domingo, 28 de abril de 2013

O Taxista Apaixonado

Sexta-feira, vesti minha roupa de domingo e fui ao encontro com a moça de meus sonhos. Um táxi casualmente passava em frente de casa, fiz sinal e ele parou. Toca pro corredor da Vitória, eu disse, que a moça já está me esperando. Falei assim para impressioná-lo, queria que soubesse que não sou um João de Ninguém, pois à minha espera, estava uma bela moça. Era para ele andar mais rápido, também, e escolher o caminho mais curto. Mas não menti totalmente. Havia, sim, uma moça na parada, mas eu era quem iria esperar por ela. Meu coração batia de tanta felicidade, como o de uma criança que acabou de ter encontrado com Papai Noel. O taxista, percebendo a minha ansiedade, arriscou:
         — É tão bom ir encontrar-se com namorada nova, não é mesmo?
         — Esta não é nova e nem é velha. É apenas um projeto amoroso que, pelo andar da carruagem, nunca deixará o plano das boas intenções.
         — Eu estou entendendo o que o senhor está me dizendo... – disse pensativo.
         — Este é um daqueles casos complicados que não ata e nem desata, entende? Um joga confete no outro, mas nenhum dos dois toma a iniciativa.
         — O meu caso é um desses complicados também. – lamentou o taxista.
         — E eu já até tentei me declarar, falar-lhe do meu amor por ela, mas ela não deixa, pois ela tem o dom da palavra: fala pelos cotovelos!
         — O senhor permite eu lhe dizer uma coisa?
         Imaginei que viria de lá um daqueles conselhos de taxistas. Eles sempre têm solução para tudo e sabem das coisas melhor que ninguém. Se no Congresso só houvesse motoristas de táxi e se fossemos governados só por eles, o Brasil, com certeza, seria um país bem melhor. Não haveria inflação ou desemprego, nem mais pobreza, o problema da violência estaria resolvido, o corrupto iria ver o sol nascer quadrado o resto da vida, nossa educação seria melhor que a da Coreia do Sul, a soja não apodreceria no caminhão na fila de espera para ser embarcada no navio, não haveria mais seca no Nordeste, nem filas em hospitais públicos e a nossa Seleção teria uma escalação de fazer gosto. Mas, ao invés de dar um conselho, ele me surpreendeu.
         — Eu estou muito apaixonado. – declarou emocionado.
         — É... Também padeço da mesma moléstia.
         — Mas o senhor tem sorte, vai encontrar com a moça daqui a pouco, assim que eu lhe deixar em seu destino. A minha mora lá no fim do mundo, no Amapá.
         — A minha situação não é muito diferente. É como se ela morasse no Cazaquistão, só vejo de andorinha em andorinha e, às vezes, nem isso. Você a conheceu pela internet?
         — Não. Conheço-a em carne e em osso! – disse com orgulho.
         Curioso, perguntei:
— E como foi isto?
— Ela veio a Salvador a trabalho, fui seu motorista o tempo todo. Ela é uma empresária lá na terra dela, muito bem de vida, por sinal.
— Ah, sim...
— Agente foi se entendendo e sabe como são estas coisas...
— Comeu-la?
— Não! Não houve oportunidade, mas rolou muito carinho. Agente saía pra namorar todas as noites e quando ela estava livre do trabalho. Íamos jantar fora, estas coisas. Ela pagava tudo, não deixava eu ter despesa alguma, me tratava como um príncipe. – os olhos marejaram.
— Que bacana.
— Antes de ir embora, quis me dar um relógio de presente, mas não aceitei. Não aceito presente caro de mulher, não sou homem disso.
— Agiu corretamente. – eu disse, embora pense o contrário. Que mal tem em receber um presente caro?
— Meu senhor, eu não paro de pensar nessa mulher, eu penso nela noite e dia. Eu tô aqui conversando com o senhor, mas estou pensando nela. É um tormento, nem durmo mais direito de pensar tanto nela.
— Eu sei como é isto...
— Estou com muita saudade... Ela não me telefona, eu fico esperando uma ligação dela, mas até hoje ela não me telefonou, depois que voltou pro Amapá.
— Mas porque você não faz uma surpresa a ela e liga você mesmo?
— É meio complicado...
— Como assim? Não tem o telefone dela?
— Tenho sim. Mas vai que o marido dela atende o telefone?

Rio Vermelho, 27 de abril de 2013.
          

sábado, 13 de abril de 2013

O Poeta Deformado

Aos 56, Horácio de Mattos era o poeta preferido dos intelectuais boêmios e habitués de bares noturnos, dos aposentados da praça no centro da cidade onde intermináveis partidas de dominó eram travadas, dos entediados passageiros de ônibus, dos passantes apressados de qualquer esquina movimentada, dos apaixonados, dos amantes, onde houvesse público, porque ele era um poeta de rua, declamava seus poemas onde o público estava. Mas para ganhar a vida, tirar o seu sustento, a sua realidade era bem mais dura, pois ele era o faxineiro da noite de uma escola pública.

            Horácio sofria a angústia daquela vida dupla. Afinal, qual homem dos versos, sensível, talentoso, romântico, sonhador seria feliz dependo do trabalho braçal para sobreviver? Mas aquele conflito estava longe de ser tudo. Isto porque, a sua coleção de belos poemas não estava guardada em outro lugar além de sua memória e da qual ele dependia visceralmente para ser poeta. A verdade era que não existia um único registro de suas poesias num caderninho ou simples folha de papel que fosse. Estava tudo mesmo guardado em sua cabeça.

O motivo para o uso daquele sistema de arquivamento rudimentar era simples e ao mesmo tempo trágico: o nosso grande poeta não sabia escrever. Nem ler. O homem que usava a palavra como ferramenta de trabalho era incapaz de reconhecê-la grafada no papel, num letreiro de rua, no ônibus o qual tomava para ir ao trabalho. Muito menos sabia reproduzi-la com lápis sobre a parede. Horácio era analfabeto de pai e de mãe.

A alfabetização é uma das pedras angulares da civilização. Ser analfabeto é ser deformado. E o desprezo que antes era dirigido à aberração física pode, talvez com mais justiça, recair sobre os analfabetos. Não era por menos que Horácio fazia de sua limitação intelectual um segredo do qual se envergonhava.

            Havia outro mistério que tornava a vida de Horácio mais dura ainda. Seus poemas eram verdadeiras odes ao amor e à felicidade. Não era ele o poeta do amor não correspondido, do coração partido, do amor desfeito, da desilusão amorosa. Ao contrário, ele celebrava a realização plena do amor, o encontro da pessoa amada, a felicidade de estar amando e de ser amado. Entretanto, por ironia do destino, nosso Horácio poeta jamais conheceu o amor que ele tanto louvava em seus versos. Nunca experimentou o gosto de beijar os lábios da mulher amada ou andar de mãos dadas em sua companhia ao longo da areia da praia no limiar de um pôr do sol. Jamais houve ninguém contando as horas do dia passarem para ficar juntinho ao seu lado. Ele já amou muitas vezes, mas nunca teve a graça de ser correspondido. Mesmo assim, aquela dolorosa realidade não invalidava os seus versos de amor e felicidade, uma vez que não é preciso pisar na lua para se escrever sobre a sua distância e melancolia, pois a maior aventura que há, está em nossa imaginação.

            Certo dia, ele tomou uma decisão corajosa, porém não tardia, e que afetaria sua vida para sempre. Na escola onde trabalhava à noite, inscreveu-se num curso de alfabetização para adultos. Prometeram-lhe que aprenderia a ler e escrever em três semanas. Aprendeu em duas. Ele e as letras tornaram-se amigos logo nos primeiros flertes, foi como se fossem camaradas há muito mais tempo. Horácio se perguntava intrigado, se foi tão fácil aprender a ler e escrever, por que levara tanto tempo na escuridão? Era maravilhoso poder ler e escrever como qualquer pessoa. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois que ele foi apresentado às letras. Era como se ele tivesse vindo ao mundo pela segunda vez.

Entretanto, familiarizar-se com o universo das pessoas cultas causou-lhe um efeito inesperado. Ele não conseguia escrever os seus poemas. Por mais que tentasse, era simplesmente impossível compor as suas rimas diretamente sobre o papel, como fazem a maioria dos poetas. Ele habituara-se àquele método de compor seus versos na memória, talvez isto fosse até coisa de gênio, mas o fato era que lápis e papel não lhe tinha utilidade alguma. Nem mesmo registar no caderno as poesias que já existiam, ele não conseguia.

Havia, entretanto, uma explicação para aquele obstáculo. Cada vez que declamava uma poesia, um novo verso ele adicionava ou substituía por outro mais belo, de forma que os seus poemas estavam em constante transformação, como se estes tivessem vida própria. Embora a sua essência continuasse a mesma, suas palavras e versos se alteravam. Ele até tentou escrevê-los, mas quando lhe vinha à mente o verso que ia ser registrado no papel, este logo se trocava por outro no instante em começava a ser escrito.

Aquela constante transformação fez Horácio perceber que as suas poesias eram entidades livres depois que ele as criava, era como se elas não mais lhe pertencessem. Escrevê-las num papel ou mesmo imprimi-las num livro, era como aprisioná-las, roubar a sua liberdade. Por isso, ele não podia privá-las daquele bem que ao homem era imensurável. Ele decidiu, portanto, que elas continuariam soltas e livres em sua imaginação, ele seria um poeta cujos versos existiriam até quando sua memória pudesse dar-lhe o prazer de recordá-los.

E quanto à sua trágica condição de jamais o seu amor ter sido correspondido, aquela era uma triste realidade com a qual Horácio aprendia a conviver dia após dia e sublimá-la através de seus belos e encantadores poemas. Quem sabe um dia, ele finalmente encontrasse a felicidade plena no amor de uma mulher que o aceitasse como o poeta deformado que era. Como podem perceber este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 08 de abril de 2013.