segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Rainha do Lar

        Rai é a primeira a estar de pé, embora tenha dormido mal na noite passada. Ainda assim, ela coloca na cara um sorriso e vai para cozinha aprontar o café da família enquanto pensa no cardápio do almoço. A rotina de mais um dia começa pela cozinha. Depois vai para a área de serviço onde limpa a sujeira do cachorro e coloca em cada vasilha água e ração. Olha para cima e ao ver o céu azul límpido prometendo mais um belo dia, uma sensação de otimismo invade o seu coração. O que fará para o almoço, pergunta-se angustiada lembrando-se dos pedaços de frango congelados no freezer. Este é apenas um dos seus grandes problemas do seu pequeno mundo.

        Já é quase sete horas e Marquinho ainda não levantou. Ela vai e bate na porta do menino para que não se atrase para a escola. Em poucos instantes, o silêncio da casa é quebrado pela movimentação de seus habitantes preparando-se para repetirem a rotina do dia anterior. Sentam-se à mesa para comer a primeira refeição do dia. Enquanto isto, Rai serve a um e a outro como num restaurante, vai buscar um remédio que alguém deixou no quarto ou o óculos que ficou no gabinete. Alguém quer ovos mexidos ou que esquente o leite. Um lhe pede que coloque café na xícara. As pessoas estão sempre lhe pedindo alguma coisa que não lhes cairia pedaço algum se elas mesmas o fizessem. Ela só terá tempo para tomar sossegada o seu café da manhã depois que todos forem embora.

        Se você alguma vez ouviu a expressão “chupa cana e assobia”, pode imaginar o que é começar a preparar o almoço ao mesmo tempo em que arruma camas, varre o chão, limpa banheiros, coloca a roupa suja na máquina, passeia com o cachorro, tira a poeira dos móveis da sala, prega um botão em uma camisa, água as plantas do jardim, estende a roupa no varal, conversa muito ao telefone, termina de fazer o almoço para servi-lo à família que já está de volta em casa tirando o seu muito improvável sossego.

        E enquanto comem à mesa, não param de chamar seu nome e aí o inferno começa. Alguém pede água gelada, outro quer o remédio. Ela atende a um e ao outro prontamente enquanto escuta fragmentos da conversa. Ela gostaria de dar sua opinião, mas acha melhor não passar por abelhuda, mesmo sendo considerada como membro da família. Depois que todos comem ela recolhe os pratos e traz a sobremesa antes que lhe peçam.

        Serviço para fazer é o que não falta e quando faz, mais aprece. Mas o que lhe deixa magoada é ninguém reconhece o seu trabalho, nunca ninguém repara quando a casa está limpa e arrumada, só observam a poerinha num canto que a vassoura não passou direito ou quando uma manga da camisa não ficou bem passada. Ela escuta com atenção quando alguém vem choramingar nos seus ouvidos os seus problemas, até arrisca a dar conselhos. Mas quem se importa em ouvir os seus?

        Rai trabalha como um animal achando que é quase como um membro da família e ao custo de um salário mínimo por mês.

Rio Vermelho, 20 de setembro de 2015.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Filho Caçula

Por trás do largo sorriso desenhado na boca desdentada, seu Aurelino anuncia o seu produto nos dias mais quentes. Ele, que tem a importante função social de abrandar os rigores do calor, vende picolés para quem dispuser no bolso de alguns trocados. É claro que há aqueles incautos que saem à rua desprovidos do vil-metal, mas nem por isso deixam de ficar sem levar a guloseima, compram-na fiado. Apesar dos setenta e tantos anos, seu Aurelino registra aquelas dívidas na memória que continua afiada como a de um garoto de dezoito anos.

Seu Aurelino orgulha-se de sua profissão e de vender o melhor picolé da cidade que é produzido na vizinha Irecê. O mais gostoso é o de coco, mas têm também de manga, goiaba, umbu, limão e seriguela. Quem prefere sabores mais sofisticados como chocolate, creme holandês ou amendoim, não morre de calor porque tem sempre alguns no fundo do carrinho.  Seus picolés são cremosos e refrescantes, de dar água na boca, perfeitos para abrandar os dias abafados da pequena Lençóis, apesar de que estes são igualmente muito consumidos tanto no verão como no inverno.

Seu Aurelino, que está sempre de bom humor, gosta de empurrar o seu carinho de picolé pelas estreitas e tortuosas ruas da cidade, por seus bairros mais longínquos e de oferecê-los à freguesia que, quando não está com pressa, aproveita para ter com ele um instante de prosa enquanto chupa o picolé. Uma metade do tempo do picoleteiro é gasto com as vendas do gostoso gelado e a outra com colóquios animados. Alguns lhe trazem notícias de longe, outros reclamam da política, uns se queixam da vida, outros reclamam de doenças, alguns preferem falar da vida alheia. Seu Aurelino mais escuta que fala e da boca banguela tem-se a impressão de que esteja sempre sorrindo, embora às vezes o assunto fosse sério.

O vendedor de picolé é o filho caçula que ainda vive com os pais e que já beiram os cem anos de idade. O menino nunca casou ou arrumou companhia, apesar de ter tanta moça boa na cidade. Isto faz com que os pais se preocupem com Aurelino, pois quando morrerem, quem é que vai tomar conta dele?

Seu Aurelino conta à moça branquela de São Paulo, que chupa um picolé enquanto aguarda pelo ônibus sentada na escadaria da rodoviária, que recebeu uma proposta para ir trabalhar em Salvador. Isso foi na semana passada. Ele queria muito aceitar aquele emprego, nunca esteve numa cidade tão grande, mas papai e mamãe não deixaram que ele fosse porque Salvador está uma cidade muito violenta, lamenta.


Rio Vermelho, 4 de setembro de 2015