Ubirajara dos
Prazeres era um respeitável pai de família. Sujeito pacato e afável, funcionário
da Caixa Econômica há mais de vinte anos. Casado com dona Elvira, uma mulher tirana
e acostumada a ser obedecida por todos de casa, inclusive pelo dócil marido, cujo
temor à mulher era motivo de chacota dos amigos.
Entretanto, dona Elvira tinha bom
coração, permitia o marido encontrar os amigos às sextas-feiras para a
tradicional cervejinha com o jogo de palitinhos, depois do expediente na Caixa.
Mas ele que não se atrevesse a chegar em casa embriagado, pois seria mandado de
castigo passar a noite no desconfortável sofá da sala. E como parte ainda de
sua benevolência e compaixão, dona Elvira deixava ele brincar a terça-gorda de
carnaval no baile noturno do Clube dos Fantoches, no 2 de Julho, em companhia da
turma de amigos. Apesar de sua natureza pacata, existia no coração de Ubirajara
um folião adormecido.
Era o ano da graça do Senhor de 1962 e
os carnavais daquela época eram uma divertida festa popular com fantasias de pierrôs,
piratas e colombinas, serpentinas e confetes, brincados ao ritmo de românticas marchinhas
carnavalescas que se repetiam ano após ano sem nem nunca saírem de moda e nos quais
pobres e ricos misturavam-se sem preconceitos pelas avenidas da cidade e bailes
noturnos em clubes sociais até o raiar do sol. Naquele ano, Ubirajara contava
os dias para cair na folia vestido com a mesma fantasia de pirata dos carnavais
anteriores. Sua maior despesa, fora com uma mamadeira de bebê dentro da qual despejou
rum Montilla com o propósito de animar a folia com seus vapores etílicos. E
quando a noite de terça-feira chegou finalmente, Ubirajara transformou-se num
pirata de mentirinha e foi andando lépido e fagueiro do bairro da Saúde, onde
residia, até o Clube dos Fantoches, numa bela noite estrelada que prometia.
Mal ele pôs os pés no salão do clube,
foi dominado pela animação causada pela música tocada pela famosa Banda do
Maestro Tabajara. O pacato Ubirajara então se transformou num folião agitado,
proporcionalmente às vezes que levava a mamadeira vitaminada à boca. Juntou-se
aos amigos e caiu na folia noite adentro.
Naquele baile os homens podiam se
fantasiar do que quisessem, mas não era permitido que usassem máscaras, ao contrário
das mulheres cujo uso do disfarce era uma tradição, assim como também o da
fantasia bem caprichada. No meio da tradicional brincadeira do trenzinho, Ubirajara
pôs as mãos na cintura de uma mulata do corpo roliço que ia passando e de lá não
desgrudou mais a noite inteira. Dançou com a moça música após música sem se cansar
e se dar conta do tempo que parecia infinito. A moça tinha um requebrado e
trejeitos que enfeitiçaram o folião Ubirajara, cujo comportamento, até então, faça-se
justiça, foi a de um cavalheiro. Dançou agarradinho de rosto colado com um
sorriso melado, pulou marchinhas feito um adolescente enamorado, fez gracejos com
aquela moreninha da qual só pôde ver os lábios grossos e gordurosos, pois como
todas as mulheres ali presentes, escondia a identidade por trás de uma máscara
colorida e enfeitada com purpurina. Nosso herói era só alegria, nada da chateação
da repartição pública ou de receber ordens da irritante da Elvira, aquela noite
era só sua e iria aproveitá-la como se fosse a última, pois prazer assim só
ocorria uma vez por ano. No final do baile, quando os primeiros raios de sol
despontaram no horizonte da Baía de Todos os Santos com suas manchas alaranjadas,
a magia do carnaval daquele ano começava a desvanecer-se. O sonho acabava. Na
despedida, ele perdeu a compostura, talvez causada pelo excesso da bebida
barata, roubando da moça, apesar de sua resistência, um ardente beijo naqueles lábios
do pecado e um aperto de tirar o folego, seguidos da promessa de reencontrá-la
algum dia, quem sabe em outros carnavais.
Do
Clube dos Fantoches desceu pela Contorno com a turma de amigos fazendo algazarra
feito uns moleques e foram terminar em dona Lurdes no Mercado Modelo, onde o
famoso mocotó os aguardava para rebater a ressaca, cozido magistralmente na
apertada cozinha de seu modesto restaurante em suas panelas sebentas. Lá pelas
sete da manhã, ao entrar finalmente em casa nas pontas dos pés, deu de cara com
outro, se não o seu algoz, que o aguardava mal humorado.
― Até que fim chegou o pé-de-valsa! –
bradou dona Elvira. – Então, dançaste de rosto coladinho com uma fulana a noite
inteira, hein, seu filho da puta!
― É...? E como você sabe? – admitiu com
atrevimento, ainda sob o efeito maléfico do rum.
― Ela acabou de me contar. – e
apontando em direção da cozinha. – Você dançou foi com a cozinheira, seu
descarado!
Rio Vermelho, 24
de fevereiro de 2014.