A filha recebeu a visita do pai
que veio do interior e ficou muito satisfeita. Sentia saudades dele e de todo o
resto da parentada que deixara para trás na pequena cidade natal. Raríssimas
foram as vezes que seu Herculano se aventurou a sair da tranquila roça em C...
para vir até Salvador. Isto foi para ele uma aventura tão grande como a do
primeiro homem a pisar na lua.
A filha foi recebê-lo com todo o carinho na rodoviária e lhe
cobriu com mimos durante a sua estadia, lhe preparou os pratos favoritos que a
mamãe fazia quando era viva. É claro que a galinha de cabidela feita com frango
congelado de supermercado não se comparava à galinha pé duro que o pai criava
no sítio. O sangue para o molho, este, então, foi uma complicação danada para
consegui-lo, pois não era encontrado em nenhum supermercado ou mercearia. Pediu
para a empregada arranjar no terreiro que ela frequentava e onde galinhas eram
sacrificadas para se fazer trabalhos. Mas o pai reconheceu o esforço da filha e
comeu com gosto e sem fazer cara feia.
No dia seguinte, o velho resolveu sair sozinho e fazer um
turismo pela cidade enquanto a filha trabalhava. Vestiu sua roupa domingueira e
pôs um paletó, parecia um crente indo para o culto. Saindo do apartamento da
filha, preferiu descer os três lances pela escada ao invés de se aventurar pelo
elevador, que era um lugar muito pequeno e abafado. Caminhou até o ponto de
ônibus mais próximo e viu um que acabara de encostar. O letreiro dizia o
destino: Vale das Pedrinhas.
Aquele nome trouxe bonitas recordações a seu Herculano. Um
vale verde e bonito, um riozinho no meio correndo alegre com suas águas
límpidas cheias de peixinhos. Pedrinhas nas margens. Não teve dúvidas, embarcou
no ônibus rumo àquele lugar encantado.
A viagem foi tão demorada que imaginou estar indo para outra
cidade, mas logo foi tranquilizado pela moça ao lado que disse se tratar de um
bairro de Salvador. O ônibus andava de vagar, parava a todo minuto sem ter
chegado a um ponto, seguia uma fila infinita de automóveis. Quantos carros, lamentou
seu Herculano. Finalmente chegou ao Vale das Pedrinhas e desceu no segundo
ponto.
Olhou em volta com o olhar triste. Viu pequenos casebres
espremidos uns contra os outros subindo morro acima. Alguns eram tão toscos que
pareciam que iam cair a qualquer instante. Umas construções tinham reboco e
outras não, que feiura. O lixo se amontoava por todos os lados, o lugar fedia a
mijo. À sua frente, havia um canal aberto ladeado por concreto onde, além de lixo
jogado lá embaixo, passava uma água escura e fétida. Nem sinal do riozinho de
águas límpidas e das pedrinhas encantadas que imaginara.
Desolado, seu Herculano atravessou a rua para pegar o ônibus
de volta. Enquanto aguardava, um garoto que tinha a idade de seu neto de quinze
anos aproximou-se com o seu nariz escorrendo de catarro, mostrou-lhe um
canivete e pediu-lhe a carteira e o celular. Nunca tive isso, disse seu Herculano
e entregou-lhe a carteira com pouco dinheiro. O menino lhe lançou um olhar ameaçador
e num gesto rápido lançou-se com o canivete contra o velho. Mas este foi mais
rápido ainda, fez como se agarrava um novilho, deu um garrote no pescoço do
menino. Com o outro braço tirou de sua mão a faca que fez desaparecer na água
escura do canal. Sentindo-se seguro, soltou o garoto que saiu correndo até
sumir pelos labirintos da favela praguejando, por esta ele não esperava.
Que tristeza isso aqui, pensou seu Herculano embarcando no
ônibus de volta para a casa da filha com uns trocados que lhe restara no bolso.
Não tinha rio algum, nem vale e nem pedrinhas e as crianças agiam como adultos
perigosos. Não entendia como a filha tinha gosto em morar na cidade grande.
Rio Vermelho, 15 de
março de 2014.
3 comentários:
Muito bom, Cristiano. Hoje eu não pude aguardar a sua chegada ao clube. pois não me sentia bem. Amanhã, talvez.Eu admirei a sua aquarela sobre o vale das pedrinhas. Adorei a descrição, mas, evidente que conhecia o final. Daí o legal de comparar uma coisa com a outra e pensar que tudo isso é uma realidade !...Pensar que aquala realidade pudesse ser contada da forma como contou. Abraços.
Cristiano, como sempre simples e para quem conhece o lugar, descreveu
como um verdadeiro retrato.
Um abraço, Paulo
Mente fértil ! Me deu até vontade de ir conhecer esse Vale das Pedrinhas...É só esperar o ônibus passar e subir nele ? Obrigado pela dica !
Sarneli
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