Claudionor Paranhos, o Cacau do Alto da Alegria, era do tempo em que o folião amanhecia dormindo num banco de praça no Campo Grande, e não lhe roubavam a carteira enquanto dormia. Não é saudosismo, é só para mostrar como eram as coisas naqueles antigos carnavais.
Há muito Cacau não ia na avenida
ou se ia era apenas para rir dos solitários foliões em suas fantasias engraçadas
e inventivas ou para ver a saída dos pequenos blocos e suas músicas irreverentes,
resquícios de um tempo ingênuo e sem ambições comerciais, quando a
espontaneidade valia mais que o compromisso de se estar alegre durante todo o
tempo no carnaval.
Mas do que ele gostava era do
samba, aí ele batucava o ano inteiro, tocava o velho tamborim, companheiro de
longas datas. Reunia-se com os camaradas nas tardes de sábado na varanda do bar
do Jajá, e a roda de samba ia pela noite adentro. Mas não era um grande evento
ou um que atraísse uma multidão, além do grupo da batucada e alguns que
acompanhavam a música enquanto sambavam. Apesar de já ter chegado aos oitenta, e
com a saúde que cambaleava, sua voz ainda era firme, e firme, também, era a sua
batida no tamborim.
No sábado de carnaval, a turma
reuniu-se, como de costume, e quem não quis ir para o circuito carnavalesco, fez
a folia ali, no bar do Jajá. Dessa vez o público era bem maior, talvez umas cem
pessoas, porque, afinal, era carnaval. Aquela agitação fez Cacau sentir-se em
plena forma, todos estavam alegres, alguns já tinham bebido tanto que só
acompanhavam o samba sentados.
A noite já ia alta, quando os
efeitos das horas de batuque fez-se sentir no velho corpo de Cacau. Foi quando
ele anunciou:
― Esta é a última!
Mas alguém lá no fundo do bar gritou:
― Nunca diga que é a última, que
dá azar. Diga que é a penúltima.
Cacau bateu com a cabeça em
concordância e respondeu com um sorriso cansado, embora não acreditasse em superstições.
Em seguida começou a entoar um de seus sambas favoritos, sempre guardados para encerrar
a sua participação na batucada. Ele puxou a cantoria e todos juntaram-se a ele.
“Sei que vou morrer, não sei o
dia
Levarei saudades de Maria
Sei que vou morrer, não sei a
hora
Levarei saudades de Aurora
Eu quero morrer numa batucada de
samba
Na cadência bonita do samba...”*
No segundo refrão, o tamborim parou. A música continuou, mas sem a voz grave e cansada de Cacau. Alguém que percebeu, perguntou em voz alta:
― Por que parou? ‒ E lançou o olhar para
Cacau viu que ele estava calado, o pandeiro, silencioso, pousava sobre seu colo,
a cabeça pendia levemente para frente e para o lado. O samba calou.
Aquele foi o último batuque de
samba de Claudionor, seu coração parou de bater como as pancadas no velho
tamborim, os dois silenciaram-se para sempre. Mas, para quem acredita em outra
vida depois dessa, Cacau foi tamborilar em outras paragens.
Rio Vermelho, 02 de
março de 2023.
*Na Cadência do Samba, de Ataulfo Alves