sábado, 3 de janeiro de 2009

Moça de vestido de chita rendado.

Meu pai nasceu e foi criado no fim do mundo. Numa fazenda no esquecido município de Cajapió, na baixada maranhense. A região pantanosa e de floresta amazônica, rica fauna e flora exuberante o impressionaram tanto e a tal ponto que estiveram presentes em sua pintura até final da vida. No fundo, meu pai jamais deixou de ser aquele menino do mato, contemplador das coisas da natureza. Quem já teve a oportunidade de ver um de seus quadros, sabe do que estou falando.
Eu pouco soube de sua família, além de que eram muitos os irmãos, e que talvez nem meu pai conhecesse a todos. O meu avô era algum tipo de fiscal sanitário e animal. Passava muito tempo fora de casa viajando pela região, visitando fazendas. A mãe ficava, cuidava da família numerosa e da fazenda. Meu avô foi-se cedo. Teve um dos dedos da mão estrangulado ao laçar um garrote. Semanas depois, morreu de gangrena. Ocasionalmente meu pai falava de sua gente com carinho ao recordar de alguma estória da família. Apesar disso, nunca foi muito apegando a eles. Foi morar em São Luis com uma tia quando era jovem e nunca mais retornou. Quando minha avó morreu, eu já passava dos 20 e me surpreendi por saber que ela sempre fora viva, apesar de eu nunca ter perguntado por ela ou qualquer outro membro da família de meu pai. Alguém ligou de São Luis para dar a notícia no meio da noite. Papai foi dormir calado com o choro preso na garganta. No dia seguinte, enviou dinheiro para ajudar no enterro. Nos dias que se seguiram, ele se lembrou de sua falecida mãe e de sua infância em Cajapió. Certa vez, o ouvi contar a seguinte estória ainda dos tempos de fazenda.
Naquele tempo, automóveis eram ainda uma raridade na região, ou melhor dizendo, o lugar era tão inóspito que quase não haviam estradas pavimentadas ou de barro para veículos motorizados de 4 rodas. Certa vez, ao cair da noite, meu pai selou um cavalo e vestiu sua melhor roupa e botas lustradas, e seguiu montado num animal até uma fazenda não muito distante, onde haveria uma festa. A noite de lua cheia iluminava a maior parte do caminho. Em alguns trechos, a mata se fechava quase impedindo a passagem de luz, ficando por conta do instinto do animal, a tarefa de acertar o caminho e de levar meu pai com segurança até seu destino final. A noite era tranqüila e só se ouvia o suave trote do cavalo quebrando o silêncio da floresta. Havia chovido muito na noite anterior, e por isso ainda era possível sentir o cheiro de terra molhada. Ao passar por uma modesta casa iluminada por lampião quase à beira da estrada, um velho pé-duro se despertou de sua preguiça e ensaiou alguns latidos mas sem se dar ao trabalho de sair do lugar. A dona de casa largou seus afazeres na cozinha e correu até a porta pra ver quem vinha, acompanhada de duas crianças catarrentas que se agarravam à bainha de sua saia.
Uma pessoa da cidade, pouco afeita a este tipo de aventura, poderia julgar meu pai um inconseqüente, fazendo uma jornada daquelas no meio da escuridão. Acredite que fazer isto era mais seguro que andar a pé numa calçada de cidade grande, hoje em dia. Esta era a realidade de quem morava em zonas rurais tão isoladas, enfrentar a floresta e os elementos da natureza eram coisas que se fazia todos os dias sem se dar conta de que estavam fazendo algum tipo de ato de bravura.
Quando meu pai se aproximou de seu destino, logo ouviu a banda trocando animada ao longe. Viu também a claridade da luz elétrica gerada pelo motor de querosene. Ao cruzar a soleira da fazenda, sentiu o cheiro de carne queimando no braseiro. A fome apertou-lhe no estomago. Cavalgou mais alguns metros e apeou debaixo de uma mangueira onde outros cavalos amarrados matavam a sede num grande bebedouro de madeira e comiam capim novo. O local cheirava a urina e estrume fresco. No pátio em frente à sede, a festa corria animada. Banda de música de um lado, mesa farta de comida do outro e no meio do caminho, todo mundo dançando agarradinho, mas respeitosamente. Meu pai pôs os olhos numa moça bonita arrumada com vestido de chita rendado, meio perdida no salão. Gesto de galanteio, seguido de convite para dançar, foi timidamente aceito. Dançaram a primeira música, em seguida a segunda e na terceira, os dois já se sentiam na intimidade. Ao final da música, meu pai puxou a moça pela mão e levou-a para tomar um refresco e comer qualquer coisa. Era a hora de levar uma conversa com ela, de saber a sua graça, quem era a sua família e por que bandas morava. Roubaria um beijo, se tivesse sorte. Naqueles tempos, não se comia tão fácil como nos dias de hoje. Nem bem começou com seu interrogatório, foi interrompido por um senhor de olhar grave. Era um tio.
- Floriano, vamos ali ter uma palavra? - interrompeu cerimonioso.
- Claro, tio. Eu já volto. - desculpou-se com a moça. Respeitava muito o tio.
Os dois homens se afastaram até próximo de uma cerca de madeira. A moça ficou aguardando.
- Como vão todos de casa? - quis saber.
- Bem. - respondeu monossilábico. Queria voltar logo para a moça.
- Fez boa viagem?
- Fiz, sim senhor.
- Tá gostando da festa?
- Tô sim. Tá animada.
- Reparei que você se interessou por aquela rapariga. - olhou em volta.
- Ela é muito bonita, tio.
- Ouça bem. Tenha muito cuidado com ela. Não lhe encoste um só dedo. - disse quase ameaçador.
- Mas por que isto, tio? - perguntou meu pai desapontado.
- Porque ela é sua irmã!


Rio Vermelho, 12 de dezembro de 2008.

Um comentário:

Sarnelli disse...

Passei por aqui, Cristiano...fiquei sem saber o que dizer ! Coisas da vida !...