segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O barulho mora aqui ao lado.

Em tempos em que consideração e respeito ao próximo não são mais valores apreendidos em casa, as novas gerações agem como se o mundo fosse uma temível selva na qual, cada indivíduo deve comportar-se como um ser individualista e destituído de qualquer espírito comunitário e solidário. É a lei do cada um por si. Tenho experimentado na pele esta triste realidade.

Esta semana recebi uma carta um tanto intimidadora de um estabelecimento barulhento aqui ao lado de casa. Em resumo, a tal carta avisava que eles não vão mais tolerar que eu vá até lá reclamar do barulho que eles fazem. Eles sentiram-se incomodados com minhas repetidas reclamações de que o barulho deles incomoda à mim, à minha família e a outros visinhos, alguns, pessoas idosas, residentes aqui há mais de 40 anos. Sentiram-se ofendidos, pois, em sua compreensão, seu alvará lhes dá total permissão para fazer de nossa vida um inferno e, por isso, devemos aturá-los a todo custo. Bonito, não? Mas como este é o país dos absurdos, junte-se este a todos os outros.

Meus contínuos apelos ao proprietário do estabelecimento, um jovem e inexperiente empresário, considera-se um ambientalista, vejam só, para que o barulho fosse eliminado, uma vez que seu empreendimento foi instalado numa área residencial, nunca foram atendidos. Ao contrário, a cada vez que pisava os pés por lá para fazer minhas queixas, ele me olhava com expressão e sorriso de desdém. Eu teria de aprender a conviver com a sua presença, ele informava. Barulho em área residencial não é o tipo de poluição que todo ambientalista deveria reprovar? Nem os apelos pela minha mãe idosa e doente fizeram diferença alguma. Afinal, quem está sofrendo é a mãe dos outros e não a dele.

Até há poucos tempo atrás, o estabelecimento se apresentava como um empreendimento ambiental, preocupado com a qualidade de vida em nosso planeta. Bem pomposo, não? Talvez eu entendera errado, a qualidade de vida a que ele se referia era, na verdade, a de seu proprietário, o ambientalista de carteirinha, e não um bem comum para todos. Coisa chata. Eu também me preocupo com o meio ambiente, com a qualidade de vida do ser humano como parte deste ambiente, sobretudo. Sou um humanista. Mas, como muitas vezes acontece com as grandes idéias, infelizmente, a vaca foi pro brejo. O tal papo ambiental do jovem e arrogante empresário não emplacou, ninguém comprou sua idéia. Para não ficar no prejuízo, o consciente ambientalista empresário, transformou o local em casa de shows e espetáculos. Rebatizou aquilo de espaço cultural. Engraçado, né? Eufemismo é uma ferramenta poderosa no mundo dos negócios. Fazem as coisas parecerem melhores do que elas realmente o são. O veterinário não praticou eutanásia em meu saudoso velho cão doente, apenas o colocou para dormir placidamente com uma injeção. Se como empreendimento ambiental este lugar ao lado de minha casa já incomodava, você pode imaginar o que aconteceu ao ser elevado à categoria de espaço cultural. Não há nada de errado em pessoas tentar ganhar a vida de algum modo, desde que o seu negócio não seja um estorvo para outros. É aquela velha frase que nos chama ao bom senso, a qual eu já ouvia nos tempos do Tereza de Lisieux, "o direito de um, termina onde começa o do outro", seja lá o que isto queira dizer.

Este episódio me fez lembrar que não muito longe aqui de casa, precisamente na rua Jequié, funciona há anos, de modo discreto e despercebido, um bordel. Isso mesmo, um brega, ou casa de massagem, como se costuma dizer hoje em dia. É aquela estória do eufemismo que eu lhes contei há pouco. Um puteiro aqui perto? Eu nunca soube disso até recentemente, apesar de sempre ter passado em frente à tal casa sem nunca perceber nada de extraordinário ali. Mesmo depois de tomar conhecimento, e de tentar observar com um olhar mais crítico a sua movimentação, quando por lá passava ocasionalmente, não percebi nada de incomum. Contudo, coletando informações aqui e ali, na inocente intenção de, futuramente, escrever uma bela crônica a respeito, soube que as "meninas" que lá exercem o seu talento, são as de melhor qualidade que há, inclusive sendo algumas de nível universitário, como em Cuba! A clientela, também, não poderia ser outra senão uma de fino trato, homens do mais alto gabarito, inclusive alguns ilibados pais de família. Tudo nos conforme.

    Pois bem, a ilustre casa de massagem coabita o mesmo logradouro que respeitáveis famílias de classe média e professoras aposentadas, ali existem duas, sem que uma incomode a outra. Convivem pacificamente. Nenhuma das famílias jamais se queixou da inusitada vizinha, até porque, muitas das práticas que ali dentro daquele estabelecimento tomam acontecimento, se perpetuam, da mesma forma, na intimidade do quarto do pai e da mãe, sem que, no entanto, haja troca de prazer por dinheiro, embora muitas esposas sonhem algum dia, serem compensadas por executar tal obrigação matrimonial. A mim também não incomoda que ali funcione uma casa do pecado. Já tive até um vizinho político, por que então, me ofenderia se prostitutas morassem aqui ao lado? O Rio Vermelho tem de tudo, mesmo.

    Fico imaginando como a empresária proprietária da casa de massagem registraria o seu negócio, caso fosse obrigada pela Receita a pagar o imposto por seus serviços prestados. Centro Recreativo e Terapêutico Tia Simara Ltda. Ou Instituto Para o Estudo de Práticas Interpessoais S.A. E por que não, Espaço Cultural e de Lazer Sobrinhas da Tia Simara?

Rio Vermelho, 27 de setembro de 2009.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O jardim dos Amados.

Outro dia, fiz para o almoço uma de minhas especialidades culinárias. Um suculento sanduiche de pão integral assado em meu forno, presunto com queijo, tomate e alface americana, aquela que parece um repolho e suas folhas são crocantes como o beijú. Não uso presunto de verdade, e sim aquilo que o fabricante orgulhosamente chama de "presunto de peito de peru light". Ele anuncia aos quatro cantos que é saudável, e eu faço as pazes com a minha consciência pois, estou finalmente cuidando de minha saúde. Depois de montar minha criação gastronomica, coloquei-a num prato sobre a janela que dá para o jardim, enquanto fui até a cozinha procurar por alguma bebida que combinasse com a iguaria. Ao voltar com o copo cheio de chá gelado, o sanduiche não estava mais lá. Simplesmente havia sumido como por um encanto. Só deixaram o prato e nada mais. Como só havia eu em casa, aquele súbito desaparecimento tomora o contorno de um caso de mistério. Eu poderia jurar a mim mesmo que eu havia feito um sanduiche e o colocado por alguns minutos sobre a janela. Dei a volta pela porta da sala até o jardim para ter uma melhor perspectiva daquele intrigante mistério e, quem sabe até, desvendá-lo. Não tive trabalho para matar a charada. Por um galho do nosso mirrado pé de pinha, um sagüi fugia levando o meu almoço!

Tornou-se comum, nos últimos tempos, o aparecimento desses macaquinhos cinza rajado pelas vizinhanças do bairro em busca de alimento. Felizmente são eles, e não aqueles ursos pretos que invadem os quintais das casas nos subúrbios americanos, atrás de comida. A tia de um amigo, moradora das vizinhanças, se queixou que um cacho de bananas sumira de sua varanda. Bananas sempre estiveram associadas à macacos, mas nunca ouvi falar que eles também apreciassem sanduiche de presunto de peito de peru light.

Soa até simpático se falar de macaquinhos que nos visitam pela janela e roubam a nossa comida. A estória ganha contornos de uma fábula bucólica que acontece em plena zona urbana. Mas a verdade para isto estar acontecendo não tem nada de encantamento. É que puseram abaixo a moradia destes bichinhos e, em seu lugar, ergueram-se arranha-céus de luxo e gosto duvidoso. Sem lugar para morar e encontrar comida, eles aparecem aos bandos às nossas janelas roubando os nossos suculentos sanduiches de peito de peru light e cachos de bananas maduros comprados na barraca do crente alí no canal. Desde que a especulação imobiliária arrasou com o Horto Florestal e adjacências, os animais que tinham lá a sua moradia desde os tempos da Criação, passaram a procurar refúgio do lado de cá, invadindo o nosso espaço. Além dos delicados sagüis, tem aparecido por aqui jandaias, pica-paus e outros bichinhos do mato.

Não tenho nada contra animais deste tipo, e até preso a sua presença. Mas acho que eles devam habitar o seu lugar natural que é o meio do mato. Enfim, cada macaco em seu galho. É lá que eles estão mais seguros e aonde eles pertencem. Acho que se eu fosse morar no mato eu seria considerado um intruso e, com certeza, não me sairia tão bem lá como aqui no meio do concreto e dos automóveis. Não deixei de ficar me perguntando onde eles estariam se refugiando agora que o Horto e adjacências haviam sido invadidos pelas construtoras. Eles vêem até as nossas casas, pegam comida e depois vão para onde? Não tornei disto outro caso de mistério, como o desaparecimento do meu almoço mas fiquei com a puga atrás da orelha.

Foi outro dia ao visitar Pedrão, amigo de infância desde os tempos de escola, que tive a minha curiosidade plenamente satisfeita. Morador de sempre da rua Alagoinhas, teve sorte de ser vizinho do querido Jorge Amado. Era um final de tarde e ficamos na varanda de sua casa jogando conversa fora e tomando uma limada gelada. O sol já tinha desaparecido por detrás das casas e quando finalmente mergulhasse no oceano, deixaria tudo às escuras. Mas ainda era dia. Enquanto conversávamos, notei uma movimentação de sangüis andando pelos fios da rede elética como esquilibristas da morte se achegando para aquelas bandas.

- A esta hora eles vão todos para o jardim de Jorge Amado. – disse Pedro satisfazendo a minha curiosidade. – Os pica-paus, jandaias e outros pássaros também passam lá a noite.

Para quem nunca teve a satisfação de um dia entrar na casa de Jorge Amado, sua melhor descrição possível são as palavras conforto e simplicidade. Nada de luxo para quem já varreu o mundo afora e conheceu palácios suntuosos. A decoração da casa é despojada e não obedece nenhuma lógica estética dos profissionais da arte de arrumar os móveis. É composta de objetos de cultura popular de todas as partes do mundo e obras de arte presentedas por queridos amigos artistas. O telhado da casa é de telha-vã como só se vêem nas casas de fazenda antigas ou habitações simples do interior. Mas o que mais impressiona é o seu jardim, enorme. O jardim dos Amados é uma pequena reserva ecológica nas vizinhanças, com árvores de tudo quanto é tipo. Parece uma mata virgem e selvagem. Isto porque, Jorge sempre se opôs à podação de suas árvores, preferia deixá-las crecer e se expandir conformes os mandos da natureza. Não é à toa que seu jardim mais pareça uma porção da mata de onde os macaquinhos foram expulsos pelas construtoras, razão pela qual eles são atraídos para lá feito formigas em açucareiro. É neste jardim também onde as cinzas de Jorge e Zélia foram depositas, à sombra da velha mangueira onde costumavam namorar sentados de mãos dadas sobre um banco de alvenaria. Jorge Amado gostava de bichinhos, por isso, acho que não é mera concidencia que eles sejam atraídos pela hospitalidade que sempre foi uma caracteristica do número 33 da rua Alagoinhas.

Rio Vermelho, 15 de setembro de 2009.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Conheça meu outro blog

SnapShots

Estórias para quem tem pouco tempo.

Click no link abaixo.

http://cristiano-snapshots.blogspot.com/

Valeu!

Relíquia.

Outro dia acordei disposto. Iria matar alguém. Não no sentido literal, fique claro. Lavei o rosto com sabão barato depois de me escovar. Ao pegar meus óculos, gentilmente com a ponta dos dedos, sobre a bancada da pia, o dito cujo se partiu ao meio. Naquele instante, o meu mundo, onde nada de extraordinário acontece, sofreu um pequeno abalo sísmico. Sou tão dependente de óculos, apesar de enxergar razoavelmente bem sem eles, que a idéia de passar um único dia sem eles me assustou. Tive o mesmo pânico que um astronauta fumante inveterado, voando na Columbia, teve ao descobrir que se esquecera de levar um pacote de cigarros para o fim de semana! É que tenho a natureza um tanto perfeccionista, e sem óculos, não consigo ver o mundo tão perfeito em toda a sua imperfeição.

    Na noite anterior, eu tinha encontrado uma solução para desatar o nó em que se encontrava a trama do meu livro. Não via a hora de me sentar nesta cadeira para começar a escrever. Iria matar um personagem que se tornara um incomodo. Infelizmente, só na ficção é que é tão simples se livrar de alguém indesejado. Na vida real, é bem mais trabalhoso e arriscado. Meu personagem já tinha cumprido a sua missão, precisava sair de cena. Se ele tivesse um pouco mais de grana, pouparia sua vida, mando-o para uma viagem longa e sem retorno à Europa, como nas novelas. Embora os óculos quebrados fossem os de longe, não precisaria deles para escrever. Porém, não conseguiria pensar mais em outra coisa se não resolvesse aquele perrengue. É que tenho usado óculos quase a vida inteira. Eles caem bem com meu rosto. Acho até que já nasci de óculos, o que deve ter sido muito doloroso para minha pobre e querida mãe. De modo que, tive de rever minhas prioridades. Deixei para cometer o meu crime mais tarde. Fui procurar um par de óculos velho pelos armários da casa. Porém, o único que encontrei me fazia enxergar pior do que estar sem óculos. Como o Dr. Luciano, meu oftalmologista vitalício, só me atenderia na semana seguinte, como fui informado educadamente pela atendente ao telefone, conclui que esperar tanto, estava fora de questão. Peguei o par de óculos velhos e a ultima receita datada de dois anos atrás. O jeito era fazer um arranjo provisório, trocando as lentes da armação velha utilizando a receita antiga. Um par de lentes novas, embora desatualizado, não sairia por mais que um BigMac com fritas, calculei.

    Calcei os meus chinelos e fui até uma das duas óticas aqui do bairro. A vendedora da primeira loja foi muito solicita. Contei-lhe o meu drama e minha urgência. Enfrentaríamos uma crise pior que a do Senado, caso eu não tivesse meus óculos logo, tentei impressioná-la, embora ela parecesse não ter a menor idéia do que eu falava. Feliz de quem é desinformado. Porém, ela tinha o cacoete de vendedora. Quis me empurrar uma armação nova, pois, como me explicou didaticamente, aquela velha que eu levara comigo corria o sério risco de partir ao ser manipulada no laboratório. Resolvi arriscar, afinal, duas armações partidas na mesma semana, seria muito azar! Não se preocupe, prefiro correr o risco, já ouvi a mesma estória antes e nunca nada aconteceu, disse à vendedora. Mas ela estava disposta a impedir que seu patrão ganhasse nem que fosse um único tostão naquela ensolarada manhã. Sua receita já perdeu a validade, insistiu. Nunca ouvi aquilo. Não quis argumentar. Resolvi não perder tempo ali e fui para a outra ótica.

    A outra ótica funcionava mais adiante, numa casa onde outrora morou uma senhora que, em minha infância, despertou a minha imaginação inocente de criança. Eu morava numa rua próxima, na rua do Céu. Um nome tão poético para uma rua, mas que cometeram o desatino de, muitos anos depois, subtrair-lhe a dignidade ao rebatizá-la com o nome de um político. Sabe Deus se este merecia mesmo ir ou não para o céu! Pois bem, a dita senhora era uma mulher de pele branquinha, baixinha e gordinha feito uma bola de algodão. Nos meus primeiros anos de vida, eu nunca tinha visto ninguém assim tão gordo e redondo. Como podia ser. Fiquei fascinado. Todos os dias, pouco antes do almoço, ela passava pela esquina de minha rua em direção de sua casa. Eu corria até a esquina e sentava no batente de uma casa só para assistir aquela figura que parecia ter saído de um livro de estórias infantis passar compenetrada sem nem mesmo perceber que eu existia. Guardo aquela imagem em minha memória até hoje. Atendeu-me o próprio dono dá ótica. Um camarada simpático que usava na cabeça um chapeuzinho de pano que hoje anda muito na moda e que lhe conferia, juntamente com o brinco preso na orelha, ares de cantor de boleros.

    Contei-lhe o meu pequeno drama. Mostrei-lhe o par de óculos quebrado e que, depois de analisá-lo, ele se incumbiu de dar um remendo que o agüentaria tudo junto por alguns dias. Disse-me, fazendo um misterio, que tinha uma cola especial. Não quis saber detalhes, era especial e pronto. Quanto à receita velha, não haveria problemas. Nada como falar com o proprietário. Desde quando receita antiga tinha validade? O ideal seria uma nova em folha, mas estava esta estava fora de questão. Mostrei-lhe os óculos velhos para o qual queria as lentes. Ao recebê-lo em suas mãos, fez uma expressão admirada.

    - Mas que beleza de peça! – exclamou analisando-a.

    Comprei aquela beleza no Rio de Janeiro há mais de quinze anos, no tempo das vacas gordas. Eu procurava pelas lojas de Ipanema, numa ensolarada manhã de sábado, uma armação para por novas lentes. E como não encontrasse nenhuma do meu agrado, já estava me dando por vencido quando vi na vitrine de uma lojinha prestes a fechar, esta armação que se distinguia de todas as outras que encontrei, justamente pelo desenho incomum, que camuflava a feiúra do meu rosto, tornado-o mais palatável. É esta! Exclamei comigo mesmo. Parecia de encomenda. Era muito leve e delicada, imitando a aparência de casco de tartaruga. Entrei na loja e fechei negócio. Era a única peça da loja. Não era à toa que a achei tão especial, custava mais que uma geladeira duplex com viva-voz e conexão com internet em banda larga! O estojo, também, era algo de chamar a atenção. Bonito e sofisticado, parecia que era feito de couro de animal em extinção, tal a sua qualidade. Enfim, um bichinho daqueles iria fazer seu papel na natureza, servindo de estojo para meus novos par de óculos. Acredito até que o valor alto da armação era devido àquele estojo, e que, na verdade, eu estava pagando caro por ele e a armação vinha como brinde!

    - É uma Giorgio Armani – disse surpreso. - O design desta peça é muito bonito. É raro encontrar por aqui algo tão bonito.

    - Não diga. – reagi surpreso.

    - É feita de um material excelente. Vai durar a vida toda. A NASA o utiliza para fazer puxador de gaveta espacial. – acrescentou oculista cantor de boleros.

    - Não diga.

    - Ela está ressequida. Se o senhor me permitir, passarei um produto especial para hidratá-la. Deveria cuidar melhor dela, pois é uma relíquia.

    - Não diga. – respondi tentando imaginar se o fabricante daquele produto especial era o mesmo que fazia a cola.

    - Há muito tempo eu não via nada semelhante.

    - Não diga. E por quanto vai ficar as lentes?

    - Vai lhe custar exatamente o preço de um BigMac com fritas. – anunciou depois de consultar a tabela.

    Um dia depois, recebia um telefonema. Os óculos estavam prontos e me esperando. Larguei o que fazia. Calcei os meus chinelos e rumei correndo até a loja. A armação parecia nova em folha, como se tivesse saído de fábrica.

    - O senhor vai me prometer uma coisa, Sr. Cristiano. – falou o oculista colocando a peça cuidadosamente em minhas mãos     - Vai cuidar muito bem dela. Daqui a seis meses, volte aqui para eu hidratá-la novamente.

    - Pode ter certeza disso. – respondi satisfeito.

    Coloquei-o na cara e voltei para casa, orgulhoso de possuir sobre o nariz uma relíquia do Giorgio Armani, uma vez que sair por aí pelo Rio Vermelho de chinelos e vestindo um de seus famosos paletós, estava fora de questão. Eu já estava pronto para voltar ao meu trabalho e eliminar com estilo o personagem de minha estória.

Rio Vermelho, 18 de julho de 2009.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Conheça meu outro blog

SnapShots

Estórias para quem tem pouco tempo.

Click no link abaixo.

http://cristiano-snapshots.blogspot.com/

Valeu!


Praia de Santana

‘Summertime’ na Bahia.

Você deve ter percebido a tosca foto acima e deve estar se perguntando quem será aquela mulher com cara de maluca na praia do Rio Vermelho. Esta foto foi tirada uns quarenta anos antes de a câmera digital ter sido inventada, por isso a sua pobre qualidade. Ela é o inegável registro de uma incrível estória vivida pelo meu querido amigo Lula Martins, um grande artista plástico baiano, ex-morador aqui do Rio Vermelho, e que hoje vive na badalada costa da Ilha de Ibiza, no Mediterrâneo. Sujeito do sorriso fácil e franco, cuja aparência física lembra um monge tibetano. Depois de ler minha ultima crônica (Não saio daqui do Rio Vermelho), ele me escreveu saudosista, contando-me o seguinte inesquecível episódio de sua vida.

Era um escaldante verão de 1970. Vivíamos no auge da ditadura militar no Brasil, os Estados Unidos e Vietnã matavam uns aos outros numa sangrenta guerra, havia a guerra fria entre o Ocidente e a União Soviética, os pacifistas gritavam por 'Paz e Amor' e os hippies alegravam as cidades com suas roupas coloridas e propunham uma vida alternativa livre do capitalismo. Também se ouvia muita bossa nova e o rock 'n roll. Lula deveria ter uns vinte e poucos anos, sua casa ficava onde hoje é exatamente a quadra de futebol, ali na praia de Santana, e onde funcionava, também, o seu atelier. O lugar era um casarão antigo mal-tratado pelo tempo, um prédio pitoresco fincado quase na praia, de sorte que a maré ao subir, escorria a água do mar até o chão da sala, trazendo a natureza para dentro de casa. Dizendo assim, parece até poético, mas deveria ser um saco! Naquele memorável verão, Lula, estava organizando com amigos artistas e intelectuais uma viagem de Kombi até o Rio de Janeiro. Formavam um alegre grupo meio hippie. A idéia era recriar a atmosfera de uma versão baiana do Magic-Bus famoso ônibus psicodélico que fazia o incrível percurso de Amsterdã até a Nova Deli. O motivo era ir assistir ao show de uma famosa cantora americana que andava mexendo com a cabeça da juventude daquela época. Seria na Praça Ozório, onde acontece até hoje em dia a feira hippie, todos os domingos.

Pois num certo final de tarde, Lula estava visitando uma amiga, quando recebeu um telefonema pedindo que voltasse para sua casa imediatamente, pois, uma surpresa lhe aguardava. Ora, a casa de Lula funcionava como uma espécie de pouso para os amigos que vinham de tudo quanto era. As chaves até ficavam num esconderijo que todos tinham conhecimento, de modo que eles eram bem-vindos caso Lula não estivesse em casa para recepcioná-los. Ele logo imaginou que se tratava da chegada de um destes amigos, e rumou de volta para a sua casa para recebê-lo. Ao chegar, confirmou que tinha hospedes ao ver as bagagens amontoadas em sua pequena sala. E como eles não se encontravam em nenhum lugar dentro da casa, só poderiam estar na praia, que ficava exatamente nos fundos. Ao chegar na areia, Lula foi arrebatado pela surpresa de ver aquela mulher que mais parecia uma miragem brincando com as ondas, descalça na beira da praia como uma Venus pop surgindo da espuma. Era surreal demais para ser verdade. Agora volte àquela foto e olhe com mais atenção. Isto mesmo, era a Janis Joplin!

A maioria de vocês se não é fã, deve ter ouvido falar pelo menos uma única vez da Janis Joplin, esta rebelde musa do rock. Imagine o estado de admiração que ficou Lula em ter ali em seu quintal a presença de um ídolo musical. Lula ouvia seu ultimo álbum, "ChipTrill", quase que diariamente, apaixonado por aquela voz forte e vibrante. Ela estar ali diante dele era algo equivalente ao Papa bater em sua porta pedindo um copo de água gelada. Ou à visita do Harry Potter em pessoa. Lula conteve os ímpetos para não dar demonstrações de macaca de auditório, procurou agir com toda naturalidade, como se os Beatles tivessem acabado de sair de sua casa antes de ela chegar; eles também sabiam onde ficavam escondidas as chaves da porta. Como se celebridades daquele naipe entrassem e saíssem a toda hora de sua humilde casa. Enfim, mais uma vez ele teria de fazer sala para uma estrela mundial.

A Janis – olha eu aqui pegando uma intimidade – também agiu com igual naturalidade na presença de Lula e, em poucos minutos, eram como se os dois fossem amigos de longas datas. Ela estava vivendo uma aventura, uma entre muitas, com certeza. Viera ao Brasil acompanhada de um amigo texano. Passara o carnaval no Rio, onde fora impedida de desfilar numa escola de samba devido aos seus trajes hippies. Quase foi presa por fazer topless na praia de Copacabana, uma devassidão para a época. E foi expulsa do presunçoso Copacabana Palace por nadar nua na piscina! Depois de agitar o Rio, viajou de carona durante dois dias em cima de caminhão juntamente com o texano e com um amigo de um amigo surfista carioca que também era amigo de Lula, do tempo que eles pegavam ondas juntos no Arpoador, e que lhe dera o seu endereço para que ela batesse à sua porta pedindo abrigo. Ninguém reconheceu aquela moça que mais parecia uma entre tantas outras hippies estrangeiras que pegavam carona nas estradas.

Eram tempos difíceis para Janis. Ela estava no auge se sua carreira e tentava se livrar do vício que a levaria à morte oito meses mais tarde. Aquele passeio a Salvador a ajudou a ficar longe das drogas por algum tempo, mas não da birita, que era consumida já no café da manhã feito farinha. Nos inesquecíveis dias que se seguiram, Janis ficou cercada de pessoas amigas – Lula e sua turma de inseparáveis amigos - que lhe deram uma força naquele momento pelo qual ela estava passando. A turma hippie que se formara andava alegre para cima e para baixo da cidade do Salvador sem ser incomodada. Janis até achava graça de que ninguém a reconhecesse pois, ela já era muito famosa e assediada em suas andanças pelo mundo.

Mas o ponto alto de sua breve estada foi certa noite quando a turma foi parar numa espelunca na Ladeira do Carmo. Lugar freqüentado por estivadores, marinheiros e mulheres de vida fácil. A boate ficava num casarão antigo, cujas paredes eram caiadas com um tom rosado desbotado, descascadas aqui e ali, e manchadas de mofo pela umidade. O cheiro de fumaça de cigarro e perfume barato se misturavam ao da madeira velha do assoalho. A atmosfera era de festa e alegria. O vozerio dos homens falando alto e as gargalhadas espalhafatosas das mulheres eram abafadas pela música tocada por uma tosca banda de rock que ficava num canto, iluminada por uma meia luz vermelha. Lá pelas tantas, no auge da magia da bebida etílica barata consumida aos excessos, o guitarrista da banda do pretenso cabaré fez um sorriso maroto e deu a introdução da 'Sumertime'. Janis, que estava numa mesa do canto com seus novos amigos, foi tomada de um arrebatamento. Levantou-se e foi até o guitarrista para acertarem o tom da música. E o que se sucedeu depois, foi algo de mágico e inesquecível. Durante as horas que se seguiram, aquela musa do rock, parecia ter entrado em transe, tomada por algum espírito que a transformara numa mulher maravilhosa e eletrizante. Ela cantou uma musica após a outra, acompanhada daquele guitarrista que conhecia todo o seu repertório. Hoje em dia, ele deve contar, também, esta estória a seus netos, tocou com a musa do rock Janis Joplin. O bar inteiro parecia que estava enfeitiçado por aquela voz forte e vibrante cuja voz aguda rasgava o silêncio da noite janela afora. Parecia coisa do outro mundo. A turma das docas aplaudia de pé enfeitiçada por aquela estranha mulher estrangeira. Os amigos baianos de Jane estavam em estado de graça, hipnotizados. As meninas do puteiro de tia Celeste, na casa em frente, interromperam suas atividades profissionais entretendo a clientela, para dar uma chegadinha até a janela para ouvir melhor aquela voz estranha e bela que as vezes parecia um lamento. A bebida corria solta. Todos se divertiam como nunca. Dançavam e cantaram até o nascer do sol sobre a Baia de Todos os Santos.

No dia seguinte, Janis picou a sua mula para a vila hippie de Arembepe, cuja estória você já deve ter ouvido tantas vezes até que virou lenda. Mas certamente ignorava que antes, ela deu uma passadinha aqui no velho Rio Vermelho.

Rio Vermelho, 25 de junho de 2009.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Não saio daqui do Rio Vermelho.

Uma querida amiga nova-iorquina acha engraçado eu não sair do Rio Vermelho para quase nada. Ela tem razão. Quando vem me visitar, almoçamos em restaurantes, vamos a barzinhos ou dançar, fazemos compras, tudo sem ir longe aqui de casa. Outro dia, ela me perguntou curiosa se eu tenho outras roupas além de bermuda, camiseta e chinelos, pois nunca me viu de outro modo. Só me visto assim para andar aqui pelas vizinhanças, é mais confortável. É fato que raramente atravesso as fronteiras do meu bairro. Fácil de entender. Salvador cresceu bagunçada, ir de um lugar a outro é um verdadeiro martírio e perda de precioso tempo. Há fartura de congestionamentos para todos os lados e gostos, desde aqueles intermináveis entre uma sinaleira e outra, até os sem motivo algum. Eu não me incomodaria em viajar duas horas diárias para ir e voltar do trabalho, desde que uma hora do trajeto não fosse perdida empacado em engarrafamentos. Por isso, fiz do Rio Vermelho o meu microcosmo.

    Aqui, temos de tudo, você não pode nem imaginar. Desde gaúchos de bombachas perdidos pelas ruas, até pingüins vindos da Antártida! Perto daqui mora um sujeito estranho que creio ser um cidadão de outro planeta, mas minhas suspeitas ainda não se confirmaram. Temos uma pequena colônia italiana e outra 'turca' – para 'o cara' de Brasília, libaneses, sírios e turcos são tudo a mesma coisa. O Rio Vermelho está até na história do Brasil. Os primeiros portugueses que aqui chegaram foram saboreados pelos tupinambás na Mariquita, onde hoje só se comem acarajé. Alias, foi aqui que o Diogo Álvares Correia, o Caramuro, naufragou, antes de dar o lendário tiro de espingarda num pobre pássaro, para causar temor aos indígenas. Hoje em dia, próximo ao local fica o Mercado do Peixe, ponto de abastecimento de nossos bêbados e boêmios em fim de noite. Escritores famosos e artistas plásticos também fizeram daqui a sua moradia, dando a fama que o bairro tem. Rio Vermelho também é um lugar rico em estórias e personagens, mas desta vez não planejo falar sobre eles. Muitos moradores nasceram e se criaram aqui e daqui nunca saíram. E os que se aventuraram a partir, retornaram arrependidos. Outros moradores se casaram com alguém daqui mesmo do bairro, mais uma prova que aqui tem de tudo, inclusive bons partidos. Existe um magnetismo e atmosfera inexplicável neste lugar que só quem tem o privilégio de morar aqui é que percebe.

    Li recentemente numa revista que reduzir a rotina diária ao limite de poucas quadras de onde se mora é um novo estilo de vida, já praticado por pessoas em grandes centros urbanos mundo a fora. Então, eu não inventei nada de novo, e só estou seguindo uma tendência mundial, o que me livra do rotulo de ser um bairrista, e me transforma num ser cosmopolita. Quem mora em cidades grandes e desordenadas como Salvador, passa a maior parte da vida dentro de um transporte tentando chegar a algum lugar. Poderia estar fazendo algo mais útil ou agradável. É claro que a grande maioria não tem essa opção, mas para aqueles que têm o privilégio de trabalhar em casa feito eu, sobra mais tempo para fazer coisas interessantes, como escrever um blog, por exemplo, ou tomar uma cervejinha no final de tarde na casa de algum vizinho aposentado, ou falar mal do governo em um acalorado bate-papo em alguma esquina. O segredo de tudo isso é tentar simplificar a vida. Tenho uma amiga que não põe os pés em Shopping Center porque prefere prestigiar o comércio do bairro e fugir da aporrinhação em procurar por uma vaga de estacionamento. Cada um de nós tem seu motivo para resolver sua vida sem ir muito longe de casa, como você pode ver.

    É uma contradição vivermos numa época em que se vive por mais tempo que nossos antepassados, e desperdiçarmos este precioso tempo ganho a mais, em congestionamentos ou em filas de banco. Com tanta tecnologia e serviços às nossas ordens, computadores de todos os tamanhos, internet, celulares que fazem de quase tudo, entregas rápidas, novas formas e teorias de administração de negócios, para exemplificar algumas, aqueles tipos de trabalhos solitários executados sentados numa mesa de escritório de uma empresa ainda não podem ser transferidos para o quartinho dos fundos de nossa casa.

    Certa vez fui almoçar na casa de um milionário, destes que possuem banco, usinas de álcool, petroquímicas, construtoras, fazendas, governadores, prefeitos, senadores, presidentes da republica e até uma barraca de praia em Itapoan, só para exemplificar a grandeza do homem. O magnata comandava todos os seus negócios sem sair de casa, trajando como uniforme de trabalho bermuda, camisa de malha e chapéu panamá. Ele me contou que certa vez um ministro de estado foi até sua casa para uma reunião. Sua Excelência precisou enviar urgente um documento para Brasília, para cumprir uma ordem do Todo Poderoso. Foi até a copa e perguntou à cozinheira:

    - Minha senhora, onde fica o aparelho de fax?

    A velha pensou por um instante, desconfiada, antes de dizer alguma coisa.

    - Meu senhor, isto aqui é uma casa de família, não tem essas coisas não! – respondeu indignada.

    Como você pode ver, esta nova era já chegou para alguns afortunados, e para outros, nem tanto.

Rio Vermelho, 10 de junho de 2009.