segunda-feira, 20 de julho de 2009

Relíquia.

Outro dia acordei disposto. Iria matar alguém. Não no sentido literal, fique claro. Lavei o rosto com sabão barato depois de me escovar. Ao pegar meus óculos, gentilmente com a ponta dos dedos, sobre a bancada da pia, o dito cujo se partiu ao meio. Naquele instante, o meu mundo, onde nada de extraordinário acontece, sofreu um pequeno abalo sísmico. Sou tão dependente de óculos, apesar de enxergar razoavelmente bem sem eles, que a idéia de passar um único dia sem eles me assustou. Tive o mesmo pânico que um astronauta fumante inveterado, voando na Columbia, teve ao descobrir que se esquecera de levar um pacote de cigarros para o fim de semana! É que tenho a natureza um tanto perfeccionista, e sem óculos, não consigo ver o mundo tão perfeito em toda a sua imperfeição.

    Na noite anterior, eu tinha encontrado uma solução para desatar o nó em que se encontrava a trama do meu livro. Não via a hora de me sentar nesta cadeira para começar a escrever. Iria matar um personagem que se tornara um incomodo. Infelizmente, só na ficção é que é tão simples se livrar de alguém indesejado. Na vida real, é bem mais trabalhoso e arriscado. Meu personagem já tinha cumprido a sua missão, precisava sair de cena. Se ele tivesse um pouco mais de grana, pouparia sua vida, mando-o para uma viagem longa e sem retorno à Europa, como nas novelas. Embora os óculos quebrados fossem os de longe, não precisaria deles para escrever. Porém, não conseguiria pensar mais em outra coisa se não resolvesse aquele perrengue. É que tenho usado óculos quase a vida inteira. Eles caem bem com meu rosto. Acho até que já nasci de óculos, o que deve ter sido muito doloroso para minha pobre e querida mãe. De modo que, tive de rever minhas prioridades. Deixei para cometer o meu crime mais tarde. Fui procurar um par de óculos velho pelos armários da casa. Porém, o único que encontrei me fazia enxergar pior do que estar sem óculos. Como o Dr. Luciano, meu oftalmologista vitalício, só me atenderia na semana seguinte, como fui informado educadamente pela atendente ao telefone, conclui que esperar tanto, estava fora de questão. Peguei o par de óculos velhos e a ultima receita datada de dois anos atrás. O jeito era fazer um arranjo provisório, trocando as lentes da armação velha utilizando a receita antiga. Um par de lentes novas, embora desatualizado, não sairia por mais que um BigMac com fritas, calculei.

    Calcei os meus chinelos e fui até uma das duas óticas aqui do bairro. A vendedora da primeira loja foi muito solicita. Contei-lhe o meu drama e minha urgência. Enfrentaríamos uma crise pior que a do Senado, caso eu não tivesse meus óculos logo, tentei impressioná-la, embora ela parecesse não ter a menor idéia do que eu falava. Feliz de quem é desinformado. Porém, ela tinha o cacoete de vendedora. Quis me empurrar uma armação nova, pois, como me explicou didaticamente, aquela velha que eu levara comigo corria o sério risco de partir ao ser manipulada no laboratório. Resolvi arriscar, afinal, duas armações partidas na mesma semana, seria muito azar! Não se preocupe, prefiro correr o risco, já ouvi a mesma estória antes e nunca nada aconteceu, disse à vendedora. Mas ela estava disposta a impedir que seu patrão ganhasse nem que fosse um único tostão naquela ensolarada manhã. Sua receita já perdeu a validade, insistiu. Nunca ouvi aquilo. Não quis argumentar. Resolvi não perder tempo ali e fui para a outra ótica.

    A outra ótica funcionava mais adiante, numa casa onde outrora morou uma senhora que, em minha infância, despertou a minha imaginação inocente de criança. Eu morava numa rua próxima, na rua do Céu. Um nome tão poético para uma rua, mas que cometeram o desatino de, muitos anos depois, subtrair-lhe a dignidade ao rebatizá-la com o nome de um político. Sabe Deus se este merecia mesmo ir ou não para o céu! Pois bem, a dita senhora era uma mulher de pele branquinha, baixinha e gordinha feito uma bola de algodão. Nos meus primeiros anos de vida, eu nunca tinha visto ninguém assim tão gordo e redondo. Como podia ser. Fiquei fascinado. Todos os dias, pouco antes do almoço, ela passava pela esquina de minha rua em direção de sua casa. Eu corria até a esquina e sentava no batente de uma casa só para assistir aquela figura que parecia ter saído de um livro de estórias infantis passar compenetrada sem nem mesmo perceber que eu existia. Guardo aquela imagem em minha memória até hoje. Atendeu-me o próprio dono dá ótica. Um camarada simpático que usava na cabeça um chapeuzinho de pano que hoje anda muito na moda e que lhe conferia, juntamente com o brinco preso na orelha, ares de cantor de boleros.

    Contei-lhe o meu pequeno drama. Mostrei-lhe o par de óculos quebrado e que, depois de analisá-lo, ele se incumbiu de dar um remendo que o agüentaria tudo junto por alguns dias. Disse-me, fazendo um misterio, que tinha uma cola especial. Não quis saber detalhes, era especial e pronto. Quanto à receita velha, não haveria problemas. Nada como falar com o proprietário. Desde quando receita antiga tinha validade? O ideal seria uma nova em folha, mas estava esta estava fora de questão. Mostrei-lhe os óculos velhos para o qual queria as lentes. Ao recebê-lo em suas mãos, fez uma expressão admirada.

    - Mas que beleza de peça! – exclamou analisando-a.

    Comprei aquela beleza no Rio de Janeiro há mais de quinze anos, no tempo das vacas gordas. Eu procurava pelas lojas de Ipanema, numa ensolarada manhã de sábado, uma armação para por novas lentes. E como não encontrasse nenhuma do meu agrado, já estava me dando por vencido quando vi na vitrine de uma lojinha prestes a fechar, esta armação que se distinguia de todas as outras que encontrei, justamente pelo desenho incomum, que camuflava a feiúra do meu rosto, tornado-o mais palatável. É esta! Exclamei comigo mesmo. Parecia de encomenda. Era muito leve e delicada, imitando a aparência de casco de tartaruga. Entrei na loja e fechei negócio. Era a única peça da loja. Não era à toa que a achei tão especial, custava mais que uma geladeira duplex com viva-voz e conexão com internet em banda larga! O estojo, também, era algo de chamar a atenção. Bonito e sofisticado, parecia que era feito de couro de animal em extinção, tal a sua qualidade. Enfim, um bichinho daqueles iria fazer seu papel na natureza, servindo de estojo para meus novos par de óculos. Acredito até que o valor alto da armação era devido àquele estojo, e que, na verdade, eu estava pagando caro por ele e a armação vinha como brinde!

    - É uma Giorgio Armani – disse surpreso. - O design desta peça é muito bonito. É raro encontrar por aqui algo tão bonito.

    - Não diga. – reagi surpreso.

    - É feita de um material excelente. Vai durar a vida toda. A NASA o utiliza para fazer puxador de gaveta espacial. – acrescentou oculista cantor de boleros.

    - Não diga.

    - Ela está ressequida. Se o senhor me permitir, passarei um produto especial para hidratá-la. Deveria cuidar melhor dela, pois é uma relíquia.

    - Não diga. – respondi tentando imaginar se o fabricante daquele produto especial era o mesmo que fazia a cola.

    - Há muito tempo eu não via nada semelhante.

    - Não diga. E por quanto vai ficar as lentes?

    - Vai lhe custar exatamente o preço de um BigMac com fritas. – anunciou depois de consultar a tabela.

    Um dia depois, recebia um telefonema. Os óculos estavam prontos e me esperando. Larguei o que fazia. Calcei os meus chinelos e rumei correndo até a loja. A armação parecia nova em folha, como se tivesse saído de fábrica.

    - O senhor vai me prometer uma coisa, Sr. Cristiano. – falou o oculista colocando a peça cuidadosamente em minhas mãos     - Vai cuidar muito bem dela. Daqui a seis meses, volte aqui para eu hidratá-la novamente.

    - Pode ter certeza disso. – respondi satisfeito.

    Coloquei-o na cara e voltei para casa, orgulhoso de possuir sobre o nariz uma relíquia do Giorgio Armani, uma vez que sair por aí pelo Rio Vermelho de chinelos e vestindo um de seus famosos paletós, estava fora de questão. Eu já estava pronto para voltar ao meu trabalho e eliminar com estilo o personagem de minha estória.

Rio Vermelho, 18 de julho de 2009.

3 comentários:

Cássia disse...

que chique vc heim ?

Maria João disse...

Cris, meu amigo:
saudades de você. Vc é uma pessoa muito chique passeando incólume pelo Rv de óculoa Armani no fucinho...
Tem ido ao cinema? Eu tou precisando me atualizar, agora que moro mais perto fica mais fácil, né?
E nossas séries? precisamos fazer um intercâmbio (tou sem internet em casa e super defasada)
Ah, o Trapos mudou de endereço, conserte aí. www.traposcoloridos.wordpress.com
Beijão

Sarnelli disse...

Cristiano, tinha tempo que não passava por aqui. Você me fez lembrar que ando com uma armação remendada a fita isolante. Nem dá para perceber, porque a armação é preta mesmo !... Tenho mesmo que passar na minha ótica e, quem sabe , escolher uma armação com design italiano para colocar novas lentes escuras e adornar o meu nobre nariz , com a vantagem de me fazer enxergar melhor nos dias de sol intenso...Gostei da sua postagem. Meus parabéns. Afinal, deu fim do personagem indesejado ?