terça-feira, 29 de janeiro de 2013

As Voltas Que Mundo Dá


Ontem, corri incansavelmente pelas óticas do shopping à procura de uma armação do meu agrado e, vencido pela frustração, fui buscar conforto numa livraria, onde comprei um romance para ler durante o feriado de Carnaval, o qual me refugiarei no bucolismo e nos banhos de cachoeira da Chapada. Livrarias são sempre ótimos lugares para encontrar casualmente amigos ou, quem sabe, fazer novas amizades. É como se o ambiente dos livros possuísse o mágico poder para despertar nas pessoas o seu lado mais interessante e civilizado. Foi quando tive a grata satisfação de reencontrar uma amiga que não via há anos e por quem já nutri uma secreta paixão.
Não consigo precisar quanto tempo faz que a vi pela primeira vez, mas lembro-me de como os nossos caminhos se cruzaram, em dois episódios que envolviam desilusão amorosa e sofrimento. Quando a vi pela primeira vez, fiquei encantado com a sua beleza, uma jovem mulher de formas clássicas, cabelos loiros geneticamente coerentes e feições finas e delicadas, dona de uma voz firme e nasalada, mas que eu só vim a ouvir quando conversamos finalmente na segunda vez que a vi.
Recordo-me, agora, como se fosse antes de ontem, a primeira vez que a vi, num pequeno bistrô especializado em cervejas importadas. O lugar estava quase entregue às moscas, só havia duas mesas ocupadas. Eu estava numa, sozinho, e, não muito distante, estava ela na outra, acompanhada de um rapaz; éramos três naquele lugar esquecido. De minha mesa, eu podia observar, sem ser percebido, o casal sentado, um de frente para o outro, falavam tão baixo que eu não podia ouvir palavra, um martírio para mim, que sou um grande prestador de atenção da conversa alheia, nada me ensina mais que a vida dos outros, entretanto vi o suficiente para entender do que se passava.
O rapaz entregou discretamente à moça um cartão, destes que se usa para ocasiões especiais como aniversários e felicitações. Ironicamente, aquela não me parecia ser uma situação para festejar. Reinava um clima desconfortável entre os dois. Ela, então, o leu como se não esperasse por outra coisa que não aquelas palavras contidas em seu interior. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela conteve o choro enquanto ele a reconfortava segurando-lhe a mão ternamente. Não fez escândalo ou uma cena. Eu testemunhava o fim de um relacionamento. Ao contrário de ele lhe falar, preferiu o uso da palavra escrita, escondendo-se por traz de um cartão barato. Ah!, como é difícil para alguns falar a outrem certas coisas que vão no coração. Eu observava o casal enternecido, percebia o estado daquela moça em sua forma mais fragilizada, podia imaginar o machucado do seu coração e do seu sofrimento. Tive vontade de ir até a sua mesa para tomá-la nos braços, reconfortá-la e dizer-lhe que a sua vida não acabara ali, que nem tudo estava perdido e que o mundo dava muitas voltas, seja lá o que isto significasse para aquela situação. Nunca apaguei da mente aquela cena tão discreta e tão forte.
Anos depois, a reencontrei novamente e logo a reconheci, embora ela realmente jamais soubesse quem eu fosse, foi quando trocamos palavras pela primeira vez. Uma amiga moderninha aniversariava e fomos festejar na boate gay da moda, escondida numa área decadente do centro da cidade. Eram épocas em que ser gay não era razão para se comemorar com fogos de artifício, como acontece hoje em dia. Ao nos encontrarmos na apertada pista de dança, foi como se ambos se sentissem na obrigação de dar satisfação ao outro por estarem ali naquele lugar ao qual não pertencíamos. Eu disse-lhe que comemorávamos o aniversário de uma amiga e ela explicou-me que estava namorando um colega de trabalho, mais tarde soube que era seu chefe, e que a empresa para a qual trabalhavam tinha regras rígidas sobre funcionários namorarem entre si e que isto era causa de demissão na certa. Por isso, os dois amantes frequentavam lugares alternativos onde a probabilidade de se esbarrarem com agentes da Santa Inquisição da poderosa empresa fosse nenhuma.
Não muitos dias depois, a reencontrei no café de uma livraria, desta vez, desacompanhada. Sentamos juntos numa mesa e ela abriu o seu coração para mim; tenho este dom que nunca quis ter, desperto nas pessoas o seu lado confessional: o romance com o chefe tinha terminado e ela simplesmente não aguentava o sofrimento de vê-lo todos os dias, pensava em pedir demissão do promissor emprego. Seus olhos encheram-se de lágrimas enquanto sufocava o choro, e fui eu quem, desta vez, segurei a sua mão para reconfortá-la.
Depois daquele encontro, conversamos algumas vezes ao telefone e nunca mais soube dela. Certa vez, muito tempo depois, fui surpreendido com um simpático cartão de Natal e um bilhetinho. Neste tempo todo que se passou, me perguntei por onde andava ela, a que outras decepções amorosas teria sobrevivido e se, sobretudo, ela era feliz agora. Ela me parecia uma dessas figuras femininas à procura constante do verdadeiro amor, – só existente nos romances açucarados que ela leu – e que mergulham cegamente de ponta cabeça numa paixão, mas nunca encontrava o príncipe encantado.
Nosso reencontro na livraria foi uma alegria. Ela estava mais velha e mais bela. O marido iria presenteá-la com um desses computadores portáteis caríssimos e ela estava lá escolhendo marca e modelo. Tinha filhos, muitos deles, estava feliz no casamento e realizada profissionalmente, o que mais podia desejar. Fiquei feliz por ela ter reescrito a sua historia com um final feliz. Não a invejei, mas desejei algum dia conhecer semelhante felicidade. A vida existe para isso, para que continuemos tentando, tentando mais uma vez, e de outra maneira, esforço sem o qual não vale a pena a existência, até dar finalmente certo.
Rio Vermelho, 28 de janeiro de 2013.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Sobre Vacas e Cavalos ou a Estória do Garoto que Despertou Para Um Novo Mundo

Era um menino franzino, destes, criado em condomínio, mas que aos dez anos de idade já era um mestre de lutas marciais no vídeo game e exímio usuário de computadores e similares. Seu mundo restringia-se a um monitor de 25 polegadas e a uma tela de um ipod. Nunca brincara de bola de gude, picula ou fizera estripulias em cima de uma árvore. Ver uma vaca ou cavalo em pessoa, nem pensar! Era um perfeito garoto nascido e criado na cidade, como tantos outros. Filho de pais separados.
         Naquele sábado, era dia de ele ficar com o pai. A mãe, então, arrumou-lhe a mochilinha com uma muda de roupa limpa e foi ela mesma levar o embrulho na casa do ex, logo cedo pela manhã. O pai recebeu o filho com um abraço afetuoso e em instantes já estavam na rua, pai e filho foram à barbearia do bairro cortar o cabelo. O passeio seguinte foi uma ida ao mercado para fazer as compras da quinzena, e quando voltaram para casa estavam famintos, já era a hora do almoço. Uma lasanha congelada saiu do freezer diretamente para o micro-ondas e em poucos minutos já estava materializada em seus pratos à sua frente na mesa, era só o trabalho de comê-la com um copo grande de Coca-Cola e muito gelo. Uma delícia! Depois do almoço, enquanto o pai tirava um merecido cochilo, o filho queimava as suas calorias de frente do computador, antes do próximo passeio do dia que era uma ida ao shopping, seguida de uma sessão de cinema.
         Foi o garoto que fizera a escolha do filme, era justamente aquele que anunciava na TV a cada meia hora e prometia uma diversão para toda a família. Era a estória de um tsunami, a enorme onda oceânica vinha de surpresa e causava uma verdadeira bagunça numa cidade. Ele nunca vira um tsunami antes, assim como nem uma vaca ou cavalo em pessoa, mas sabia que o do filme era de mentirinha, mas estava muito curioso de ver os efeitos especiais hollywoodianos, provavelmente o tsunami seria a melhor parte! Em antecipação ao filme, em sua cabecinha de criança, ele teve fantasias de como seria uma catástrofe natural como aquela.
         E no final da tarde, pai e filho foram ao shopping e o garoto ganhou, como sempre acontecia em todas as suas visitas, um presente bacana que o pai fazia questão de lhe dar, embora não fosse seu aniversário, dia das crianças ou o Natal. A programação seguinte era o filme cujo ingresso, depois de ter sido comprado após uma espera numa longa fila, havia outra maior ainda os aguardando para entrar na sala de exibição. Não fazia mal, enquanto esperavam comeriam um balde de pipoca com um litro de Coca-Cola, afinal, criança em fase de crescimento precisa comer bastante!
         Quando o suplício de aguardar na fila terminou, pai e filho tiveram sorte de encontrar um lugar ao lado do outro na plateia e, em seguida as luzes se apagaram e a magia começou! O pai não tinha muita ideia do que se tratava o filme, mas se era liberado para crianças de doze anos, seu filho de dez, com certeza, era um menino esperto para entender a estória.
A estória do filme girava em torno de uma família que sobrevivera a um tsunami, disso o garoto já sabia. Entretanto a seu entusiasmo tornou-se um pesadelo meia hora depois de começado o filme. Como a própria propaganda dizia, um enorme tsunami veio e arrasou um país inteiro, e no centro daquela catástrofe estava uma típica família americana de férias nas praias de num país exótico. Muita dor, muitas mortes, muitas perdas. Os minutos seguintes foram de angustia e sofrimento da família, brutalmente separada pela tragédia e de sua procura para reencontrar-se em meio ao caos. Ao ver tanta miséria o garoto teve medo e arrependeu-se da infeliz escolha. Lamentou por aquela família que tinha um garoto de sua idade. Assistiu o filme emudecido com o choro preso na garganta. Depois daquela sessão de terror foi para casa assustado e teve pesadelos com tsunami a noite inteira. Quanta diversão para uma criança de apenas dez anos.
Na manhã seguinte, no domingo, pai e filho tomaram um delicioso café, uma pizza Portuguesa sem cebola. Em seguida, o pai arrumou a mochilinha do garoto e foi ele mesmo entregar o embrulho à mãe. Esta o aguardava com saudades, abraçou e beijou o filhote ternamente e lhe perguntou se teve um ótimo sábado. Ao que o menino respondeu com um aceno de cabeça e, em seguida, correu para o seu computador.
Evitando descrever a rotina de um domingo modorrento, o ponto alto do dia foi no final da tarde, quando a mãe tinha uma surpresa reservada para o filho. Foram ao teatro ver um concerto da orquestra sinfônica, algo que o menino jamais vira antes na vida, assim como uma vaca e um cavalo em pessoa. Era uma programação especial para adultos e crianças que nunca foram num concerto: as trilhas sonoras de filmes famosos!
Este era um concerto muito incomum porque ao invés de usarem os costumeiros trajes escuros, os quais para os homens são os smokings e para as mulheres os longos, os músicos fantasiaram-se como personagens de filmes famosos, até mesmo o maestro! O garoto ficou maravilhado com a surpresa e, enquanto os músicos aguardavam a entrada do regente, ele tentava adivinhar qual personagem cada fantasia se referia. E quando finalmente o maestro chegou, a primeira música que ele regeu foi aquela que todos conhecemos e que é a abertura de todos os filmes. O garoto se viu num sonho acordado, seus olhos brilhavam de encantamento.
Para cada música tocada o maestro tinha o cuidado de apresentá-la previamente ao público, algumas eram consagradas peças de música clássica e outras recriações inspiradas em músicas conhecidas. Alguns dos filmes o garoto nunca ouvira falar em sua vida, pois não eram do seu tempo, outros eram recentes e os seus preferidos. Entretanto, todas possuíam a mesma coisa incomum, segundo as próprias palavras do garoto, eram todas lindas! Nossa, ele nunca reparou como a música do E.T. fosse tão maravilhosa e a do Super-homem tão impressionante. A do Harry Potter ele não reconheceu a principio, mas depois a achou linda demais. Enquanto o garoto escutava encantado com tanta beleza, a música clássica ia cuidando de lavar de sua memória as lembranças ruins do filme do dia anterior, sim, porque a música clássica é uma das maiores invenções do ocidente e é a única expressão da criação humana capaz de nos transportar para algo próximo ao paraíso, caso este realmente existisse.
Ao final do concerto, o garoto estava feliz e o seu espirito em estado de contemplação. Anunciou decidido à mãe que queria ser um maestro quando crescesse, ao que ela lhe respondeu dizendo para ele aprender a tocar algum instrumento antes e lhe perguntou qual ele mais gostava e ele respondeu satisfeito e alegre: o violino!

Rio Vermelho, 19 de janeiro de 2013.