Meu vizinho J.R. está sofrendo de paixão aguda. Há semanas, anda amuado e suspirando pelos cantos com olhar de cão abandonado que dá dó. Ao cair da noite, ele senta-se na varanda de casa na companhia de uma garrafa de uísque ordinário e do mesmo velho disco de vinil de tangos que se repete na vitrola sem parar. Olhar solitário, contempla a esmo o firmamento e, ao pousar os olhos sobre a misteriosa lua, solta uivos feito um lobo ferido e chora copiosamente a perda do grande amor. Se há algo de irônico nesta tragédia romântica, na qual ele é o protagonista, é que ele caiu numa armadilha do amor, ao provar de seu próprio veneno.
Seu calvário teve início no momento em que ele conheceu uma moça de nome Lucinda, na aula de Tai Chi Chuan que frequentava duas vezes por semana ali no Quartel de Amaralina. A criatura era desprovida de dotes físicos que atraíssem para si a cobiça masculina, não era lá o tipo que os homens olham mais de uma vez, mas, para sua sorte, J.R. não era um cara exigente e nem ligava para estas coisas de beleza. Apesar de sua feiura natural, Lucinda era talentosa na arte de virar as cabeças masculinas, quem sabe ela possuísse algum poder mágico.
J.R. e Lucinda logo se tornaram amigos e cedo descobriram que tinham muito em comum, sabe como é, aquela velha estória. Não demorou muito até que aquela saudável camaradagem fosse parar ao pé da cama. E na cama continuou com a gula de quem teme que fazer sexo fosse sair de moda. Apesar daquele furor, nenhum dos dois jamais falava em assumir algum compromisso ou coisa do tipo, pelo menos era o que J.R. lia nas entrelinhas. Mas onde já se viu mulher sair dando por aí, sem querer laçar o fulano? Para a alegria de ambos, aquela farra lasciva virou um hábito semanal como ir à missa de domingo. Toda quinta feira, depois de bater o ponto no serviço, Lucinda vinha bater o outro ponto aqui na casa dele no Rio Vermelho. No começo, aquela novidade era recebida por J.R. com entusiasmo e um largo sorriso, afinal, quem não gostaria de uma visita daquelas? Ele abria a porta para ela, e ela entrava até a manhã do dia seguinte. A vida não poderia ser mais prazerosa.
Como tudo que é bom, um dia enche o saco, depois de algum tempo curtindo aquelas visitinhas semanais, no entanto, J.R. começou a ficar incomodado e a se perguntar onde aquela farra iria chegar, se é que deveria chegar a algum lugar. Não que ele conjecturasse assumir algum compromisso com a moça. Pelo contrário, o seu interesse por Lucinda esmoreceu depois que ele lhe desvendou os segredos. Então, ele passou a não demonstrar mais tanto entusiasmo por ela, como se o encanto pela moça tivesse virado uma nuvem que se dissipou pelo espaço. No entanto, ela pareceu não ter percebido tal mudança no comportamento do rapaz e, se o fez, não deu lá a importância devida, continuou comparecendo ao endereço aqui do Rio Vermelho, religiosamente. Por outro lado, mesmo estando enjoado de Lucinda, J.R. aceitava os seus favores de bom grado, afinal, que mal haveria se ambos eram adultos e estavam se divertindo? Contudo ele não fazia nenhum esforço para ocultar que não estava mais nem aí para ela. Tratava-a com indiferença e nunca a procurava, mas jamais era rude com ela ou se quer lhe dizia coisas ruins. Será que há coisa mais maligna que um tratamento indiferente e cordial? Talvez tal ambiguidade a levou a imaginar que J.R. apenas tivesse com constipação intestinal.
Finalmente, um dia o amor próprio da moça a fez despertar de sua cegueira, levando-a a perceber o descaso do amante. Não disse nada, sofreu resignada, calou o pranto. Lucinda, ferida em seu orgulho, então, resolveu vingar-se. Longe do que imaginou J.R., ela estava, sim, era muito apaixonada por ele. Homem é que é mesmo um bicho burro, não se apercebe de nada. Pois, como uma verdadeira bruxa, imagino que ela deve ter lhe preparado alguma porção mágica que secretamente pôs em sua comida; não duvido, também, que tenha lhe jogado um feitiço, eu mesmo já fui vitima desses sortilégios e sei que eles existem fora dos livros de contos de fadas. O fato é que Lucinda serviu a J.R. o prato frio da vingança, deixando-o em estado lastimável.
O plano de Lucinda teve início quando ela começou por não passar mais a noite sob os lençóis de J.R. Em seguida, reduziu a frequência de suas visitas até, finalmente, sumir do mapa. Ele, então, intrigado com aquela sua súbita mudança de atitude da generosa moça, passou a procurá-la, ao que ouvia de sua boca a mesma surrada e velha desculpa de que ela andava muito ocupada — será que esta ainda cola? Desejava muito ir vê-lo, mas estava tão ocupadinha, dizia. Sua vida era tão ocupada...
Ao invés de se dar por satisfeito com o sumiço da moça —não era isso, mesmo, que ele almejava? — J.R. teve uma reação contrária, ficou inquieto e passou a criar caraminholas na cabeça por causa do comportamento de Lucinda. Estes seu pensamentos nebulosos passaram a lhe atormentar as ideias e a lhe tirar o sossego. Lucinda passou a povoar os seus pensamentos dia e noite sem parar feito alguma moléstia. Todas as manhãs, ela lá já estava para lhe atormentar o juízo quando ele despertava, e, também, estava igualmente presente, antes de ele cair no sono à noite, quando ela lhe visitava em seus sonhos noturnos como uma assombração. Não havia um segundo do dia que ele não parasse de pensar naquela mulher diabólica, a coisa tinha virado uma verdadeira obsessão. Seja lá o que Lucinda aprontou para J.R., a coisa funcionou.
Lucinda sumiu para todo o sempre, que ela não estava blefando só para ganhar o amor de J.R. Provavelmente ela encontrou o homem dos seus sonhos, e agora o visitava todas as sextas-feiras ou outros dias santos da semana. Mas J.R. ainda tem esperança de que um dia ela venha bater à sua porta tal como fazia antigamente. Quem imaginou ver um final feliz de tudo isso, aviso que este não é nenhum conto de fadas.
Rio Vermelho, 3 de dezembro de 2010.
2 comentários:
Cris, vc está cada dia melhor.
Cristiano, passei por aqui e acabei com pena de JR ... também, quém mandou ele tratar a moça daquela maneira ? É como eu sempre digo: do quase nada, você tira algo e bem tirado !
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