sábado, 15 de março de 2014

Visita à Cidade Grande

A filha recebeu a visita do pai que veio do interior e ficou muito satisfeita. Sentia saudades dele e de todo o resto da parentada que deixara para trás na pequena cidade natal. Raríssimas foram as vezes que seu Herculano se aventurou a sair da tranquila roça em C... para vir até Salvador. Isto foi para ele uma aventura tão grande como a do primeiro homem a pisar na lua.
         A filha foi recebê-lo com todo o carinho na rodoviária e lhe cobriu com mimos durante a sua estadia, lhe preparou os pratos favoritos que a mamãe fazia quando era viva. É claro que a galinha de cabidela feita com frango congelado de supermercado não se comparava à galinha pé duro que o pai criava no sítio. O sangue para o molho, este, então, foi uma complicação danada para consegui-lo, pois não era encontrado em nenhum supermercado ou mercearia. Pediu para a empregada arranjar no terreiro que ela frequentava e onde galinhas eram sacrificadas para se fazer trabalhos. Mas o pai reconheceu o esforço da filha e comeu com gosto e sem fazer cara feia.
         No dia seguinte, o velho resolveu sair sozinho e fazer um turismo pela cidade enquanto a filha trabalhava. Vestiu sua roupa domingueira e pôs um paletó, parecia um crente indo para o culto. Saindo do apartamento da filha, preferiu descer os três lances pela escada ao invés de se aventurar pelo elevador, que era um lugar muito pequeno e abafado. Caminhou até o ponto de ônibus mais próximo e viu um que acabara de encostar. O letreiro dizia o destino: Vale das Pedrinhas.
         Aquele nome trouxe bonitas recordações a seu Herculano. Um vale verde e bonito, um riozinho no meio correndo alegre com suas águas límpidas cheias de peixinhos. Pedrinhas nas margens. Não teve dúvidas, embarcou no ônibus rumo àquele lugar encantado.
         A viagem foi tão demorada que imaginou estar indo para outra cidade, mas logo foi tranquilizado pela moça ao lado que disse se tratar de um bairro de Salvador. O ônibus andava de vagar, parava a todo minuto sem ter chegado a um ponto, seguia uma fila infinita de automóveis. Quantos carros, lamentou seu Herculano. Finalmente chegou ao Vale das Pedrinhas e desceu no segundo ponto.
         Olhou em volta com o olhar triste. Viu pequenos casebres espremidos uns contra os outros subindo morro acima. Alguns eram tão toscos que pareciam que iam cair a qualquer instante. Umas construções tinham reboco e outras não, que feiura. O lixo se amontoava por todos os lados, o lugar fedia a mijo. À sua frente, havia um canal aberto ladeado por concreto onde, além de lixo jogado lá embaixo, passava uma água escura e fétida. Nem sinal do riozinho de águas límpidas e das pedrinhas encantadas que imaginara.
         Desolado, seu Herculano atravessou a rua para pegar o ônibus de volta. Enquanto aguardava, um garoto que tinha a idade de seu neto de quinze anos aproximou-se com o seu nariz escorrendo de catarro, mostrou-lhe um canivete e pediu-lhe a carteira e o celular. Nunca tive isso, disse seu Herculano e entregou-lhe a carteira com pouco dinheiro. O menino lhe lançou um olhar ameaçador e num gesto rápido lançou-se com o canivete contra o velho. Mas este foi mais rápido ainda, fez como se agarrava um novilho, deu um garrote no pescoço do menino. Com o outro braço tirou de sua mão a faca que fez desaparecer na água escura do canal. Sentindo-se seguro, soltou o garoto que saiu correndo até sumir pelos labirintos da favela praguejando, por esta ele não esperava.
         Que tristeza isso aqui, pensou seu Herculano embarcando no ônibus de volta para a casa da filha com uns trocados que lhe restara no bolso. Não tinha rio algum, nem vale e nem pedrinhas e as crianças agiam como adultos perigosos. Não entendia como a filha tinha gosto em morar na cidade grande.

Rio Vermelho, 15 de março de 2014.

3 comentários:

Sarnelli disse...

Muito bom, Cristiano. Hoje eu não pude aguardar a sua chegada ao clube. pois não me sentia bem. Amanhã, talvez.Eu admirei a sua aquarela sobre o vale das pedrinhas. Adorei a descrição, mas, evidente que conhecia o final. Daí o legal de comparar uma coisa com a outra e pensar que tudo isso é uma realidade !...Pensar que aquala realidade pudesse ser contada da forma como contou. Abraços.

Anônimo disse...

Cristiano, como sempre simples e para quem conhece o lugar, descreveu
como um verdadeiro retrato.
Um abraço, Paulo

Anônimo disse...

Mente fértil ! Me deu até vontade de ir conhecer esse Vale das Pedrinhas...É só esperar o ônibus passar e subir nele ? Obrigado pela dica !
Sarneli