A casa ao lado, onde certa vez uma sinistra senhora transformara no mais barulhento canil já ouvido por estas paragens, fora muito tempo antes habitada pelo saudoso seu Pereira e sua numerosa família. A criadora de cães foi posteriormente banida das vizinhanças pelos incomodados, juntamente com seus mais de vinte bichos, mas isto já é outra estória. (Leia neste blog 'O diabo mora ao lado').
O seu Pereira era uma daquelas pessoas que, de vez em quando, temos a sorte de termos como vizinho. Um sujeito prestativo e muito cordial. Era corretor de imóveis por profissão e mesmo quando já tinha passado dos 60 quando para cá se mudara, nunca o vi um só dia faltar ao trabalho ou se queixar de doença, ou reclamar da vida. Tudo lhe parecia excelente. Ele era um camarada conversador e por conta de sua ocupação, sabia da vida de todo mundo, e não se incomodava em compartilhar o seu vasto conhecimento com agente. Os cabelos eram fartos, brancos e brilhantes e a circunferência de sua cintura parecia um barril de vinho, embora ele jamais pusesse uma única gota de álcool na boca. Seu Pereira era um homem muito católico de ir a missa todos os domingos e praticava sua crença ajudando as pessoas como podia e achava que era o certo. Houve um tempo em que ele e meu pai faziam caminhadas juntos até a Barra todas as manhãs. Coisa de safenados. Antes de sair de casa, o seu Pereira enchia os bolsos da bermuda com uns trocados com a decidida intenção de distribuí-los a quem ele achava que precisava e que ele encontrasse pelo meio do caminho. Parecia um político em véspera de eleição. Isto é pra você, dizia entregando uma nota ao surpreso agraciado. Ele era uma figura. Meu pai se impressionava com tamanha generosidade e um dia quis lhe pedir uns trocadinhos!
Seu Pereira não era apenas bem informado a cerca da vida alheia como também se preocupava genuinamente com as pessoas e com seus vizinhos. Houve um tempo em que eu trabalhava à noite 3 vezes por semana, bons tempos aquele!, e chegava em casa tarde da noite. Eu vinha em meu automóvel e dava uma paradinha em frente ao portão da garagem do outro lado da rua, saltava para abri-lo deixando o motor ligado. Durante toda esta operação, eu contava com a proteção do meu vizinho anjo da guarda, que aparecia em sua janela quando me ouvia chegar, para vigiar minha chegada e certificar-se que eu entraria em casa com segurança. Certa vez, ao sair do carro olhei para sua janela no segundo andar e lá estava ele em seu posto. Acenei-lhe com a mão e ele respondeu com um balanço de cabeça e mostrando-me discretamente que tinha nas mãos uma arma. Graças a Deus, nunca foi preciso usá-la.
Naquele tempo, as noites em minha rua eram silenciosas e a rua ficava completamente deserta ao cair da noite - muito diferente de hoje, infelizmente - iluminada apenas por dois postes que se revezavam em ter luz. Tenho certeza que era apenas uma única lâmpada para os dois postes que a COELBA trocava de um para o outro a cada reclamação, pois quando uma era trocada, a outra não acendia! Nossa rua era tranqüila e segura, apesar disso. Certa manhã, um homem bateu à nossa porta. Apresentou-se como o vigia noturno. Tinha o rosto marcado por cicatrizes, inclusive uma abaixo do nariz, indicando que tivera lábio lepurino, fazendo com que sua fala fosse fanhosa. Vieira para cobrar pelo serviço. Expliquei-lhe que jamais solicitara tal coisa e que, de qualquer forma, não estávamos interessados. Mesmo assim, vez por outra, passei o ver pelas redondezas à noite usando uma jaqueta preta onde se lia nas costas a palavra 'Segurança', escrita com letras bem grandes e brancas. Sua presença era nos lembrada constantemente com seu apito que quebrava o sossego da noite. Ele era insistente, todos os meses batia à nossa porta e ouvia a mesma recusa. Nossa rua era segura e nunca se ouvira estórias de roubos ou assaltos, de que serviria um vigia, então?
Existem pessoas que são de uma maldade incompreensível. A voz fanhosa de 'nosso vigia' era motivo de freqüentes chacotas entre os porteiros de prédios das redondezas e outros vigias das ruas próximas. Diziam, também, que ele era um frouxo e que se um dia tivesse de enfrentar um assaltante, ele seria o primeiro a correr de medo. Para mim, tudo isso era conversa de quem não tinha o que fazer. Certa noite, ao chegar em casa, o encontrei sentado no meio-fio em frente à garagem, aos prantos. A cara estava arrebentada. Falou que bateram nele, mas não disse quem e nem por que. Ajudei a se levantar e dei-lhe algum dinheiro para ir para casa cuidar dos ferimentos. No dia seguinte, o seu Pereira veio me contar tudo. Assistira de longe um porteiro de um prédio lhe dar uma surra humilhante e por um motivo infantil. Coisa de moleque. Era uma coisa que não se faz com um pai de família, disse indignado. Uma injustiça fazer aquilo com um homem, humilhar daquele modo a sua masculinidade. Em outros tempos, correria até lá para defender o coitado. Já tinha lutado boxe em sua juventude e tinha os punhos ainda fortes. Mas aconteceu tudo muito rápido, não teve chance de fazer nada. Teve dó do moço, sobre quem já sabia tudo a respeito. Era pai de cinco filhos e morava longe. De dia era zelador de uma escola e à noite ganhava uns trocados como vigia noturno. Quando o apanhado conseguiu escapar de seu agressor, correu para estas bandas de cá e ao passar em frente à casa do seu Pereira que assistira a cena de sua janela, este lhe gritou de lá de cima com o intuito de levantar o seu moral, pelo vexame que passara. Não é que ele era mesmo um frouxo?! Queria consolá-lo de algum modo para que chegasse em casa e enfrentasse a sua família de cabeça erguida.
- Olha, seu Joaquim, eu vi o que aquele bando fez com o senhor – apanhara apenas de um! Olha seu Joaquim, eu sei do que o senhor é capaz! O senhor é um homem muito violento e perigoso, Sr. Joaquim! Já me contaram tudo a seu respeito. Não vá fazer nenhuma besteira, heim! Vá pra casa e esfrie a cabeça. Vingança não leva a nada. Pense em sua família!
O Sr. Joaquim ouvia tudo aos prantos, sentia-se como um menino assustado. Nunca fora tão insultado.
- Este seu choro é de raiva, dá pra perceber isso. Eu já passei por isso também. Não faça nenhuma besteira! Vai pra casa, com Deus!
Rio Vermelho, 15 de janeiro de 2009.