sábado, 23 de maio de 2015

Como é Bom Amar e Ser Amado

O senhor Bertoldo Gardelli amava os pássaros, razão pela qual havia tantos em sua casa e em variedade de tamanhos, tipos e cores. Ele não fazia distinção alguma entre um pequeno e desenxabido pardal e um exuberante pavão, por exemplo. Todos eram bem-vindos, desde que tivessem plumagem sobre o corpo. A presença de pássaros em seu lar era o motivo de sua satisfação e regozijo. Sua admiração por aquelas criaturas era tanta e a tal a ponto de ele chegar ao exagero de não permitir que estas fizessem parte do cardápio de sua família.

Eu imagino a expressão de censura do leitor ao presumir que o nosso personagem os tinha em cativeiro em sua casa, como fazem muitos dos que dizem gostar de pássaros. Muito pelo contrário, ele os amava tanto que os deixava ao seu arbítrio para partirem quando desejassem. Porque não é assim que se age quando se ama, deixando ao outro a escolha de ficar ou ir de embora?

A propriedade do senhor Bertoldo era rodeada por jardins com árvores de variados portes que faziam a alegria das aves. Todas as manhãs ele espalhava pelo lugar pedaços de frutas maduras e potes com água fresca e alpiste novo. Era este o segredo por haver tantos pássaros em sua casa. Eles vinham refestelar-se e, em retribuição ao anfitrião, alegravam a sua casa com seus cantos belos e gorjeios.

Certa vez, apareceu uma ave diferente de todas as que costumavam frequentar a casa do senhor Bertoldo. Esta não cantava ou emitia qualquer ruído agradável de se ouvir. Pelo contrário, a sua presença dificilmente evocava pensamentos agradáveis, havia até certo preconceito contra ela, razão pela qual ele, com o seu imenso coração, a acolheu como mais um filho. Sendo um bom conhecedor de pássaros, o senhor Bertoldo não teve dificuldade em identificar que aquele espécime tratava-se de um genuíno urubu.

Por que será que justamente um urubu veio pousar no meu quintal, ele se perguntou intrigado. Talvez ele estivesse com fome, concluiu. E como os urubus não são apreciadores de frutas ou alpiste, o senhor Bertoldo providenciou algumas pelancas frescas de carne de vaca para o seu inusitado visitante. E este gostou tanto daquela facilidade em obter alimento que na manhã seguinte estava lá de volta. Tantas foram as vezes que ele retornou por causa do farto alimento de qualidade que as suas visitas se tornam mais demoradas até o dia em que este resolveu estabelecer moradia ali mesmo pelo quintal do bom senhor Bertoldo.

No começo, a presença permanente de um urubu andando errante pelo quintal da casa surpreendeu os seus anfitriões. Mas como todas as coisas estranhas ao nosso cotidiano, cuja frequência nos leva a conviver pacificamente com elas, aquele urubu passou a fazer parte da vida doméstica da família Gardelli. De sorte que quando o senhor Bertoldo saía para a área externa da casa, o urubu vinha juntar-se a ele e o acompanhava como um cão, seguindo-o com seus passos desajeitados de ave. O senhor Bertoldo também se afeiçoou ao animal e gostava de sua companhia, razão pela qual, certo dia, ele resolveu batizar o bicho com um nome, passando a chamá-lo de Ferdinando Gardelli que também passou a ser o mais novo membro da família.

Rio Vermelho, 21 de maio de 2015.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O Pai e a Educação de Uma Pequena Árvore

No meio da manhã de um dia nublado de semana, o pai trouxe o filho de apenas três anos à biblioteca do bairro. Entraram sem cerimônia na sala ao lado da escada onde mesas, cadeiras e estantes pareciam que tinham encolhido de tamanho e o colorido dos livros e suas divertidas ilustrações atraiam os olhos e as mãos da criança viva e curiosa.

Isto vinha acontecendo há semanas, quase meses, todas as manhãs o pai vinha trazer o filho à biblioteca como se o levasse à escola. E o menino perdera o acanhamento inicial ao lugar estranho, mostrava-se familiarizado com ele. Era melhor que o menino fizesse algo de útil ao invés de ficar em casa em frente à televisão, pensava o pai. As vezes o menino começava a se irritar com aquela inércia dentro de casa e punha a chorar sem motivo algum, coisa de criança. Sair um pouco de casa fazia bem tanto ao pai quanto ao filho.

Existia uma mãe e ela era escriturária no Fórum, tinha um trabalho que era para a vida toda. Já o pai, este estava desempregado há meses. Porém ele não se cansava de enviar currículos às empresas e de receber um não como resposta, muitas vezes nem isto. Era jovem, capaz, mas a sorte não acenava para o seu lado nos últimos tempos. Entretanto, ele era um otimista, as coisas vão melhorar, ele repetia confiante para si mesmo.

Aquela situação momentânea o conduziu para o serviço doméstico e ele se viu ocupando o lugar que era da esposa, cuidando da casa e do filho pequeno. Entretanto, isto não o fazia se sentir menor, pelo contrário, fazer aquele serviço doméstico o fez valorizar o trabalho de sua esposa e lembrar da vida dura que a mãe teve para criar seus seis irmãos. De agora em diante, mesmo estando trabalhando novamente, ele prometia a si mesmo, não iria se descuidar de dividir o trabalho de casa com a esposa.

O pai gostava da companhia do filho e de ir à biblioteca com ele. Escolhia um livro grande e ilustrado e com a sua ajuda ensinava ao pequeno a respeito das coisas da vida.

O menino via maravilhado a vaca na fazenda impressa na página do livro e dizia ao pai que a vaca era que dava o leite. O pai concordava com o filho e apontava para uma coisa estranha no milharal. Esta aqui é uma máquina para colher o milho, filho. Do milho se faz a farinha de milho que a mamãe faz cuscuz para a gente comer no café da manhã. O menino olhava para a colheitadeira sem entusiasmo, ele preferia ver os animais da fazenda. Papai eu já comi amendoim, ele disse. Amendoim deveria vir dar fazenda como o milho do qual se fazia o cuscuz, ele concluiu. O menino às vezes falava alto e o pai carinhosamente lhe ensinava que na biblioteca se falava baixo para não se incomodar os outros.

Para o pai era uma preocupação diária ficar desempregado com tantas contas para pagar. Para o filho, aqueles momentos com o pai lhe serviriam de uma boa recordação de sua infância quando fosse um adulto e tivesse seus próprios filhos para cuidar. O pai não tinha dinheiro para dar brinquedos ou comprar tênis novo para o menino, mas aquele tempo que dedicava ao filho valia mais que qualquer coisa que o dinheiro pudesse comprar.

Rio Vermelho, 13 de maio de 2015.



domingo, 3 de maio de 2015

Crônica de Um Buraco

Quando a chuva finalmente deu uma trégua depois de castigar a velha e tortuosa Salvador, a água suja arrastou para o bueiro vidas, sonhos e conquistas. A cidade mergulhou na tristeza e despertou no soteropolitano o espirito de solidariedade e compaixão.

Aqui no Rio Vermelho não houve desabamentos. Entretanto, um buraco se abriu num lado da minha rua. Nós moradores, esperamos pela prefeitura aparecer por iniciativa própria para fazer o devido reparo. Mas ela estava ocupada fazendo consertos mais urgentes pela cidade sucumbida pelo dilúvio. Não deu as caras depois de uma semana do nascimento do buraco.

Uma voz solicita e educada atendeu no número de serviço ao cliente da prefeitura. Anotou todas as informações para que a queixa fosse encaminhada ao departamento competente e a incompetência só veio ao final da conversa quando a mesma voz educada informava que não havia prazo para que o conserto fosse feito. Era um daqueles casos de se esperar sentado.

Enquanto aquele buraco crescia a olhos vistos, um ou outro motorista desatento conseguia a proeza de enfiar o carro lá dentro, apesar de a Rua Ilhéus ser residencial e trafegar-se aqui devagar. O buraco não era profundo, mas o carro não conseguia sair de lá sem a ajuda do reboque.

Enquanto isto, outro buraco surgiu não muito longe do primeiro. Este era menor, mas prometia crescer bastante. Então os carros vinham, desviavam-se do buraco júnior e caiam mais adiante no maior. Nada que pusesse a vida do motorista em risco, só a aporrinhação de ter de chamar um guindaste para sair dali.

Passada a segunda semana de existência do primeiro buraco, um vizinho entusiasmado por festas fez um churrasco para comemorar o seu aniversário, ao qual eu não pude deixar de comparecer, pois me agrada muito uma boca livre. Metade da largura da rua já estava tomada pelo buraco mais antigo e o mais jovem crescia em profundidade. Alguém teve a sábia ideia de pôr um galho de árvore com um pano branco amarrado na ponta e espetar no meio do buraco maior onde os motoristas costumavam se enfiar. Mas o nossa cratera parecia que tinha o magnetismo do Buraco Negro e continuava atraindo carros para o seu interior.

Finalmente, numa bela manhã nublada às vésperas do dia do trabalhado, apareceu uma equipe de operários. Mediram, fotografaram e até cheiraram os buracos, talvez como uma forma primitiva de identificar o seu dono. Em volta do buraco menor puseram estacas com fita amarela por medida de segurança. Presumi que não havia fita em quantidade suficiente para o buraco maior. Deixa pra lá, o importante é que a prefeitura já estava se mexendo.

E na manhã do dia seguinte, em pleno feriado, – esta turma não brinca em serviço! – levantei cedo como de costume, ouvi o movimento dos operários. Picaretas e pás não davam conta do serviço, trouxeram uma retroescavadeira! – procure no Google, nem eu sabia o que era isto. – Começaram pelo buraco menor que, apesar do seu raquitismo, era o mais problemático. Cavaram tão fundo que os operários precisaram de uma escada comprida para ir lá em baixo consertar um cano que se partira. Ao final, veio uma caçamba e despejou terra no buraco quando o sino da igreja avisava que já eram sete horas da noite. O serviço tinha terminado depois de mais de doze horas de duro trabalho.

Tomei a iniciativa de ir agradecer em meu nome e dos outros moradores aos operários pela dedicação e empenho de trabalhar no feriado, ainda mais que era o do dia do trabalho quando não se deveria mover nem uma palha. Indaguei quando viriam tapar o buraco maior. Nunca, me responderam com a cara mais limpa. Aquele outro buraco não lhes pertencia! Ele era responsabilidade de outro departamento. Ora bolas, em nossa kafkiana burocracia, cada departamento do governo tem o seu próprio buraco, mas a fonte que a financia é apenas uma, o ludibriado contribuinte. Pois bem, se até o próximo sábado não vierem tapar o buraco, quem ganha sou eu que não vou perder mais um churrasco comemorativo no vizinho!

Salvador, 2 de maio de 2015.