segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Fábula carnavalesca

Ubirajara dos Prazeres era um respeitável pai de família. Sujeito pacato e afável, funcionário da Caixa Econômica há mais de vinte anos. Casado com dona Elvira, uma mulher tirana e acostumada a ser obedecida por todos de casa, inclusive pelo dócil marido, cujo temor à mulher era motivo de chacota dos amigos.
         Entretanto, dona Elvira tinha bom coração, permitia o marido encontrar os amigos às sextas-feiras para a tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos, depois do expediente na Caixa. Mas ele que não se atrevesse a chegar em casa embriagado, pois seria mandado de castigo passar a noite no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava ele brincar a terça-gorda de carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, no 2 de Julho, em companhia da turma de amigos. Apesar de sua natureza pacata, existia no coração de Ubirajara um folião adormecido.
         Era o ano da graça do Senhor de 1962 e os carnavais daquela época eram uma divertida festa popular com fantasias de pierrôs, piratas e colombinas, serpentinas e confetes, brincados ao ritmo de românticas marchinhas carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca saírem de moda e nos quais pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas da cidade e bailes noturnos em clubes sociais até o raiar do sol. Naquele ano, Ubirajara contava os dias para cair na folia vestido com a mesma fantasia de pirata dos carnavais anteriores. Sua maior despesa, fora com uma mamadeira de bebê dentro da qual despejou rum Montilla com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E quando a noite de terça-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro da Saúde, onde residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia.
         Mal ele pôs os pés no salão do clube, foi dominado pela animação causada pela música tocada pela famosa Banda do Maestro Tabajara. O pacato Ubirajara então se transformou num folião agitado, proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se aos amigos e caiu na folia noite adentro.
         Naquele baile os homens podiam se fantasiar do que quisessem, mas não era permitido que usassem máscaras, ao contrário das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Ubirajara pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem se cansar e se dar conta do tempo que parecia infinito. A moça tinha um requebrado e trejeitos que enfeitiçaram o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, faça-se justiça, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente enamorado, fez gracejos com aquela moreninha da qual só pôde ver os lábios grossos e gordurosos, pois como todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara colorida e enfeitada com purpurina. Nosso herói era só alegria, nada da chateação da repartição pública ou de receber ordens da irritante da Elvira, aquela noite era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas, a magia do carnaval daquele ano começava a desvanecer-se. O sonho acabava. Na despedida, ele perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la algum dia, quem sabe em outros carnavais.
Do Clube dos Fantoches desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra feito uns moleques e foram terminar em dona Lurdes no Mercado Modelo, onde o famoso mocotó os aguardava para rebater a ressaca, cozido magistralmente na apertada cozinha de seu modesto restaurante em suas panelas sebentas. Lá pelas sete da manhã, ao entrar finalmente em casa nas pontas dos pés, deu de cara com outro, se não o seu algoz, que o aguardava mal humorado.
         ― Até que fim chegou o pé-de-valsa! – bradou dona Elvira. – Então, dançaste de rosto coladinho com uma fulana a noite inteira, hein, seu filho da puta!
         ― É...? E como você sabe? – admitiu com atrevimento, ainda sob o efeito maléfico do rum.
         ― Ela acabou de me contar. – e apontando em direção da cozinha. – Você dançou foi com a cozinheira, seu descarado!

Rio Vermelho, 24 de fevereiro de 2014.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Emprego dos Sonhos

Eu ligo para a Secretaria do Meio Ambiente com o intuito de fazer uma reclamação. Tento seguidas vezes os mesmos números que me passaram, mas ninguém jamais atende. Inconformado, no dia seguinte, tento novamente até que uma voz feminina e sonolenta finalmente me atende e pede que eu aguarde, pois vai chamar a pessoa responsável. Quando eu quase desistia de esperar, a mesma voz preguiçosa retoma a ligação, informa que a responsável não foi trabalhar naquele dia. Pergunto quando ela costuma ir trabalhar e sou instruído a tentar novamente por minha conta e risco na manhã do dia seguinte.
         Uma cozinha industrial instalou-se em nossa rua na casa onde marava uma querida vizinha. Primeiro foi o pai que se foi há muitos anos quando eu ainda era um meninote. Depois, a mãe. Finalmente, certo dia, não muito tempo atrás, ela comeu uma ostra estragada e não deu outra. Como não tinha herdeiros diretos, a casa foi vendida pelos irmãos. Nossa rua é residencial, mas isto não importa para a prefeitura que vê no IPTU comercial uma fonte de renda mais lucrativa que o residencial. Salvador carece de um plano diretor e de um ordenamento urbano, aqui tudo pode.
         O estabelecimento prepara alimentos que vão ser consumidos por seletos clientes de uma certa cadeia chique de cafés cujo funcionamento é em shopping centers, mas foi construído sem observar as normas para este tipo de empreendimento. A chaminé da cozinha não possui os apropriados filtros que impedem a poluição do ar e sua altura está abaixo do comprimento estabelecido. Resultado, os moradores do pequeno prédio vizinho sofrem com o cheiro de frituras e outros cozimentos e quando o vento sopra para o lado de minha casa, do outro lado da rua, nas correntes de verão, meu momento de leitura na rede do jardim é incomodado com o odor enjoativo.
Uma vizinha que mora no pequeno prédio ao lado da chaminé da tal cozinha já bateu duas vezes à minha porta choramingando e se queixando que o mal cheiro tem agravado a renite alérgica de seu filho. Sugeri-lhe que talvez fosse mais eficaz se ela reclamasse diretamente com o incomodador, mas sua natureza a impede de tomar tal iniciativa, que baiano intimida-se ante a necessidade de encarar enfrentamentos. Isto deve ser ainda herança dos tempos de senzala, penso eu, quando dezenas de homens, mulheres e crianças eram obrigados a coabitar o mesmo espaço sem direito a privacidade alguma e, por isso, tinham de engolir calados os aborrecimentos que surgiam naquele tipo de situação. A passividade e submissão, o medo da retaliação perduraram até os nossos dias. O prestativo de seu marido passa o dia fora no trabalho e quando volta para casa não quer saber de problemas. Restou a mim, o prefeito honorário da rua, fazer algo a respeito. Eu tinha resistido a isto, na esperança de que os incomodados tomassem a iniciativa, até o dia em que eu mesmo me senti incomodado.
         Liguei no dia seguinte para a Secretaria do Meio Ambiente e a mesma voz entusiasmada me atendeu. Os fiscais estavam todos fora fiscalizando as denuncias, informou. Mas alguém tem de anotar estas denuncias para que os fiscais possam ir para campo, não é? Tem sim, mas esta pessoa não chegou ainda, ela disse. Mas não foi esta mesma que não foi trabalhar ontem e estaria hoje aí pela manhã? Ela não chegou ainda, a atendente informou mais uma vez. E quando ela vai aparecer por aí, tem alguma ideia? Tente depois das dez, a outra respondeu. Eu gostaria muito de ter um emprego assim, lhe disse. Eu também, ela foi irônica, mas não sou concursada e por isso tenho de estar aqui no trabalho no horário todo santo dia.

Rio Vermelho, 13 de fevereiro de 2014.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O Dia Em Que Derrubei Um Mike Tyson

Eu gosto de gastronomia a ponto de me aventurar a experimentar algumas receitas simples de vez em quando. Sim, porque a minha ambição pela arte culinária não vai muito além de recriar algumas receitas fáceis de fazer que não frustrem o entusiasmo do chef amador que existe em mim. Outro dia mesmo eu participei de um workshop sobre risoto oferecido pelo SENAC e tive a grata surpresa de descobrir que aquilo que eu fazia com tanto empenho nunca foi um risoto.
         E foi conversando sobre pratos exóticos com um amigo natural do sertão de Minas Gerais que me veio a lembrança de um episódio em minha vida cuja relação com a culinária é nenhuma. Meu amigo mineiro falava de como sua mãe sabia fazer um ensopado de tatu como ninguém e de como ela até aproveitava o rabo do bicho. Não sou fã de tatu, jamais comi um e creio que este não está na minha lista de 100 coisas para comer antes de morrer. Considero-o até um animal simpático e até já tivemos um desses em nossa casa da Rua do Céu quando eu era criança. Mas desde que tomei conhecimento que o animal fazedor de buracos na terra apreciava cadáveres a sete palmos como iguaria e é um transmissor da doença de Lázaro, desenvolvi uma repulsa em tê-lo à minha frente em um prato sob qualquer receita que seja.
         Outra especialidade que a mãe do meu amigo tem é fazer um prato de nome tão incomum para nós baianos como ele próprio. Chama-se galopé e é feito a partir da mistura de dois cozidos, um de pés de porco frescos e outro de um cozido de galo duro. Minhas papilas gustativas salivaram encantadas com a ideia de prová-lo. Deve ser aquele tipo de comida que agente come e sua ao mesmo tempo e depois vai se deitar numa rede na sombra o resto da tarde para fazer a digestão. Entretanto, esta é uma receita que jamais terei a oportunidade de experimentar, a menos que eu vá parar num rincão de Minas. Eu me perguntei em nome de Deus onde eu conseguiria pés de porco frescos e ainda mais um galo velho e duro para abater aqui em Salvador. Naquele momento, lembrei-me de um certo galo.
         Eu vinha de uma fazenda onde fui passar o fim de semana com amigos e já era noite quando passávamos em frente à CEASA do Rio Vermelho. O carro vinha a certa velocidade, cheio de gente e malas e eu estava ao volante. Estávamos exaustos da longa viagem, já era noite, mas eu mantinha os olhos firmes e atentos na estrada. Ao passar em frente a um ponto de ônibus, fui surpreendido com a presença de um animal no caminho logo à nossa frente. O farol do carro devia tê-lo hipnotizado, pois ele estava imóvel como uma estátua e pude ver a potente luz do carro refletida em seu pequeno olho. Ele tinha um de cada lado da cabeça e estava de pé de perfil para nós. Era um majestoso e robusto galo. Naquele instante, meu pensamento foi ágil e rápido, calculei que seria impossível frear o automóvel sem causar um acidente e desviar para qualquer um dos lados também resultaria numa tragédia. Com o coração apertado, segui adiante e até hoje me lembro de sentir uma batida surda no chassis do carro. Aquele foi o meu primeiro e único atropelamento até os dias de hoje.
         Um amigo sentado no banco ao meu lado testemunhou o terrível episódio e ainda viu o dono do animal esbravejando feito um louco no ponto do ônibus.
         — Corre, Cris! – ele gritou exaltado. – Você matou um galo de briga, o dono está puto segurando a faixa de campeão!

         Rio Vermelho, 10 de fevereiro de 2014.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Violência Gratuita

Fui parar na Praia do Forte este fim de semana passado. Uma praia distante de Salvador, frequentada por grã-finos endinheirados ou pelos pretendentes a tal posto. Não sou nenhuma coisa nem outra, só um ponto fora da curva. Faço este passeio anualmente exatamente no dia 2 de fevereiro, com o intuito de fugir da muvuca em que se transformou a tradicional festa de Iemanjá, a Rainha do Mar, a protetora dos pescadores, pois em troca de oferendas garante-lhes pesca o ano inteiro. Esta festa, cujo momento culminante é a entrega de presentes à Iemanjá, deixados em alto-mar pelos pescadores, acontece a poucos metros de minha residência e, em minha opinião, apesar do incomodo que ela causa aos moradores em seu entorno, a considero a mais bela de todas as manifestações populares da Bahia de que tenho conhecimento.
Na hospedaria onde pousei em Praia do Forte, conheci um rapaz estrangeiro que estava de passeio de férias pelo Brasil. Falei-lhe da beleza que é a festa de Iemanjá, incentivando-o a vir até Salvador assistir à entrega das oferendas à Rainha do Mar. Entretanto, ele me respondeu que resolvera se abster de participar de eventos deste tipo enquanto estivesse visitando a nossa terrinha. Não era à toa. Seu rosto estava arrebentado e remendado por pontos cirúrgicos cuja carne costurada ainda pulsava vermelha de dor e deixará cicatrizes na pele e na alma. Dois dias antes, ele estava no Festival de Verão, – um evento musical e cultural produzido pela iniciativa privada aqui da cidade, portanto, em local fechado e com ingressos a peso de ouro – andava tranquilamente entre os participantes quando lhe desferiram um soco brutal de nocautear até o Anderson Silva. A alegria da noite terminou por ali. O estrangeiro desconhece o motivo pelo qual foi vítima de tamanha violência. Não havia tumulto algum, briga na qual tivesse sido acertado por um soco perdido. Não houve assalto. Deixaram a porta da jaula aberta e o animal que estava lá dentro fugiu para a noite agredindo covardemente pessoas que atravessavam em seu caminho. Nosso visitante, lamentavelmente, foi uma destas vítimas. Alguém divertia-se agredindo outros gratuitamente, mas que forma perversa e doentia de diversão.
De onde vem tanto ódio e insensatez? O caso deste rapaz estrangeiro não é um fato isolado. Longe disto, são centenas as vítimas que são agredidas injustificadamente neste tipo de evento de massa aqui em Salvador, quer seja este público ou privado, sem falar daquelas que assaltadas ou se metem em brigas as quais preferiam estar longe. Sair para se divertir em eventos que reúnem uma grande quantidade de pessoas tem se tornado uma atividade de alto risco na Terra da Felicidade. Não é raro as vítimas de tais violências carregam para o resto da vida sequelas causadas pela brutalidade.
Eu me pergunto por que isto acontece num país onde o seu governo se regozija de seu sucesso na economia, na saúde pública, segurança e educação. Se está tudo tão bom assim, então qual o motivo da fúria?
Se a Civilização é a violência dominada, como dizem, a vitória sobre a agressividade do primata, sim porque somos e sempre seremos primatas num estágio evoluído, como definiríamos então o nosso país? Em que estágio da evolução humana nos encontramos? Somos a nação que constrói aviões de alta tecnologia, produz vacinas e faz pesquisas em biotecnologia, mas também é o mesmo lugar que reduz o homem livre ou o presidiário a seu estágio mais primitivo da condição humana. Somos uma sociedade que funciona como um motor a produzir violência gratuita em nosso cotidiano. Temos medo de sair na rua de dia ou à noite, vivemos com medo por nós e pelos outros.

Rio Vermelho, 4 de fevereiro de 2014.