quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Preguiça


Ao aposentar-se depois de 35 anos de serviço público, prestados no Departamento de Assuntos Fiscais do Município, Josué jogou fora o terno cansado com o qual costumava ir todos os dias para a repartição e meteu-se numa bermuda surrada, camisa de meia e um par de chinelos velhos e confortáveis.  “Pronto, este vai ser o meu uniforme de agora em diante.”, disse com júbilo. Finalmente ele realizava o seu grande sonho de não trabalhar nunca mais.
            Quem não ficou muito satisfeita com aquela novidade foi dona Etelvina, sua severa e trabalhadora esposa, dona de casa exemplar, que não estava acostumada a ter o marido em casa o dia inteiro, exceto nos finais-de-semana e feriados. Ela se perguntava com o que o marido ia se ocupar de agora em diante. Tudo o que ela menos desejava no mundo era ter um homem desocupado pela casa lhe aporrinhando a paciência. “Meu Pai, o que é que esse homem vai ficar fazendo dentro de casa o dia inteiro, de agora em diante?”, ela se perguntava aflita e benzendo-se.
            Mas Josué já tinha muito bem em mente como pretendia preencher o seu precioso e ocioso tempo pelo resto da vida. Alugou um serviço de TV a cabo com o qual planejava passar o dia deitado no sofá da sala vendo filmes e seriados, acompanhado de uma garrafa após outra de cerveja geladinha. A vida não podia ser mais perfeita!
            Tão logo a TV foi instalada, ele começou pondo em prática o seu brilhante plano. Entretanto, ele parecia determinado a levá-lo muito a sério, pois o mundo bem poderia acabar à sua volta, que ele não moveria um único dedo sequer para salvá-lo, a menos que lhe levassem junto a TV e a cerveja ou o sofá. Sua rotina diária era um verdadeiro martírio, ele acordava cedo com o único objetivo de ter mais tempo para ficar sem fazer nada. Depois do café, ele lia a sessão inteira de esportes do jornal enquanto tomava o banho de sol sentado na cadeira da varanda, em seguida, pulava para o sofá para começar a sua maratona em frente à TV. E quando o sino da igreja do bairro dava a badalada das dez horas, ele abria religiosamente a sua primeira cerveja do dia e só fazia um intervalo para almoçar, seguido do cochilo em sua própria cama até as quatro da tarde. Depois do merecido descanso, ele voltava para frente da TV, para assistir a sessão da tarde e depois enveredava pela noite a dentro. Felizmente ele também cultivava o mesmo gosto de dona Etelvina pelas novelas, de modo que ele não se incomodava com que ela as assistisse sentada no sofá ao seu lado.
            Dona Etelvina dava um duro dentro de casa, varrendo, limpando, lavando, passando e cozinhando e ainda por cima fazendo a feira da semana e o supermercado, mas o Josué olhava aquilo tudo com um olhar de paisagem sem ao menos se oferecer para ir ali no armazém comprar tempero, que é o que se espera de um marido aposentado. Ele não se oferecia para ajudar em coisa alguma na casa, era como se ele houvesse jogado o seu senso de solidariedade no lixo juntamente com o seu velho terno de ir para o trabalho. Mesmo quando ela se aventurava a pedir-lhe um favor, ele sempre dava a mesma resposta “Depois eu faço.” O que inequivocamente significava o mesmo que dizer “não conte comigo.” Claro que dona Etelvina ficava furiosa com a falta de cooperação de Josué, “mas que homem inútil”, ela dizia para si mesma benzendo-se. “Meu filho, você deve ter alguma doença, pois eu nunca vi ninguém tão preguiçoso como você.”, ela sempre repetia todos os dias, ao que ele fazia uma expressão de desdém sem contestá-la.
Certo dia, não tolerando mais a preguiça do marido, dona Etelvina mandou-o ir se consultar com um médico para que este descobrisse o que havia de errado com o ele. Sob protestos, Josué acatou à ordem e foi ver o médico, embora tivesse certeza de que nada de errado havia com ele. Então, depois que o médico o examinou minuciosamente, ele concluiu o seu diagnóstico.
— Bem, Sr. Josué, acho que já descobrir qual o seu problema. – disse o médico com uma expressão grave.
— Pode dizer, doutor. – disse Josué, não demonstrando qualquer preocupação.
— O senhor tem preguiça! – informou o médico.
— Ah, sim! Mas o doutor poderia me dizer qual o nome científico para eu informar à minha esposa?

Rio Vermelho, 22 de outubro de 2012.
           

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Revelação de Um Sedutor Barato


Era o tipo de homem desejado pela maioria das mulheres. E a maioria das mulheres era o tipo desejado por ele, cuja disposição para conquistá-las era quase uma obsessão.  Entretanto, elas não lhe passavam de simples diversão e de uma forma de satisfação de seu próprio ego. Seduzia uma após outra com a mesma facilidade com que se colhem frutas no pomar, que depois de chupadas, descarta-se o bagaço.

            João dos Prazeres tomou o nome de batismo como um estilo de vida. João, o mais elementar dos nomes, de fácil assimilação e aceitação, muito popular. Prazer(es), um bem supremo ao qual dedicava a vida à sua satisfação pessoal. Era como se sua existência tivesse na diversão o seu único propósito, e se divertir, em seu limitado vocabulário, significava seduzir belas mulheres, todas elas, se possível. Não havia noite em que ele não pusesse os pés fora de casa para “se divertir”, era como ele se referia à sua prática conquistadora.

            Suas táticas de sedução eram conhecidas de qualquer conquistador barato, e de muitas desafortunadas mulheres, infelizmente. Depois de aproximar-se da vítima escolhida, ele a envolvia com uma manjada conversa fiada, os mesmos elogios fáceis à sua beleza e ao seu sorriso. Não há coração feminino que não se renda à lisonja de um homem atraente e conquistador e, por tanto, não demorava muito até que ela, imprudentemente, cedesse ao seu encanto, tornando-se mais uma em sua longa e bem sucedida lista.

No decorrer da noite, então, ele não se dava por satisfeito enquanto não desfrutasse dos favores da moça, porque ele era muito insistente neste aspecto, e usava de todas as suas artimanhas para alcançar este que era o seu objetivo principal. A noitada, então, tornava-se num jogo sensual de lobo perseguindo a lebre, até que esta se desse por vencida e capitulasse. Entretanto, não havia dúvidas de que fosse exatamente este o plano dela, também, desde o início, apesar de ela seguir fielmente os conselhos de sua querida mãe, que julgava ser o mais apropriado para uma moça de família resistir às investidas do homem, nem que fosse só um pouquinho, para que ele não tivesse uma ideia errada a seu respeito.

João dos Prazeres surpreendia as mulheres como amante, pois não apenas ele era muito habilidoso no assunto, como as deixava apaixonadas. Entretanto, ele considerava tedioso sair com a mesma mulher mais de uma vez, se enjoava dela com a mesma rapidez com que se interessava. Depois da noitada, ele simplesmente sumia do mapa, não atendia os insistentes telefonemas da moça, ignorava-a e ponto final. Como era de se presumir, ela sofria por ser abandonada, mergulhando num mar de mágoa, amargura e arrependimento. Será que, agindo assim, ele realmente gostava das mulheres, ou apenas as punia por serem mulheres?

Entretanto, certa vez o destino lhe pregou uma peça, confrontando-o com a sua dura realidade, fazendo com que sua máscara caísse, revelando a si mesmo o seu verdadeiro ser. João dos Prazeres chegou ao mesmo bar o qual dava início as suas noitadas e ocupou o seu lugar favorito ao balcão. Ao seu lado, logo em seguida sentou-se José, um desconhecido, que o saldou com um brinde de cerveja. Aquele gesto amigável foi o suficiente para que os dois estranhos se pusessem a conversar como velhos amigos, pois não há nada como uma garrafa de cerveja e dois copos para celebrar a amizade entre dois homens que acabaram de se conhecer. José estava naquele bar pela primeira vez e tinha o mesmo propósito de João, conquistar uma mulher para se divertir. E não demorou muito para o álcool fazê-lo soltar a língua, contando a João inconfidências sobre a sua mais recente aventura amorosa. João ficou fascinando ao ouvir aquele relato, parecia ele mesmo agindo em uma de suas conquistas. Pediram mais uma cerveja e brindaram às mulheres, mas, desta vez, foi João quem contou ao novo amigo uma de suas aventuras. E assim os dois companheiros de divertiram preenchendo o vazio da noite com cervejas e histórias picantes.

A noite se passou sem João, entretanto, ter posto os olhos em uma única mulher se quer e, certamente, havia muitas delas para serem admiradas naquele lugar. No entanto, sua atenção foi arrebatada por aquele rapaz com quem acabara de fazer camaradagem, como se ele possuísse um magnetismo que João não pudesse resistir. João sentia-se estranhamente naquela situação, um desejo forte e inexplicável de atração por um homem que ele jamais experimentara algo semelhante antes em toda a sua vida. Ao ouvir José contar com prazer e riqueza de detalhes as suas aventuras sexuais, era como se ele estivesse ouvindo a si mesmo ou admirando-se ao espelho. Os dois homens riram juntos do modo como ambos se divertiam com as mulheres e depois as desprezavam feito algo sem mais utilidade.

Na despedida, ao final da noite, um aperto firme de mão selou de vez a nova amizade, seguido de um forte e longo abraço que João deu em José, fazendo este se sentir incomodado. E, sem conseguir conter o impulso, João tentou beijar os lábios de José, ao que foi repelido por este com firmeza e repulsa. João, também, chocou-se, entretanto, consigo mesmo, porque aquele gesto foi impróprio de sua natureza, inédito de sua pessoa. Atordoado com o que acabara de acontecer, ele deixou o bar envergonhado, logo em seguida. No caminho para casa, João recriminava-se e, ao mesmo tempo, não conseguia fazer desaparecer José de seus mais íntimos pensamentos e fantasias. Desejos conflituosos lhe afluíam à cabeça como uma tempestade, confundindo-lhe os sentimentos. Para seu assombro, ele se descobriu desejando estar com aquele homem a noite inteira, ouvir mais uma vez a sua grave voz, sentir a rigidez de seu corpo, tão diferente da maciez feminina, e beijá-lo a noite inteira. João, então, desmoronou chocado com aquela descoberta a seu próprio respeito, sentiu-se no inferno. Deu meia volta e retornou ao bar onde estava antes, aproximou-se de José, que continuava ao balcão, e o atacou de assalto com os punhos cerrados e chutes enquanto gritava tomado de cólera “eu sou é macho!, eu sou é macho!, eu sou é macho!”

Rio Vermelho, 9 de outubro de 2012.