quinta-feira, 1 de março de 2012

Sobre a sabedoria de uma chapeleira da Chapada.

Meu encontro com a dona Edite se deu na forma de uma transação comercial, quando entrei em sua lojinha, situada no final da Rua da Baderna, próxima à igreja do Rosário, com o intuito de comprar um chapéu que me protegesse do sol abrasador da Chapada. Acontece que ela é a única artesã a fazer chapéus de palha aqui na acolhedora cidade de Lençóis.

Dona Edite é uma senhora idosa de voz firme e determinada, cujas mãos pequenas e ágeis trançam a palha do licuri enquanto proseia com a vizinha de porta, sentadas lado a lado em cadeiras sobre a estreita calçada em frente de casa. Ela faz isto diariamente à noite e quase no escuro porque as mãos, já habituadas ao labor, conhecem de cor o caminho, conta ela, e a claridade lhe ofusca as vistas. E é em sua pequena e humilde casinha de telha vã que funciona também a sua loja e o atelier. Chapéus, sacolas, abanadores, descansos para pratos e uma variedade de outros utensílios feitos de palha se espalham por paredes e estantes dando vida à pequena sala transformada em loja, e não há quem não se maravilhe com tanta coisa bonita e de bom gosto, produto de nossa arte popular. Pendurado numa parede, está um chapéu de aba tão grande quanto um sombreiro de praia que serve para acolher até toda uma família. Tem outro, de formato engraçado, cuja copa é tão longa quanto se pode imaginar e vai se afinando até chegar à extremidade e se curva para frente lembrando um quiabo. E dona Edite pensa em tudo, inventou um que é especial para maridos traídos, pois sua copa é dividida ao meio em duas, podendo acolher um belo par de chifres. O qual eu mais gosto é um cuja copa começa estreita na base e vai se expandindo até chegar ao final que é levemente curvo nas bordas e no topo, lembra um grande e comprido pinico.

Quando questionada como aprendeu o seu ofício, dona Edite responde orgulhosa que este é um dom que nasceu com ela e que nunca tomou curso para quilo, que seu pai foi artesão e antes dele foi o avô e aquela habilidade foi passada de pai para filho se observando no dia a dia, tal qual uma criança aprende a andar. Nas palavras simples de dona Edite e no seu modo de falar existe a sabedoria de uma mulher que trabalha de sol a sol, tirando de seu ofício o seu sustento e o de sua família, e foi tecendo artigos de palha que educou os filhos que agora são doutores diplomados, conta orgulhosa.

Certa noite, entrei em sua loja à procura de um chapéu de abas largas, e como os modelos disponíveis não eram do meu agrado, dona Edite, gentilmente, se ofereceu para me fazer um sob medida. Eu queria um que fosse igual ao de pescador, mas com as abas curvadas para baixo. “Eu vou fazer um assim do seu gosto, meu filho”, disse com candura. “Passe aqui qualquer dia desses que ele estará pronto”, prometeu com precisão.

No caminho de saída, observei no chão junto à janela uma enorme cesta cheia com sementes de olho-de-boi, cuja existência eu conhecia desde os tempos de moleque. Para quem nunca ouviu falar, seu formato é um pouco menor que uma moeda de 25 centavos, irregularmente arredondado e de coloração castanho escura. Agente fazia uma traquinagem, friccionando-a no chão esta tinha a propriedade de ficar tão quente que ao encostá-la de surpresa na pele da vítima, ela dava um pulo e um grito de susto. Uai! E este era o único uso que eu conhecia da semente de olho-de-boi. Dona Edite me ofereceu uma, ao que eu perguntei para o quê servia. “Isto é um remédio, meu filho. Ela afasta as coisas ruins, traz felicidade e saúde. Você a coloca no bolso, ou na bolsa, ou debaixo do travesseiro.” Fui até a cesta e escolhi a mais bonita, perguntando em seguida: “Colocando-a debaixo do travesseiro, ela atrai mulher?” Ao que ela deu um suspiro e balançando a cabeça, respondeu com a voz doce: “Assim, também, você já está querendo demais, não é, meu filho?”

Chapada Diamantina, 29 de fevereiro de 2012.

6 comentários:

Anônimo disse...

Gosto de seus textos.
Daniele Helfstein

Anônimo disse...

Também brinquei com olho de boi. Adorei!
Mônica Aroucha

Ana Martha Falzoni disse...

Esse Brasil é tão grande e eu também esquentava olho de boi lá no Rio de Janeiro. Muito bacana essa dona Edite. E o chapéu, ficou pronto?

Anônimo disse...

Cristiano, tenho lido todas as suas cronicas e como sempre simples e divertidas.
Um abraço, Paulo Tude

Sarnelli disse...

Cristiano , não sabia que aquela coisa se chama olho de boi por aí... Me lembro que era normal encontrá-lo nas praias ( não sei porque ! ) , quando o mar devolvia alguma coisa que não queria e que eu e meus amiguinhos da época fazíamos a mesma brincadeira. Atritávamos aquela parte mais escura de encontro a uma superfície dura para esquentá-la, mas " a coisa " era conhecida por nós como cabeça de frade que costumavam, pelo menos na época, ser carecas.
Tem uma coisa que desejo perguntar: se realmente o olho de boi tem tantas propriedades, será que você se lembrou de trazer alguns para os amigos ?

Mais uma , complementendo a pergunta que Ana Martha fez: o chapéu de palha é aquele que você anda usando nas nossas reuniões de sábado pela manhã ?

Finalizando: gosto do seu estilo.

Anônimo disse...

Olá Cristiano,

Gostei muito da leitura poética que você fez de Dona Edite, temos também grande admiração pelo seu ofício, realmente uma mulher forte e determinmada. Atualmente ela mudou a loja para a rua das pedras em frente ao Fruta Café e ao lado do estabelecimento do Sr.Lindu, camarada que inspira um interessante conto. Lençóis é canto de figuras interessantes inspiradoras de contos.

Agradeço a lembrança!

Um abraço!

Joana