quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O homem do apito.

Quem vem para estas bandas a passeio, desconhece que, na verdade, Salvador é uma piada. A estória de que aqui é a terra da felicidade é uma mera peça de publicidade enganatória (esta palavra não existe ainda, vamos ver se ela pega!), assim como aquela propaganda na qual um esportista fuma com satisfação um cigarro, para lhe convencer que fumar é saudável. Para quem aqui mora, Salvador é a terra do tormento. A cidade cresceu feito capim num jardim mal cuidado. Ela simplesmente inchou feito uma besta fera em seu pasto universal, sem nenhuma preocupação de planejá-la e ordená-la. Aqui tudo pode, basta ter cara de pau. Bairros ou áreas de bairros que deveriam ser estritamente residenciais foram invadidos pelo comércio, faculdades, bares, restaurantes e ambulantes desbragadamente, infernizando a vida de seus moradores. Tudo isso porque o IPTU desses estabelecimentos é muito mais lucrativo aos cofres públicos (e pessoais) do que o de uma simples residência. O resultado de tudo isso vai além da fronteira do trafego cronicamente congestionado ou da poluição sonora no meio residencial. A relação entre as pessoas torna-se conflituosa e até violenta.

    Só para ilustrar, na frente da casa de um amigo no Rio Vermelho, se instalou um bar que toca musica com o volume alto noite e dia há mais de três anos. Meu amigo já tentou recorrer ao bom senso do proprietário, mas foi sempre recebido a ponta pés. Queixou-se com os órgãos competentes, no caso a SUCOM, sem nenhum resultado. O santo deste bar é muito forte e chama-se indústria da cerveja, mas isso ai já é outra estória... Finalmente ele recorreu ao Ministério Público, que cobrou da SUCOM providencias. E sabe o que SUCOM disse? Não pode fazer nada porque o dito bar nem alvará possui! Acreditem! Vão dar um tempinho até que o bar se regularize para lhe fazer, então, uma visitinha. E o assunto morreu ai. Coisa de ficção.

    Meus problemas de vizinhança inconveniente não são menos diferentes. Tendo lidar com eles conversando amigavelmente com os responsáveis pelo estabelecimento e se não resolver, parto para a guerra! Cheguei aqui bem primeiro e não concordo que alguém tenha o seu lucrativo meio de vida às custas da desgraça alheia. Não me incomodo com que as pessoas trabalhem, desde que não me incomodem. Hoje em dia fala-se muito em 'qualidade de vida' – seja lá o que isto for - e eu quero uma dessas também!

    Minha estória não é sobre nenhum estabelecimento, mas sobre uma única pessoa. O homem do apito. Junto com o movimento dos bares e restaurantes nas redondezas, apareceu aquele personagem urbano e anônimo que você só o percebe quando ele lhe cobra por você estacionar seu carro em via pública. Ele aparece logo quando você chega e estaciona, e em seguida some. Quando você vai embora, ele reaparece sorridente cobrando-lhe por um serviço que não se pediu. Intimidado, o dono do automóvel entrega-lhe um dinheiro. Um falecido amigo meu sempre dizia a estes 'guardadores de carro' que se aproximavam, 'obrigado, mas eu já paguei o IPVA, e não devo mais nada'. Nunca deu um tostão e nunca fizeram mal algum a seu carro, até por que aquela carroça era de dar pena! Os 'guardadores de carro' só existem por que nossa compaixão os incentiva.

    Meu tormento começou há algumas semanas quando comecei a ouvir um apito irritante no inicio da noite e que se estendia noite a dentro pela madrugada. Aquilo começou a mexer com os meus nervos, era muito freqüente. Era um apito curto e estridente rasgando o silêncio da noite, um 'pri!'. Nunca tinha ouvido apitos antes por aqui, era só o que faltava. Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece. Como eu escrevo à noite, aquilo já estava interferindo em minha concentração. Depois de ouvir um apito eu já ficava esperando irritado para ouvir o próximo! Coisa de maluco mesmo. Fui até a porta investigar quem seria o inconveniente apitador. Era o mesmo homem que de dia lava carros na pracinha. Bem, ninguém podia negar que ele não era um homem trabalhador, trabalhava dia e noite! Eu nunca tinha trocado uma palavra antes com aquele cidadão e esta seria a primeira vez que me dirigia à sua pessoa. Aproximei-me e apresentei-me. Pedi-lhe educadamente que diminuísse o apito, pois já estava incomodando. Ele desculpou-se e, em seguida, eu fui embora. Continuou apitando mesmo assim!

    Os apitos continuaram, e eu sou um cara paciente e insistente. As chegadas e saídas de carros eram freqüentes. Um automóvel chegava e ele pri! Outro manobrava para sair e ele pri! Enquanto isto ele dava um priiiii! para se exercitar. Já tinha virado um cacoete! Mais uma vez fui até lá falar com ele. Fui mais uma vez educado, até porque ele tinha tamanho e força para me dobrar ao meio. A minha educação se justificava pelo fato de eu não ser péssimo em luta livre, do contrário, ele passaria a apitar pela bunda! Pedi-lhe que não apitasse mais, pois não havia necessidade e que outros guardadores de carro antes dele nunca tinham apitado. Havia pessoas que queriam dormir e o apito atrapalhava o sono. Falei até que ele deveria se sentir cansado de apitar a noite toda. Disse-lhe que ele já tinha adquirido o mal habito de apitar sem motivo e que nem ele percebia isto. Ele concordou com tudo e prometeu diminuir os apitos. O que eu queria mesmo é que ele parasse com aquilo. Desejei-lhe boa noite e voltei para casa. Ele deu as costas e continuou apitando mesmo assim a noite inteira.

    O que fazer com um cidadão que se sente o dono da rua e demonstra desprezo pelas pessoas? Vai à delegacia e faz uma queixa, sugeriu um amigo. A idéia me desagradou. Achei um exagero, e por entender que a polícia tem má reputação, mantenho-a longe de minha vida. Além do mais, o ambiente de submundo que uma delegacia simboliza para mim, é um tipo ambiente que procuro me manter à distância. Não é lugar para um menino de família. Dois dias depois, estava eu na delegacia.

    Relatei o meu infortúnio e pedi orientação sobre o que fazer. Não queria prestar queixas e nem mandar prender ninguém. Não desejava nenhuma ação drástica. Expliquei que o senhor apitador era um trabalhador, e que seu único crime era abusar do apito. O oficial que me atendeu, me deu um papel com o telefone da delegacia. Pediu que eu ligasse para ele caso o apitador incomodasse depois das 22hs, lei do silêncio. Iriam até o local conversar com ele. Quando o apitador começou a dar seus apitos na noite daquele mesmo dia, fui até ele e contei que estivera na polícia e o que aconteceria caso continuasse apitando. Ele mal prestou atenção no que eu lhe dizia, pois os carros chegavam um após o outro e ele estava mais preocupado com eles do que comigo. Continuou apitando. Fiquei puto. Desejei que ele se engasgasse e morresse lentamente com aquele apito. Agora eu iria jogar pesado. Acabou-se o Cristiano ternura.

    Dois dias depois, voltei à delegacia e fiz uma queixa formal. Tenho sorte e infortúnio de morar no Rio Vermelho, onde se encontra de tudo, desde delegacia de polícia a apitadores! Ele seria intimado a comparecer perante o delegado em data e hora marcada. Eu deveria estar presente. Se antes disso nos entendêssemos, nem ele e nem eu teria de comparecer à audiência, me foi dito. Da minha parte, eu já considerava minhas tentativas esgotadas e não iria procurá-lo para dizer mais nada. Poucas horas depois, ele foi intimado sob forte sol, por um oficial de polícia, enquanto lavava um carro. Naquela noite ele não apitou e nem nas outras que se seguiram. Dois dias antes da data marcada para enfrentar o delegado, ele me procurou muito humildemente e coberto de desculpas. Houvera um equívoco. Era pai de família e homem de bem. Tinha duas filhas para sustentar e esposa. Queria estar em harmonia com todos. Disse que eu estava na minha razão. Ignorava que existisse uma lei do silêncio e que até apito era proibido. Prometeu não apitar mais. Eu lhe disse que lamentava de ter chegado ao ponto de recorrer à policia pois para mim ele era um homem até mais trabalhador que eu. Mas que ele deveria entender que tudo tem um limite. Apertamos as mãos e nos despedimos.

    Quase todos os dias o vejo pelas vizinhanças. Ele me acena e me cumprimenta respeitosamente. Como vai, seu Cristiano? E eu respondo amigavelmente. Como vai, seu Claudio? Não somos mais dois estranhos.    

Rio Vermelho, 17 de fevereiro de 2009.

    

2 comentários:

Sarnelli disse...

Bravo Cristiano ! Eu estou aqui pensando que foi muito bom que o lavador de carro tivesse tido a idéia de se tornar guardador de carro. Se ele não tivesse procurado aumentar a sua renda , fazendo as vezes de guardador de carro , com apito e tudo, você não teria tido a oportunidade de escrever esta historinha. No fim, tudo se acomodou. Você teve a sua história e ele não apita mais...mas eu acho que o principal , foi ele ter recorrido ao apito...priiil, priiil....

esperançoso disse...
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