sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Filho Caçula

Por trás do largo sorriso desenhado na boca desdentada, seu Aurelino anuncia o seu produto nos dias mais quentes. Ele, que tem a importante função social de abrandar os rigores do calor, vende picolés para quem dispuser no bolso de alguns trocados. É claro que há aqueles incautos que saem à rua desprovidos do vil-metal, mas nem por isso deixam de ficar sem levar a guloseima, compram-na fiado. Apesar dos setenta e tantos anos, seu Aurelino registra aquelas dívidas na memória que continua afiada como a de um garoto de dezoito anos.

Seu Aurelino orgulha-se de sua profissão e de vender o melhor picolé da cidade que é produzido na vizinha Irecê. O mais gostoso é o de coco, mas têm também de manga, goiaba, umbu, limão e seriguela. Quem prefere sabores mais sofisticados como chocolate, creme holandês ou amendoim, não morre de calor porque tem sempre alguns no fundo do carrinho.  Seus picolés são cremosos e refrescantes, de dar água na boca, perfeitos para abrandar os dias abafados da pequena Lençóis, apesar de que estes são igualmente muito consumidos tanto no verão como no inverno.

Seu Aurelino, que está sempre de bom humor, gosta de empurrar o seu carinho de picolé pelas estreitas e tortuosas ruas da cidade, por seus bairros mais longínquos e de oferecê-los à freguesia que, quando não está com pressa, aproveita para ter com ele um instante de prosa enquanto chupa o picolé. Uma metade do tempo do picoleteiro é gasto com as vendas do gostoso gelado e a outra com colóquios animados. Alguns lhe trazem notícias de longe, outros reclamam da política, uns se queixam da vida, outros reclamam de doenças, alguns preferem falar da vida alheia. Seu Aurelino mais escuta que fala e da boca banguela tem-se a impressão de que esteja sempre sorrindo, embora às vezes o assunto fosse sério.

O vendedor de picolé é o filho caçula que ainda vive com os pais e que já beiram os cem anos de idade. O menino nunca casou ou arrumou companhia, apesar de ter tanta moça boa na cidade. Isto faz com que os pais se preocupem com Aurelino, pois quando morrerem, quem é que vai tomar conta dele?

Seu Aurelino conta à moça branquela de São Paulo, que chupa um picolé enquanto aguarda pelo ônibus sentada na escadaria da rodoviária, que recebeu uma proposta para ir trabalhar em Salvador. Isso foi na semana passada. Ele queria muito aceitar aquele emprego, nunca esteve numa cidade tão grande, mas papai e mamãe não deixaram que ele fosse porque Salvador está uma cidade muito violenta, lamenta.


Rio Vermelho, 4 de setembro de 2015


2 comentários:

Sarnelli disse...

Uma boa ideia e o assuto é interessante. Melhor ainda o modo como você conta a história. A única coisa que me deixou curiosos e que eu gostaria de ver, é o sorriso do picoleteiro banguela... Valeu !

Anônimo disse...

Muito bom!
Karina Seixas