Mais uma vez, fui ao caruru de Santa Bárbara, no bar
de Ana – não lembro que nome tem ou se tem nome o estabelecimento. –, na Almirante
Barroso. Aquele que tem uma placa à entrada, com a seguinte frase: Traga a
carne que o churrasco é de graça. Desta vez havia uma nova placa, presa em
frente ao balcão, com uma frase igualmente espirituosa: Aki a tristeza pula de
alegria. Já escrevi sobre este caruru em 2017, com o título “Nem tudo está
perdido”.
Mas esta história é outra. A própria Ana fez o meu
prato, uma pequena gamela de cerâmica popular, comprada na feira de São
Joaquim, provavelmente o quiabo, o camarão seco, a castanha de caju, o amendoim
torrado, o milho de pipoca, a farinha, a galinha, o dendê e todos os demais
ingredientes necessário para produzir essa oferenda gastronômica vieram de lá,
porque é de conhecimento geral do baiano que é neste mercado popular onde se
compra mais barato.
Depois de comer, por educação, não deixo um grão no
prato, não tive fôlego nem para conversar. Eu estava empanzinado, me sentia enorme.
Ana me fizera um prato de estivador. Não costumo comer tanto assim, ainda mais
de noite, e comida pesada. Se eu fosse para casa dormir, daquele jeito, ia ter
um pesadelo. Já basta os que tenho durante o dia, de olhos bem abertos. Então resolvi
aproveitar a noite fresca, para dar uma caminhada no calçadão da praia. Dizem
que andar faz bem à digestão, estava na hora de verificar a veracidade da
informação. Desci a Almirante Barroso e fui dar de cara com o mirante da Paciência.
O lugar estava ermo, à exceção de um casal de namorados, alheios ao mundo ao
seu redor, que fazia osadia, de pé,
escorados num canto. Então segui em direção à quadra de futebol.
A rua estava deserta, e eu só ouvia a maré batendo nas
pedras como um chamado do mar. Notei a figura de um homem vindo em minha direção.
Eu o reconhecera. Ele já me abordara antes, naquela tarde e em outras ocasiões.
Parei por tempo o suficiente para respondê-lo.
— O senhor me dá alguma esmola? – perguntou, com a
mesma cantilena de sempre.
— Não trago um tostão comigo – respondi, com a minha
cantilena.
— Uma moeda também não tem – insistiu.
— Também não.
— Vinte e cinco centavos?
— Não tenho nada, senhor.
— E cartão?
Balancei a cabeça, em resposta. Me perguntei se ele
seria um mendigo que tinha aquelas maquininhas de pagamento e recebia esmolas
no cartão de crédito ou débito. Sinal dos tempos. Quem não se moderniza fica
para trás.
Segui meu caminho. Eu ia sem pressa. Estava sozinho,
mas jamais me sinto solitário em minha companhia. Vez por outra, sentava na balaustrada,
para curtir a brisa da noite e ver o tempo passar. Nesse ritmo, cheguei na
praça ao lado da Igreja de Santana, onde uma turma costuma brincar de skate,
fumar maconha, pichar o que foi repintado e depredar bancos e lixeiras ao fazer
manobras de skate sobre eles. Já gostei de sentar ali. Hoje não sento mais, até
porque, dos cinco bancos que existiam, só sobrou um, que não tem mais assento. Ali,
sou abordado mais uma vez pelo mesmo pedinte, repetindo o mesmo roteiro de
perguntas: Esmola? Moeda? Vinte e cinco centavos. Cartão? Ele é um homem baixo
e de compleição física forte. Anda depressa, e não se veste com trapos, igual
aos mendigos que vejo por aqui, e também não é maluco como os outros. Esqueço
dele e vou até a Mariquita.
A Mariquita é mais animada. Um bar ao lado do outro, as
mesas ficam ao ar livre, cada um tocando a sua própria música ao vivo. Um deles
tem uma banda de samba, outro toca MPB. O cliente tem o prazer de ouvir até cinco
músicas diferentes ao mesmo tempo. Aquela fartura musical me deixa irritado. No
grande pátio central, afastado dos bares, crianças brincam de bicicleta e
patins. Um pai acompanha, atento, a filha dar os primeiros passos cambaleantes.
Eu sento num dos bancos, ao lado de um casal de namorados. O sujeito é muito
gordo e não resiste quando a vendedora de empadas passa. Compra duas para ele e
uma para a namorada e logo enfia uma na boca com uma expressão de satisfação.
Olho para o relógio e já são quase onze da noite. Por
hoje chega. Me levanto, decidido a ir para casa. Se for verdade o que dizem, a
caminhada deve ter ajudado na digestão do caruru, andei uns três quilômetros.
Atravesso o Largo da Mariquita e, na Praça Colombo, atravesso o semáforo. Na
Pedro Luiz ouço uma voz logo atrás de mim: Esmola? Moeda? Vinte e cinco
centavos? Cartão? Já era a terceira vez aquela noite, talvez a quarta no dia. Que
sorte que eu tenho.
— O senhor gosta muito de andar, não é? – perguntou. Então
ele me reconhecera, conclui.
— É bom usar as pernas, enquanto ainda funcionam –
respondi sem olhar para trás.
— Mas uma esmola o senhor não tem, nem uma moeda.
— Isso mesmo. Não carrego dinheiro.
— Vai para casa?
— Sim, já esta na hora.
— O senhor mora onde?
— Moro por aqui. Boa noite. – Me despedi.
Em tributo às minhas raízes cearenses, eu ia dormir na
rede, como sempre. E não me surpreenderia que em meu sonho o pedinte aparecesse.
Uma esmola, moeda, vinte cinco centavos ou em cartão. Talvez este já fosse o
pesadelo.
Rio Vermelho, 20 de dezembro de 2019.
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