Outro dia, assisti curioso, pela
TV, um casal renovar os laços de matrimônio, passados sessenta anos de pura felicidade,
afirmava a reportagem. Realmente, não deve ser fácil aturar a mesma pessoa por mais
de meio século sem deixar de comemorar tal façanha. O idoso casal resolveu reviver
a mesma cerimônia que protagonizou sessenta anos antes, na mesma igreja, agora na
presença de filhos e netos. A noiva, agora uma jovem octogenária, não se vestiu
de véu e grinalda como da primeira vez, mas estava elegante e bela para a
cerimônia, e tão nervosa quanto antes. Desta vez, coube ao filho mais velho levá-la
ao o altar para entregá-la ao sortudo noivo.
Aquele conto de fadas me fez lembrar outro, protagonizado
por J.R e dona Zélia, cujo casamento durou, igualmente, mais de meio século de
companheirismo, mas que, numa sombria tarde, a despedida foi fatídica e
dolorosa. J.R. estava muito doente havia semanas e já estava quase no bico do
urubu; durante todo aquele tempo de sua enfermidade, a sua fiel dona Zélia
jamais saiu de seu lado um só instante. Depois de um longo sono, J.R. despertou
e a primeira pessoa que viu foi a sua Zélia, sentada ao lado do leito. Ele a
olhou com ternura e disse-lhe com a voz cansada.
— Minha velha, você sempre esteve ao meu lado...
— Foi mesmo, meu velho. – respondeu dona Zélia com olhar
doce.
As palavras vinham com certa dificuldade, mas seus
pensamentos eram tão claros como os de um rapaz jovem. O diabo do corpo é que
não era mais o mesmo de antes. Perdera o vigor da juventude e agora era uma apenas
uma máquina enferrujada prestes a bater.
— Lembra quando nós ainda nem éramos casados e eu herdei o
armazém do papai? Pena que o negócio nem foi adiante. E você estava ali ao meu
lado...
— Foi isso mesmo, meu velho. – disse dona Zélia
segurando-lhe a mão.
Um mundo de recordações, então, brotou da memória do
moribundo J.R. como água de uma nascente.
— Nós casamos e o meu tio me deu um emprego em sua fábrica
de sabão...
— Foi isso mesmo, meu velho. Eu já tinha até esquecido disso.
— Mas aí você achou que eu ganhava pouco e meu tio não podia
pagar mais. Eu saí da fábrica e fui ser vendedor de porta em porta. Mas eu não
levava jeito para coisa e desisti.
— Foi isso mesmo, meu velho. – disse dona Zélia dando-lhe
uns tapinhas na mão.
— E você, ali, sempre ao meu lado...
— Eu nunca te abandonei, meu velho. – disse dona Zélia com
ternura.
— Para me ajudar, você foi trabalhar com o titio na fábrica
de sabão... (tosse) a fábrica faliu...
— Foi uma tristeza, ele amava tanto aquela fábrica. Seu tio
era um homem tão bom.
— E quando ele morreu, ainda me deixou um dinheirinho com o
qual montei a lavanderia... (suspiro)
— Foi isso, mesmo, meu velho.
— A lavanderia ia indo muito bem... Tinha tanto trabalho que
eu mal dava conta sozinho...
— Foi isso mesmo, meu velho. E eu fui lá lhe dar uma
mãozinha em meio turno, afinal, tinha as crianças para eu cuidar.
— Mas aí os negócios começaram a ficar ruins e a lavanderia
fechou. E você, sempre ali ao meu lado...
Os olhos de J.R. se encheram de lágrimas com aquela
recordação. Tossiu, soluçou, engasgou.
— Você lutou muito, meu velho. – disse dona Zélia
beijando-lhe a testa delicadamente.
— E teve aquele terrível acidente de carro. Você não teve
nada, (mais tosse e soluços) mas aquela vez você quase ficou viúva... Fiquei
todo f... (engasgou).
J.R. ficou em silêncio por um instante, reunindo fôlego para
falar pois, estava realmente muito cansado. Ele olhou para Zélia com um olhar
que a ela lhe pareceu de ternura e, então, ele balbuciou algo que ela não
compreendeu. Aproximou dele com olhar doce para que ele repetisse. Ela imaginou
que talvez ele estivesse tentando agradecer-lhe por todos aqueles anos, por seu
amor e sua dedicação. E ele tentou mais uma vez falar quase sussurrando. Dona
Zélia chegou o ouvido próximo de seus lábios para escutar melhor, seu coração
apertava de aflição e expectativa.
— Minha velha... você é um tremendo pé frio!
E estas foram as derradeiras palavras de J.R. antes de dar
seu último suspiro, na presença de dona Zélia, sempre fiel ao seu lado.
Rio Vermelho, 7 de maio de 2012.
4 comentários:
Pé frio que é pé frio, não tem jeito! Não é que na hora derradeira a mulher estava aolado dofuturo defunto ? Ainda bem que ele se foi...
Quer horror!!kkko final!!bjs
Bela história Cristiano. Apenas lamento que a obra de um dos meus mestres baianos, o seu pai, tenha conhecido a cabeça do rapaz apaixonado, dessa forma. Ela, a amante em questão, deveria reconhecer na obra que lhe era presenteada, a grandiosidade que todos na Bahia lhe atribuem. Com certeza, faltava-lhe cultura e discernimento... o rapaz, claro, deve ter pulado fora dessa!
Bela história Cristiano. Apenas lamento que a obra de um dos meus mestres baianos, o seu pai, tenha conhecido a cabeça do rapaz apaixonado, dessa forma. Ela, a amante em questão, deveria reconhecer na obra que lhe era presenteada, a grandiosidade que todos na Bahia lhe atribuem. Com certeza, faltava-lhe cultura e discernimento... o rapaz, claro, deve ter pulado fora dessa! (a anterior foi como anônimo, pode! Sem querer, é claro!
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