domingo, 29 de dezembro de 2019

Perdidos na noite

Mais uma vez, fui ao caruru de Santa Bárbara, no bar de Ana – não lembro que nome tem ou se tem nome o estabelecimento. –, na Almirante Barroso. Aquele que tem uma placa à entrada, com a seguinte frase: Traga a carne que o churrasco é de graça. Desta vez havia uma nova placa, presa em frente ao balcão, com uma frase igualmente espirituosa: Aki a tristeza pula de alegria. Já escrevi sobre este caruru em 2017, com o título “Nem tudo está perdido”.

Mas esta história é outra. A própria Ana fez o meu prato, uma pequena gamela de cerâmica popular, comprada na feira de São Joaquim, provavelmente o quiabo, o camarão seco, a castanha de caju, o amendoim torrado, o milho de pipoca, a farinha, a galinha, o dendê e todos os demais ingredientes necessário para produzir essa oferenda gastronômica vieram de lá, porque é de conhecimento geral do baiano que é neste mercado popular onde se compra mais barato.

Depois de comer, por educação, não deixo um grão no prato, não tive fôlego nem para conversar. Eu estava empanzinado, me sentia enorme. Ana me fizera um prato de estivador. Não costumo comer tanto assim, ainda mais de noite, e comida pesada. Se eu fosse para casa dormir, daquele jeito, ia ter um pesadelo. Já basta os que tenho durante o dia, de olhos bem abertos. Então resolvi aproveitar a noite fresca, para dar uma caminhada no calçadão da praia. Dizem que andar faz bem à digestão, estava na hora de verificar a veracidade da informação. Desci a Almirante Barroso e fui dar de cara com o mirante da Paciência. O lugar estava ermo, à exceção de um casal de namorados, alheios ao mundo ao seu redor, que fazia osadia, de pé, escorados num canto. Então segui em direção à quadra de futebol.

A rua estava deserta, e eu só ouvia a maré batendo nas pedras como um chamado do mar. Notei a figura de um homem vindo em minha direção. Eu o reconhecera. Ele já me abordara antes, naquela tarde e em outras ocasiões. Parei por tempo o suficiente para respondê-lo.

— O senhor me dá alguma esmola? – perguntou, com a mesma cantilena de sempre.

— Não trago um tostão comigo – respondi, com a minha cantilena.

— Uma moeda também não tem – insistiu.

— Também não.

— Vinte e cinco centavos?

— Não tenho nada, senhor.

— E cartão?

Balancei a cabeça, em resposta. Me perguntei se ele seria um mendigo que tinha aquelas maquininhas de pagamento e recebia esmolas no cartão de crédito ou débito. Sinal dos tempos. Quem não se moderniza fica para trás.

Segui meu caminho. Eu ia sem pressa. Estava sozinho, mas jamais me sinto solitário em minha companhia. Vez por outra, sentava na balaustrada, para curtir a brisa da noite e ver o tempo passar. Nesse ritmo, cheguei na praça ao lado da Igreja de Santana, onde uma turma costuma brincar de skate, fumar maconha, pichar o que foi repintado e depredar bancos e lixeiras ao fazer manobras de skate sobre eles. Já gostei de sentar ali. Hoje não sento mais, até porque, dos cinco bancos que existiam, só sobrou um, que não tem mais assento. Ali, sou abordado mais uma vez pelo mesmo pedinte, repetindo o mesmo roteiro de perguntas: Esmola? Moeda? Vinte e cinco centavos. Cartão? Ele é um homem baixo e de compleição física forte. Anda depressa, e não se veste com trapos, igual aos mendigos que vejo por aqui, e também não é maluco como os outros. Esqueço dele e vou até a Mariquita.

A Mariquita é mais animada. Um bar ao lado do outro, as mesas ficam ao ar livre, cada um tocando a sua própria música ao vivo. Um deles tem uma banda de samba, outro toca MPB. O cliente tem o prazer de ouvir até cinco músicas diferentes ao mesmo tempo. Aquela fartura musical me deixa irritado. No grande pátio central, afastado dos bares, crianças brincam de bicicleta e patins. Um pai acompanha, atento, a filha dar os primeiros passos cambaleantes. Eu sento num dos bancos, ao lado de um casal de namorados. O sujeito é muito gordo e não resiste quando a vendedora de empadas passa. Compra duas para ele e uma para a namorada e logo enfia uma na boca com uma expressão de satisfação.

Olho para o relógio e já são quase onze da noite. Por hoje chega. Me levanto, decidido a ir para casa. Se for verdade o que dizem, a caminhada deve ter ajudado na digestão do caruru, andei uns três quilômetros. Atravesso o Largo da Mariquita e, na Praça Colombo, atravesso o semáforo. Na Pedro Luiz ouço uma voz logo atrás de mim: Esmola? Moeda? Vinte e cinco centavos? Cartão? Já era a terceira vez aquela noite, talvez a quarta no dia. Que sorte que eu tenho.

— O senhor gosta muito de andar, não é? – perguntou. Então ele me reconhecera, conclui.

— É bom usar as pernas, enquanto ainda funcionam – respondi sem olhar para trás.

— Mas uma esmola o senhor não tem, nem uma moeda.

— Isso mesmo. Não carrego dinheiro.

— Vai para casa?

— Sim, já esta na hora.

— O senhor mora onde?

— Moro por aqui. Boa noite. – Me despedi.

Em tributo às minhas raízes cearenses, eu ia dormir na rede, como sempre. E não me surpreenderia que em meu sonho o pedinte aparecesse. Uma esmola, moeda, vinte cinco centavos ou em cartão. Talvez este já fosse o pesadelo.


Rio Vermelho, 20 de dezembro de 2019.

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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A Velha e o anzol

Eu nunca tinha visto uma pescadora antes, muito menos uma que não recorresse à ajuda de uma vara, para fisgar incautos peixes nas águas mornas do mar do Rio Vermelho. Pescadores é o que não falta por aqui, têm aqueles de profissão, cuja pele curtida no sol e no sal lhe conferem a aparência de matusalém. E tem aqueles de ocasião, como o motorista de taxi que passa na praia de Santana e, ao ver a aglomeração de pescadores eufóricos, espalhados nas pedras da praia, tentando dar conta dos cardumes de xaréu, bonito, guaricema, dourado, sororoca, só para citar alguns, encosta o carro, tira da mala a vara e dá por encerrado o expediente do dia. Parece licença poética, mas é verdade que as marés de lua cheia trazem fartura de peixe para as águas do Rio Vermelho.

De peixe não entendo muita coisa, só sei degustá-lo, na forma moqueca, ensopado ou ao forno. Frito, também, mas não é do meu agrado. A presença de pescadores nas praias do Rio Vermelho é algo que faz parte de sua paisagem cotidiana, tal é a fartura de peixe que abunda nessas águas, desde antes da época do Descobrimento. Esse fato do nosso dia a dia não teria me chamado tanto a minha atenção, se eu não tivesse sido surpreendido pela visão de uma velhinha jogando o anzol, de pé, sobre as pedras da praia de Paciência. Para que o leitor tome conhecimento, há duas formas de se pescar com o anzol. A mais conhecida é com o uso de um anzol amarrado a uma linha de nylon que é presa a uma vara. Logo próximo ao anzol, um pedaço de chumbo ajuda a isca a cair longe e a sumir nas profundezas. A outra é um anzol preso ao nylon, sem vara, mas com a chumbada. É preciso força nos braços e conhecimento técnico para pescar desse jeito. Pois a velhinha de aparência frágil, passos incertos próprios das velhinhas, com os cabelos presos num cocó, em um vestido estampado de avozinha, arriscava-se sobre as pedras acidentadas, jogando o anzol, sob o sol abrasador de dez horas de dezembro. Ao seu lado, sobre a pedra, repousava um grande balde branco, de plástico, no qual ela esperava levar para casa o fruto de sua pescaria.

Ao presenciar aquela aventura, meu coração sentiu um aperto. Mas que coisa perigosa, transitar sobre aquelas pedras. E é preciso força para lançar o anzol sem a ajuda de uma vara, e força era o que faltava à minha heroína.  Ela jogava o anzol, mas este não ia muito longe. Fiquei assistindo aquela cena, imaginando uma forma de ajudá-la, e a única ideia que me passou foi ir até o mercado do peixe e comprar alguns quilos para presenteá-la. Mas eu, em meu gesto de bom samaritano, corria o risco de ofender o orgulho da velha, que julgava-se perfeitamente capaz de cumprir aquela tarefa. Sem poder consertar o mundo, fui me dedicar ao motivo de ter ido à praia naquela manhã. Deixei minhas coisas na areia e caí na água feito um peixe.

A água estava límpida e tépida, e o pouco vento não formava ondas. A praia parecia uma piscina de água salgada e piso de areia. De onde eu estava, dava para ver a velha que pescava. Agora era tinha um aliado, um rapaz muito magro e o dobro de sua altura. Ele emprestara à velha a sua vara. De longe, parecia uma tosca vara de bambu, mas era melhor do que pescar sem nenhuma. Fiquei imaginando se ela conseguiria pescar alguma coisa. Tão próximo assim das pedras só dava peixes miúdos que mal faziam uma farofa. Continuei na água, me esbaldando com a delicia que estava, até esqueci da velha. Só vou à praia para ficar na água e só saio de lá para ir embora. Não deito na areia, para tomar banho de sol. Prefiro banho de água. Ou fico bebendo cerveja e comendo petiscos. Eu gosto mesmo é de ficar na água, ainda que não saiba nadar.

Agora havia um segundo homem ao lado da velha. Não tinha pinta de pescador, parecia mais um chato. Usava um bermudão florido e a brancura de sua pele denunciava a sua condição de turista. Ele conversava com a velha, parecia que lhe dava conselhos de como pescar, como se ela precisasse. Depois tomava seu caminho pelas pedras e voltava para a areia, onde a esposa o aguardava debaixo do vistoso sombreiro. Não demorava muito, e lá estava ele ao lado da velha, novamente, bisbilhotando. Ele dividia seu tempo entre a esposa, na areia, e a velha, nas pedras.

Quando achei que já estava na hora de ir embora. Saí da água e peguei minhas roupas dobradas na areia. Ao passar pelo turista, que agora estava debaixo do sombreiro ao lado da esposa, pedi licença e me aproximei.

— Será que a velha consegue pegar alguma coisa? – perguntei apontando para as pedras.
— Ôxi, o balde já está quase cheio!
Bendita, seja a velha. Quem não entende nada de pescaria sou eu.


Rio Vermelho, 11 de dezembro de 2019.

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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O dois de fevereiro é dia de Iemanjá!

Ontem foi a Festa de Iemanjá, aqui no Rio Vermelho, e sobre isto surgiu uma polêmica – bem, talvez não uma polêmica, mas um abuso – quanto ao nome da tradicional festa que remonta ao início do século XX. Imaginem que a prefeitura fez o impensável, mudou o nome da festa para Festa do 2 de Fevereiro. Como se a homenagem a Iemanjá, divindade do candomblé, único motivo da festa, tivesse sua existência e importância minimizada. Isto equivale a passar a chamar o Natal de Festa do 25 de Dezembro, Nossa Aparecida de Festa do 12 de Outubro, de São João de Festa do 24 de Junho, deu para perceber? Só Deus sabe quanta sapiência precisou a prefeitura para agir desta forma. Assim mandou produzir e afixar em postes do bairro, material impresso promocional da sua Festa do 2 de Fevereiro, ilustrado com um barquinho cheio de flores e sem a imagem de Iemanjá. Mas, a pesar disso, a multidão que veio ao Rio Vermelho trazer sua oferenda para Iemanjá, ignorou a intenção da prefeitura pois para ela, o dois de fevereiro é dia de Iemanjá!

Na manhã seguinte, um garoto forte e de pele curtida pelo sol mergulhava nas piscinas que se formam nas rochas próximas à Pedra dos Pássaros, onde eu costumo me banhar cedo, quando a maré está baixa. Ele tinha na mão um saco grande, feito com uma fina rede de fibra sintética. Perguntei a ele se estava catando pinaúnas, e ele respondeu que não. E, desapontado acrescentou: “Iemanjá aceitou todos os presentes. Ano passado achei um anel de ouro que ela devolveu e cinco notas de cinquenta Reais.” Aí ele mergulhou novamente, à procura de algum presente que Iemanjá não quisesse.

Na areia da praia da Paciência, onde fui em seguida, um gari limpava a praia com a ajuda de um ancinho e de um saco de lixo. Entre frutas e flores que foram recusadas pela Rainha do Mar e que ele recolhia no saco do lixo – havia também copos descartáveis, garrafas de plásticos e outros refugos, produto gente sem consciência – ele encontrou uma garrafa de perfume. Estava fechada com tampa. Ele abriu o frasco e cheirou sua fragrância com uma expressão de prazer e de alegria infantil. Pôs a tampa de volta e colocou o frasco no bolso da calça. Se Iemanjá não quis, com certeza, a patroa em casa ia ficar feliz em ganhá-lo!

Rio Vermelho, 3 de fevereiro de 2019.


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terça-feira, 1 de janeiro de 2019

A beleza está nos olhos de quem vê

Na escola, era chamado de Sapo, pelos colegas. Mas isso foi há muito tempo há trás, no tempo que a palavra bulling ainda não tinha sido inventada e todo mundo tinha um apelido sem que isto virasse caso de polícia ou de tratamento psicológico. O Gordo geralmente era um garoto mirrado, Jacaré era porque tinha a boca grande e quando sorria todos os dentes se mostravam, Cabeção tinha a cabeça grande mesmo, e por ai vai. No caso do nosso ilustre personagem, não havia como olhar para ele e não associá-lo ao anuro. Quase não tinha pescoço, a boca estendia-se de uma orelha a outra, que eram muito miúdas. Os olhos eram esbugalhados em razão de uma deficiência glandular. As pernas e os braços eram finos e compridos demais, presos a um tronco curto demais e que carregava uma barriga saliente que era redonda e dura. Costumava usar camisas justas, e isso só piorava as coisas, pois a barriga parecia que aumentava de tamanho. Em resumo, era irremediavelmente feio como um sapo.

Mas o apelido de Sapo ficou no passado, agora ele era o doutor Sapo, quero dizer, doutor Feliciano Pastori, um famoso cirurgião plástico, responsável pela criação de centenas de narizes arrebitados, bocas carnudas, seios duros e arredondados, nádegas proeminentes – para aquelas que se queixavam de não as possuírem em quantidade suficiente antes da intervenção cirúrgica – e rostos de pele esticada como o tamborim. Era irônico que o gênio responsável pela criação de tanta beleza fosse justamente o oposto de suas criações cirúrgicas. Não havia jeito, mesmo usando roupas e sapatos de grife, relógios caros, continuava a se distinguir dos demais homens por sua feiura. – veja bem, sapos não são criaturas de aparência abominável como o escritor aqui provoca o leitor a imaginar. Eles são até criaturas simpáticas, apesar de suas características pouco estéticas. A ideia aqui é reforçar na imaginação do leitor a imagem de algo que foge aos padrões de beleza. Peço humildemente desculpas, se ofendei algum sapo aí, lendo a minha história.

E você acha que o doutor Pastori se incomodava com a ausência de predicados físicos com a qual viera ao mundo? Seu couro não cabia a sua autoconfiança e autoestima. Ele sempre foi um sujeito simpático e galanteador, ainda que fosse difícil uma mulher deixar-se seduzir apenas pelos atributos de sua personalidade, porque era difícil de encarar o resto, o homem era feio e ponto final.

Mas, como diz o batido ditado, a beleza está nos olhos de quem a vê. E foram os olhos de uma bela mulher – muito bonita mesmo, posso lhes garantir – que viu beleza no feio doutor Feliciano; talvez ela achasse que se lhe desse um beijo, ele se transformaria num belo príncipe, como nos contos de fadas, mas se isto realmente aconteceu, foi apenas em sua romântica imaginação.  Apesar das críticas das amigas, ela casou-se com ele e teve filhos que, graças a deus, pareciam-se com a mãe!

O doutor Feliciano, como eu disse antes, era um sujeito simpático e carismático – não tinha mencionado que ele também era carismático? Eu esqueci, ando meio esquecido ultimamente. –, isto lhe rendia amigos. Ele tinha uma conversa boa e, diferente da maioria dos médicos que eu conheço, sabia falar sobre outros assuntos que não apenas sobre a sua profissão. Ele animava uma roda de conversa quando fazia parte de uma.

Certa vez foi participar de um congresso internacional aqui mesmo na capital baiana. Este tipo de evento também tem a vantagem de proporcionar o reencontro de amigos da mesma profissão que, por uma questão de distância, raramente se encontram. E foi isso mesmo que aconteceu. O doutor Feliciano teve a alegria de reencontrar uma colega de escola que não via desde aquelas priscas eras e, por motivos óbvios, foi ela quem o reconheceu.

Você não mudou nada, disse ela pensando em como o amigo de infância continuava a parecer-se com um sapo. Ela também seguira a mesma carreira do doutor Feliciano; felizmente há tanta gente no mundo insatisfeita com o próprio corpo, de modo que não faltam cirurgiões plásticos para socorrê-los. O reencontro dos dois amigos foi cheio de alegria e de recordações. Havia assunto para horas seguidas de conversa. Dava para se perceber que os dois eram muito camaradas nos tempos de escola. E quando a doutora Juliana – não tinha dito como ela se chamava? Pois digo agora! –, que morava na Islândia – sempre quis conhecer este nórdico país e, enquanto isto não acontece, me satisfaço em enviar meus personagens para lá. – convidou o querido amigo de infância para jantarem juntos antes de ela partir de volta para a terra do Eyjafjallajökull, ele mostrou-se embaraçado e adiantou-se em explicar: Tenho de perguntar à minha esposa, sabe como é, ela morre de ciúmes de mim. A doutora Juliana ouviu aquela resposta sem conseguir conter a expressão de admiração, ao mesmo tempo que analisava o amigo e se perguntava: mas ciúmes de quê?

E, com esta, desejo um feliz 2019 a todos!

Rio Vermelho, 1 de janeiro de 2019.

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