A Chapada é um desses paraísos ecológicos onde a natureza resiste intrépida aos avanços do homem, e o seu verde, a abundância de água e a sua flora maravilham os olhos até daqueles menos entusiastas pelas coisas da natureza. Tudo lá cheira a saudável e promissor, e é o lugar onde o homem urbano se comunga com suas origens e o faz se sentir um grão de areia no universo diante de tanta beleza natural. E, extrapolando os meus limites da racionalidade, se fosse eu um homem de fé, até arriscaria o palpite de que há o dedo de Alguém por detrás de tudo isso, que só o sobrenatural explicaria tanta exuberância.
No entanto, a pequena cidade de Lençóis, onde o homem pôs o dedo, e onde fiquei instalado, também padece daquele mal que eu pensava ser típico apenas de Salvador, onde impera a falta de bons modos e das boas práticas para o convívio social harmonioso. Os marmanjos nativos também andam de um lado para o outro levando na mão um aparelhinho eletrônico que, embora feito na China, parece só saber tocar pagode, e justamente o de pior qualidade, considerando-se que deve haver alguns exemplos primorosos desta tal forma de expressão musical erudita.
As pequenas geringonças tocam no mais alto volume possível, fazendo suas caixas bufarem de tanto esforço ao reproduzirem um barulho estridente e rouco de tanto gritar, como se estivessem a ponto de irem pelos ares, porque me parece que o uso do fone de ouvido foi definitivamente abolido, por ser considerado pelos seus usuários como uma prática antissocial. A ordem do momento desta moçada é compartilhar o seu gosto musical, goste você ou não de pagode. Não tenho nada contra o pagode ou qualquer outro estilo musical, desde que estes, ao serem tocados em espaços de uso comum e que não sejam em casas de espetáculos, não afetem a liberdade do outro e nem se tornem num caso de poluição sonora. Assim como os fumantes sofrem todo tipo de restrições, aos amantes de música deveria ser obrigado o uso dos fones de ouvido até debaixo do chuveiro.
Eu estava sentado na balaustrada em frente à rodoviária esperando o ônibus noturno que me traria de volta, a contragosto, para Salvador, quando passou um moleque miúdo de cerca de dez anos, de pele quase transparente e cabelos claros com as pontas tingidas de lilás e rosa tal qual eu tenho visto ultimamente, vestindo uma camisa do seu time de fé duas vezes maior que o seu tamanho e calças com os fundos na altura do tornozelo, uma figurinha, segurava a tal geringonça espalhafatosa colada ao ouvido. Ele caminhava devagar com a expressão compenetrada na música e vez por outra dava uma breve parada como se o ato de andar e ouvir ao mesmo tempo dificultasse a compreensão da letra. Tocava tão alto que eu cheguei a imaginar que o pagode fizera um estrago em sua audição. Gritei para ele com aquele meu humor sardônico que já me custou amigos porque eu perco a amizade, mas não uma boa piada “Aumenta o volume que o pessoal lá na praça também quer ouvir!” Ao que ele me lançou um olhar surpreso e depois de refletir um instante, me fez um sinal de agradecimento com o polegar direito e aumentou ainda mais o volume da coisa!
Rio Vermelho, 26 janeiro de 2012.