sábado, 13 de abril de 2013

O Poeta Deformado

Aos 56, Horácio de Mattos era o poeta preferido dos intelectuais boêmios e habitués de bares noturnos, dos aposentados da praça no centro da cidade onde intermináveis partidas de dominó eram travadas, dos entediados passageiros de ônibus, dos passantes apressados de qualquer esquina movimentada, dos apaixonados, dos amantes, onde houvesse público, porque ele era um poeta de rua, declamava seus poemas onde o público estava. Mas para ganhar a vida, tirar o seu sustento, a sua realidade era bem mais dura, pois ele era o faxineiro da noite de uma escola pública.

            Horácio sofria a angústia daquela vida dupla. Afinal, qual homem dos versos, sensível, talentoso, romântico, sonhador seria feliz dependo do trabalho braçal para sobreviver? Mas aquele conflito estava longe de ser tudo. Isto porque, a sua coleção de belos poemas não estava guardada em outro lugar além de sua memória e da qual ele dependia visceralmente para ser poeta. A verdade era que não existia um único registro de suas poesias num caderninho ou simples folha de papel que fosse. Estava tudo mesmo guardado em sua cabeça.

O motivo para o uso daquele sistema de arquivamento rudimentar era simples e ao mesmo tempo trágico: o nosso grande poeta não sabia escrever. Nem ler. O homem que usava a palavra como ferramenta de trabalho era incapaz de reconhecê-la grafada no papel, num letreiro de rua, no ônibus o qual tomava para ir ao trabalho. Muito menos sabia reproduzi-la com lápis sobre a parede. Horácio era analfabeto de pai e de mãe.

A alfabetização é uma das pedras angulares da civilização. Ser analfabeto é ser deformado. E o desprezo que antes era dirigido à aberração física pode, talvez com mais justiça, recair sobre os analfabetos. Não era por menos que Horácio fazia de sua limitação intelectual um segredo do qual se envergonhava.

            Havia outro mistério que tornava a vida de Horácio mais dura ainda. Seus poemas eram verdadeiras odes ao amor e à felicidade. Não era ele o poeta do amor não correspondido, do coração partido, do amor desfeito, da desilusão amorosa. Ao contrário, ele celebrava a realização plena do amor, o encontro da pessoa amada, a felicidade de estar amando e de ser amado. Entretanto, por ironia do destino, nosso Horácio poeta jamais conheceu o amor que ele tanto louvava em seus versos. Nunca experimentou o gosto de beijar os lábios da mulher amada ou andar de mãos dadas em sua companhia ao longo da areia da praia no limiar de um pôr do sol. Jamais houve ninguém contando as horas do dia passarem para ficar juntinho ao seu lado. Ele já amou muitas vezes, mas nunca teve a graça de ser correspondido. Mesmo assim, aquela dolorosa realidade não invalidava os seus versos de amor e felicidade, uma vez que não é preciso pisar na lua para se escrever sobre a sua distância e melancolia, pois a maior aventura que há, está em nossa imaginação.

            Certo dia, ele tomou uma decisão corajosa, porém não tardia, e que afetaria sua vida para sempre. Na escola onde trabalhava à noite, inscreveu-se num curso de alfabetização para adultos. Prometeram-lhe que aprenderia a ler e escrever em três semanas. Aprendeu em duas. Ele e as letras tornaram-se amigos logo nos primeiros flertes, foi como se fossem camaradas há muito mais tempo. Horácio se perguntava intrigado, se foi tão fácil aprender a ler e escrever, por que levara tanto tempo na escuridão? Era maravilhoso poder ler e escrever como qualquer pessoa. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois que ele foi apresentado às letras. Era como se ele tivesse vindo ao mundo pela segunda vez.

Entretanto, familiarizar-se com o universo das pessoas cultas causou-lhe um efeito inesperado. Ele não conseguia escrever os seus poemas. Por mais que tentasse, era simplesmente impossível compor as suas rimas diretamente sobre o papel, como fazem a maioria dos poetas. Ele habituara-se àquele método de compor seus versos na memória, talvez isto fosse até coisa de gênio, mas o fato era que lápis e papel não lhe tinha utilidade alguma. Nem mesmo registar no caderno as poesias que já existiam, ele não conseguia.

Havia, entretanto, uma explicação para aquele obstáculo. Cada vez que declamava uma poesia, um novo verso ele adicionava ou substituía por outro mais belo, de forma que os seus poemas estavam em constante transformação, como se estes tivessem vida própria. Embora a sua essência continuasse a mesma, suas palavras e versos se alteravam. Ele até tentou escrevê-los, mas quando lhe vinha à mente o verso que ia ser registrado no papel, este logo se trocava por outro no instante em começava a ser escrito.

Aquela constante transformação fez Horácio perceber que as suas poesias eram entidades livres depois que ele as criava, era como se elas não mais lhe pertencessem. Escrevê-las num papel ou mesmo imprimi-las num livro, era como aprisioná-las, roubar a sua liberdade. Por isso, ele não podia privá-las daquele bem que ao homem era imensurável. Ele decidiu, portanto, que elas continuariam soltas e livres em sua imaginação, ele seria um poeta cujos versos existiriam até quando sua memória pudesse dar-lhe o prazer de recordá-los.

E quanto à sua trágica condição de jamais o seu amor ter sido correspondido, aquela era uma triste realidade com a qual Horácio aprendia a conviver dia após dia e sublimá-la através de seus belos e encantadores poemas. Quem sabe um dia, ele finalmente encontrasse a felicidade plena no amor de uma mulher que o aceitasse como o poeta deformado que era. Como podem perceber este não é nenhum conto de fadas.

Rio Vermelho, 08 de abril de 2013.
            

8 comentários:

Sarnelli disse...

O conteúdo da sua crônica me absorveu até o final. Parabéns.

Anônimo disse...

Mais uma crônica bonita , triste e doce, caro amigo.... nunca mais te vi, quando?
Marcella

Anônimo disse...

Encantada com este conto. Parabéns!
Eva Fidelis

Ana Martha Falzoni disse...

Que lindo, Cris. E olha que nesse nosso Brasil temos muitos poetas deformados... tomara que o seu, agora reformado, encontre um final feliz. Beijo!

Anônimo disse...

Maravilha de crônica. Uma vez começando a ler, impossível parar !
José Carlos Mororo

Anônimo disse...

Meu amigo escreve para quem tem bom gosto. Eu recomendo!!!
Ana Martha

Anônimo disse...

Excelente!!
Livia

Anônimo disse...

Mais uma crônica "di prima" desse cearense bahiano.
José Mesquita