música clássica ao assistir o maestro reger, cuja execução é única, isto é, ele jamais executa a mesma obra do mesmo modo.
Amâncio, assim se chamava o rapaz, ia ao atelier ver os quadros naquela semana porque ele estava sofrendo, e o seu sofrimento era da alma, mas chegava a causar-lhe dor física porque é assim que se sofre de um amor verdadeiro, e admirar a beleza dos quadros de papai era um bálsamo para a sua dor.
É que ele recebera o famigerado “pé na bunda”, e como todo ser humano rejeitado, ele não se conformava. A sua infinita e dolorosa tristeza se traduzia em lamúrias e choramingas que meu pai ouvia fingindo sincero interesse embora aquilo o aborrecesse, isto porque ele era feito de um tecido forte e agreste que não tolerava homem que chorava por causa de mulher alguma, homem chorando já era uma coisa feia, e ainda mais por causa de uma decepção amorosa, era uma vergonha ao gênero masculino. O temperamento áspero de papai era uma de suas idiossincrasias, certamente uma incoerência com o lirismo e suavidade de sua arte.
Amâncio ia ao atelier todo santo dia e repetia sempre a mesma ladainha, falava de seu amor desprezado e de seu coração partido e da forma como agora a ingrata o tratava, com tamanha indiferença, que nem um cão sarnento merecia, como se nunca houve uma estória de amor entre ambos. Ele pedia conselhos a papai de como ele deveria agir para reconquistar o coração da amada e sem a qual ele não conseguia mais respirar. É duro, mesmo, a dor de cotovelo, viu. Mas como diria papai na elegância de seu falar maranhense, aquela estória já estava lhe “enchendo o recipiente”, pois o rapaz estava um chato com aquela estória toda de amor não correspondido.
         Certo dia, papai teve uma ideia e disse assim a Amâncio: “Presenteie ela com um quadro. Vou pintar algo tão belo que ela não resistirá e se jogará apaixonada em seus braços.” O rapaz seduziu-se com a ideia e fez uma encomenda a papai. Realmente os quadros do mestre Floriano tinham tal valor terapêutico, comprovado por casais de clientes que lhe eram gratos, pois as cenas picantes protagonizadas entre marido e mulher, contidas em minúsculas janelinhas, uma marca de sua pintura, apimentavam as coisas na alcova matrimonial. No entanto, houve certa cliente que, indignada, questionou se aquelas mulheres não seriam prostitutas, ao que papai esclareceu que não eram apenas as mulheres-da-vida que faziam aquelas indecências, que donas de casa eram também filhas de Deus e, por isso, apreciavam uma gostosa sacanagem. Quando o trabalho ficou pronto, Amâncio veio buscá-lo, ficando encantado e agradecido, pois papai realmente se esmerara.
         Dias depois, Amâncio reapareceu e todo borocoxô, aquele mesmo olhar de cachorro abandonado e cabisbaixo que conhecíamos, que homem quando sofre de amor não o faz com a mesma dignidade que a mulher.
         — Deu o quadro à moça? – papai quis saber.
         — Dei, sim. – resmungou.
         — E ela, gostou? Se jogou em teus braços como te disse?
         — Ao contrário, ela o atirou na minha cabeça!
         Papai apiedou-se do rapaz e, para reconfortá-lo, disse-lhe cinicamente:
         — Está vendo? Esta mulher te ama! As mulheres são assim mesmo complicadas, sabe. Fazem coisas opostas ao que realmente sentem. Talvez ela não seja uma amante dos quadros e se contente apenas com um jantar romântico num lugar chique, talvez fosse isto que ela estava tentando te dizer.
E esta foi a última sugestão de papai, apesar de ter conhecimento que mulheres são loucas por joias, mas desta vez preferiu recomendar algo mais modesto, para poupar o amigo de outra despesa extravagante.
Rio Vermelho, 28 de novembro de 2011.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sempre fiel ao seu lado.


Outro dia, assisti curioso, pela TV, um casal renovar os laços de matrimônio, passados sessenta anos de pura felicidade, afirmava a reportagem. Realmente, não deve ser fácil aturar a mesma pessoa por mais de meio século sem deixar de comemorar tal façanha. O idoso casal resolveu reviver a mesma cerimônia que protagonizou sessenta anos antes, na mesma igreja, agora na presença de filhos e netos. A noiva, agora uma jovem octogenária, não se vestiu de véu e grinalda como da primeira vez, mas estava elegante e bela para a cerimônia, e tão nervosa quanto antes. Desta vez, coube ao filho mais velho levá-la ao o altar para entregá-la ao sortudo noivo.
         Aquele conto de fadas me fez lembrar outro, protagonizado por J.R e dona Zélia, cujo casamento durou, igualmente, mais de meio século de companheirismo, mas que, numa sombria tarde, a despedida foi fatídica e dolorosa. J.R. estava muito doente havia semanas e já estava quase no bico do urubu; durante todo aquele tempo de sua enfermidade, a sua fiel dona Zélia jamais saiu de seu lado um só instante. Depois de um longo sono, J.R. despertou e a primeira pessoa que viu foi a sua Zélia, sentada ao lado do leito. Ele a olhou com ternura e disse-lhe com a voz cansada.
         — Minha velha, você sempre esteve ao meu lado...
         — Foi mesmo, meu velho. – respondeu dona Zélia com olhar doce.
         As palavras vinham com certa dificuldade, mas seus pensamentos eram tão claros como os de um rapaz jovem. O diabo do corpo é que não era mais o mesmo de antes. Perdera o vigor da juventude e agora era uma apenas uma máquina enferrujada prestes a bater.
         — Lembra quando nós ainda nem éramos casados e eu herdei o armazém do papai? Pena que o negócio nem foi adiante. E você estava ali ao meu lado...
         — Foi isso mesmo, meu velho. – disse dona Zélia segurando-lhe a mão.
         Um mundo de recordações, então, brotou da memória do moribundo J.R. como água de uma nascente.
         — Nós casamos e o meu tio me deu um emprego em sua fábrica de sabão...
         — Foi isso mesmo, meu velho. Eu já tinha até esquecido disso.
         — Mas aí você achou que eu ganhava pouco e meu tio não podia pagar mais. Eu saí da fábrica e fui ser vendedor de porta em porta. Mas eu não levava jeito para coisa e desisti.
         — Foi isso mesmo, meu velho. – disse dona Zélia dando-lhe uns tapinhas na mão.
         — E você, ali, sempre ao meu lado...
         — Eu nunca te abandonei, meu velho. – disse dona Zélia com ternura.
         — Para me ajudar, você foi trabalhar com o titio na fábrica de sabão... (tosse) a fábrica faliu...
         — Foi uma tristeza, ele amava tanto aquela fábrica. Seu tio era um homem tão bom.
         — E quando ele morreu, ainda me deixou um dinheirinho com o qual montei a lavanderia... (suspiro)
         — Foi isso, mesmo, meu velho.
         — A lavanderia ia indo muito bem... Tinha tanto trabalho que eu mal dava conta sozinho...
         — Foi isso mesmo, meu velho. E eu fui lá lhe dar uma mãozinha em meio turno, afinal, tinha as crianças para eu cuidar.
         — Mas aí os negócios começaram a ficar ruins e a lavanderia fechou. E você, sempre ali ao meu lado...
         Os olhos de J.R. se encheram de lágrimas com aquela recordação. Tossiu, soluçou, engasgou.
         — Você lutou muito, meu velho. – disse dona Zélia beijando-lhe a testa delicadamente.
         — E teve aquele terrível acidente de carro. Você não teve nada, (mais tosse e soluços) mas aquela vez você quase ficou viúva... Fiquei todo f... (engasgou).
         J.R. ficou em silêncio por um instante, reunindo fôlego para falar pois, estava realmente muito cansado. Ele olhou para Zélia com um olhar que a ela lhe pareceu de ternura e, então, ele balbuciou algo que ela não compreendeu. Aproximou dele com olhar doce para que ele repetisse. Ela imaginou que talvez ele estivesse tentando agradecer-lhe por todos aqueles anos, por seu amor e sua dedicação. E ele tentou mais uma vez falar quase sussurrando. Dona Zélia chegou o ouvido próximo de seus lábios para escutar melhor, seu coração apertava de aflição e expectativa.
         — Minha velha... você é um tremendo pé frio!
         E estas foram as derradeiras palavras de J.R. antes de dar seu último suspiro, na presença de dona Zélia, sempre fiel ao seu lado.
         Rio Vermelho, 7 de maio de 2012.