Ontem, corri incansavelmente pelas
óticas do shopping à procura de uma armação do meu agrado e, vencido pela
frustração, fui buscar conforto numa livraria, onde comprei um romance para ler
durante o feriado de Carnaval, o qual me refugiarei no bucolismo e nos banhos
de cachoeira da Chapada. Livrarias são sempre ótimos lugares para encontrar
casualmente amigos ou, quem sabe, fazer novas amizades. É como se o ambiente
dos livros possuísse o mágico poder para despertar nas pessoas o seu lado mais
interessante e civilizado. Foi quando tive a grata satisfação de reencontrar
uma amiga que não via há anos e por quem já nutri uma secreta paixão.
Não consigo
precisar quanto tempo faz que a vi pela primeira vez, mas lembro-me de como os
nossos caminhos se cruzaram, em dois episódios que envolviam desilusão amorosa
e sofrimento. Quando a vi pela primeira vez, fiquei encantado com a sua beleza,
uma jovem mulher de formas clássicas, cabelos loiros geneticamente coerentes e
feições finas e delicadas, dona de uma voz firme e nasalada, mas que eu só vim
a ouvir quando conversamos finalmente na segunda vez que a vi.
Recordo-me,
agora, como se fosse antes de ontem, a primeira vez que a vi, num pequeno
bistrô especializado em cervejas importadas. O lugar estava quase entregue às
moscas, só havia duas mesas ocupadas. Eu estava numa, sozinho, e, não muito
distante, estava ela na outra, acompanhada de um rapaz; éramos três naquele
lugar esquecido. De minha mesa, eu podia observar, sem ser percebido, o casal sentado,
um de frente para o outro, falavam tão baixo que eu não podia ouvir palavra, um
martírio para mim, que sou um grande prestador de atenção da conversa alheia, nada
me ensina mais que a vida dos outros, entretanto vi o suficiente para entender
do que se passava.
O
rapaz entregou discretamente à moça um cartão, destes que se usa para ocasiões
especiais como aniversários e felicitações. Ironicamente, aquela não me parecia
ser uma situação para festejar. Reinava um clima desconfortável entre os dois.
Ela, então, o leu como se não esperasse por outra coisa que não aquelas
palavras contidas em seu interior. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela
conteve o choro enquanto ele a reconfortava segurando-lhe a mão ternamente. Não
fez escândalo ou uma cena. Eu testemunhava o fim de um relacionamento. Ao contrário
de ele lhe falar, preferiu o uso da palavra escrita, escondendo-se por traz de
um cartão barato. Ah!, como é difícil para alguns falar a outrem certas coisas
que vão no coração. Eu observava o casal enternecido, percebia o estado daquela
moça em sua forma mais fragilizada, podia imaginar o machucado do seu coração e
do seu sofrimento. Tive vontade de ir até a sua mesa para tomá-la nos braços,
reconfortá-la e dizer-lhe que a sua vida não acabara ali, que nem tudo estava
perdido e que o mundo dava muitas voltas, seja lá o que isto significasse para
aquela situação. Nunca apaguei da mente aquela cena tão discreta e tão forte.
Anos
depois, a reencontrei novamente e logo a reconheci, embora ela realmente jamais
soubesse quem eu fosse, foi quando trocamos palavras pela primeira vez. Uma
amiga moderninha aniversariava e fomos festejar na boate gay da moda, escondida
numa área decadente do centro da cidade. Eram épocas em que ser gay não era
razão para se comemorar com fogos de artifício, como acontece hoje em dia. Ao nos
encontrarmos na apertada pista de dança, foi como se ambos se sentissem na
obrigação de dar satisfação ao outro por estarem ali naquele lugar ao qual não
pertencíamos. Eu disse-lhe que comemorávamos o aniversário de uma amiga e ela
explicou-me que estava namorando um colega de trabalho, mais tarde soube que
era seu chefe, e que a empresa para a qual trabalhavam tinha regras rígidas
sobre funcionários namorarem entre si e que isto era causa de demissão na
certa. Por isso, os dois amantes frequentavam lugares alternativos onde a
probabilidade de se esbarrarem com agentes da Santa Inquisição da poderosa
empresa fosse nenhuma.
Não
muitos dias depois, a reencontrei no café de uma livraria, desta vez, desacompanhada.
Sentamos juntos numa mesa e ela abriu o seu coração para mim; tenho este dom que
nunca quis ter, desperto nas pessoas o seu lado confessional: o romance com o
chefe tinha terminado e ela simplesmente não aguentava o sofrimento de vê-lo
todos os dias, pensava em pedir demissão do promissor emprego. Seus olhos encheram-se
de lágrimas enquanto sufocava o choro, e fui eu quem, desta vez, segurei a sua
mão para reconfortá-la.
Depois
daquele encontro, conversamos algumas vezes ao telefone e nunca mais soube dela.
Certa vez, muito tempo depois, fui surpreendido com um simpático cartão de
Natal e um bilhetinho. Neste tempo todo que se passou, me perguntei por onde andava
ela, a que outras decepções amorosas teria sobrevivido e se, sobretudo, ela era
feliz agora. Ela me parecia uma dessas figuras femininas à procura constante do
verdadeiro amor, – só existente nos romances açucarados que ela leu – e que
mergulham cegamente de ponta cabeça numa paixão, mas nunca encontrava o príncipe
encantado.
Nosso
reencontro na livraria foi uma alegria. Ela estava mais velha e mais bela. O
marido iria presenteá-la com um desses computadores portáteis caríssimos e ela
estava lá escolhendo marca e modelo. Tinha filhos, muitos deles, estava feliz
no casamento e realizada profissionalmente, o que mais podia desejar. Fiquei
feliz por ela ter reescrito a sua historia com um final feliz. Não a invejei,
mas desejei algum dia conhecer semelhante felicidade. A vida existe para isso,
para que continuemos tentando, tentando mais uma vez, e de outra maneira, esforço
sem o qual não vale a pena a existência, até dar finalmente certo.
Rio
Vermelho, 28 de janeiro de 2013.