sábado, 9 de abril de 2011

Sobre a verdade e a mentira ou de como consegui espantar a preguiça.

É verdade que andei meio sumido. Foi por conta de uma preguiça renitente, feito uma gripe mal curada, e de um notebook novinho em folha que teimava em não trabalhar. Está claro que eu e a geringonça compartilhamos de algo em comum, mas as semelhanças terminam por aí. O notebook foi e voltou para a UTI e continuará por lá até que eu volte de viagem, e a preguiça, esta não desencarna nem com creolina, mas devo fazer-lhe justiça, pois sem o ócio não haveria a criatividade. Neste meio tempo, voltei ao Rio que tanto amo e, ainda no aeroporto de Salvador, fui lembrado de que estava na “Terra da Felicidade” ao ir ao banheiro do aeroporto internacional e constatar que o do terminal rodoviário é bem mais limpo. Seja lá quem esteja fazendo uso da formidável grana de manutenção e administração do aeroporto, espero que esteja aproveitando bastante porque, certamente, na sua limpeza é que não está.
O meu vôo estava programado para partir às 4:15 da matina, por precaução, cheguei duas horas antes. Eu prefiro viajar a esta hora porque o espaço aéreo ainda não está congestionado, pois, se há uma coisa que me causa aflição, é um engarrafamento lá em cima. Fui diretamente ao balcão da companhia aérea deixar minha bagagem, sendo atendido por uma sorridente e bem humorada funcionária que, ao marcar o meu assento, sugeri-lhe que me acomodasse ao lado de uma moça bonita e bem comportada. Terminada a formalidade, dirigi-me à loja de livros e revistas para pegar uma leitura que me ajudasse a passar o tempo e, qual não foi a minha surpresa ao dar de cara com a loja fechada. É uma satisfação saber que os negócios vão indo tão bem que o dono da loja se dá ao luxo de não abrir o seu comércio de madrugada, deixando a sua clientela a ver navios – ou aviões, se preferir. Provavelmente este cidadão nunca esteve no aeroporto de madrugada e, por isso, desconhece que o lugar funciona também neste horário, com voos que chegam e se vão a toda hora.
Aborrecido, eu aguardava sentado pela hora do meu vôo próximo ao portão de embarque, quando fui surpreendido pela chegada de uma moça que chamava a atenção pelos seus predicados físicos, e que não eram poucos. Ela era uma dessas morenas altas e voluptuosas que provocam em nós homens fantasias inconfessáveis. O corpo era aquela perfeição escultural bonita de se olhar e que enchem os olhos e dá água na boca, moldado por algum cirurgião plástico, exímio na arte do silicone e do botox. Seus peitos eram duas delícias duras que apontavam para o céu louvando o Criador e pareciam querer se libertar do sutiã minúsculo pulando para fora. Fixei meu olhar no seu belo rosto de pele limpa e fresca e fiquei consternado quando este assumiu, subitamente, uma expressão de preocupação e dúvida ao olhar em volta procurando por um assento, o que, felizmente, havia em demasia. Terminou sentando-se logo à minha frente, para minha satisfação. Em seguida, enfiou a mão numa dessas bolsas que as mulheres carregam hoje em dia e que de tão enormes parecem caber um corpo inteiro dentro e, de lá, tirou um livro de capa verde e entregou-se à leitura esquecendo-se de nós mortais à sua volta. Notei que outros homens tinham o mesmo olhar de peixe morto sobre ela. Invejei-a pela precaução de trazer de casa a própria leitura. Fiquei imaginando qual seria o seu gosto literário, talvez aquele fosse um livro de auto-ajuda ou algum romance psicografado. Ou quem sabe a biografia de alguma celebridade do show business ou um livro de romance vampiresco, tão populares hoje em dia. Poderia ser, também, um manual de como se comportar em vôos econômicos que partem de madrugada. Definitivamente aquele não seria um livro de culinária pois, para mim, estava claro que o seu interesse não parecia estar nas panelas. E, naquele jogo de adivinhações, ocupei meu tempo naquela noite modorrenta cujo silencio do saguão do aeroporto era quebrado com os ocasionais avisos de chegadas e partidas de vôos para terras longínquas, por uma voz feminina grave e imperturbável.
Quando, finalmente, veio a hora do meu voo, corri para o início da fila mesmo tendo meu lugar guardado, que eu não sou afeito a filas de qualquer tipo, embora eu reconheça que elas sejam ótimas situações para conhecer pessoas, jogar conversa fora e falar mal do governo. Quando, finalmente, entrei na aeronave me sentei confortavelmente em meu acento e logo apertei os cintos, para o caso de o comandante decidisse zarpar imediatamente. Para minha grata surpresa, no entanto, aquela criatura esplêndida e feminina da sala de espera apareceu no corredor da nave e veio em minha direção assumindo o assento logo ao meu lado. Fiquei grato à companhia aérea por esta cortesia. Sorri para ela e ela sorriu de volta, sem termos muito o que dizer um ao outro, mas um sorriso sempre já é um bom começo. Mas é claro que não demorou muito para começarmos uma conversinha despretensiosa sobre coisa alguma e em pouco tempo eu ainda não sabia a sua graça, mas já tinha notícia de que ela fora passar o carnaval em Salvador e se acabara de pular e beijar bocas e já planejava voltar no ano que vem, residia em São Paulo e que era uma dançarina numa casa noturna cuja principal clientela era masculina, o que não me deixou dúvida sobre que tipo exatamente de dança ela fazia. Logo me veio à mente a imagem de sua deliciosa figura em cima do palco, metida em um minúsculo biquíni de tecido brilhante e ordinário fazendo contorcionismos e voltas mirabolantes de corar as cadeiras da boate, com aquele corpo de tirar o fôlego da plateia e levantar defunto, sob os aplausos e assovios de um monte de marmanjos no cio. Como não poderia deixar de ser, perguntei-lhe se lhe agradava a leitura, ao que ela respondeu que amava, que não podia passar sem um livro, lia sempre que podia até mesmo de pé no trem do metrô. Mais uma vez a minha imaginação foi povoada por imagens de seu esplendido corpo se rebolando no palco e, ao mesmo tempo, entretida na leitura de um livrinho. E o que a senhorita anda lendo ultimamente, queria saber se eu adivinhara o seu tipo de leitura lá no meu joguinho na espera. Estou lendo Nietzsche, um ensaio “Sobre a Verdade e a Mentira”. O disse com tanta espontaneidade e propriedade que me causou a impressão de que ela imaginasse estar conversando com algum estudioso do filósofo. Eram os óculos Armani, eles me fazem parecer um doutor em alguma coisa, certa vez justificou-se uma moça ao me rejeitar, sério e intelectual demais. Por um instante duvidei das palavras da dançarina, me veio aquele julgamento preconceituoso “mas uma striper lendo Nietzsche? Não creio.”, mas logo em seguida recobrei o meu bom senso.
A dançarina de boate masculina sentadinha ao meu lado me faz ter por ela o mesmo julgamento equivocado a que já fui submetido certa vez. Desde quando a uma striper é vetada leituras sofisticadas? E quem foi que disse que os intelectuais são pessoas sisudas e geralmente com problemas oculares? Infelizmente vivemos num mundo de estereótipos e clichês como numa imensa novela do horário nobre e, por mais que eu tente, nunca consigo mudar de canal. O importante neste episódio é que tomei coragem, espantei a preguiça e dias depois voltei a escrever, mas sem a pretensão de ter a sabedoria de Nietzsche, certamente.

Rua Paissandu, 18 de março de 2011.

7 comentários:

Sarnelli disse...

Muito bom,Cristiano. Cada dia melhor !

Anônimo disse...

Mais uma vez adorei Cristiano, sentia falta de seu texto elegante e da maravilhas de seus encontros . Viva Nietzsche e viva as morenas sabidas...

marcella

Anônimo disse...

Welcome Back!
A Neighborhood Abraço,
James

Anônimo disse...

Muito bom este post, Cristiano!
Li este e mais dois - e não foi por preguiça que não li mais, não; ainda voltarei ao seu blog para ler mais! -, todos ótimos, uma gostosura de se ler! De verdade!
Parabéns pelo blog e pelos textos muito bem escritos e divertidos. Penso que é uma felicidade saber e poder escrever estórias desta maneira; safra boa essa sua e da Cyntia!
Não deixe de conviver com a preguiça - que, afinal, é companheira -, mas não fique muito tempo sem alimentar seu blog com post das crônicas bem humoradas - ou não; às vezes o mau humor também é engraçadíssimo (só às vezes)! - e gostosas de ler.
Um grande abraço, Cristiano!

Rogério

Anônimo disse...

Cris voce está de parabéns! Grandes textos!!! Abs. Pedro Moraes

Anônimo disse...

Olá Cristiano,
para um bom baiano, com fama de preguicoso, que vocé diz ser..sua recente producao veio provar o já dito numa das passages da sua obra: "pois sem o ócio não haveria a criatividade." Acho que vocé fez melhor proveito das aulas de literatura em nosso curso na UFBA, que a fama que carregas de preguicoso .. rsrsrsrsr
Super bj,
Astlé

Anônimo disse...

Olá Cristiano!
Parabéns pela ótima história, realmente nos mostra que não devemos pré-julgar ninguém. Outro dia num coletivo, o motorista estava escutando música clássica, achei muito estranho mas muito bonito tb!
Grande abraço e continue sempre nos dando o prazer de uma nova leitura!
Anne