Quando a chuva finalmente deu uma
trégua depois de castigar a velha e tortuosa Salvador, a água suja arrastou
para o bueiro vidas, sonhos e conquistas. A cidade mergulhou na tristeza e
despertou no soteropolitano o espirito de solidariedade e compaixão.
Aqui no
Rio Vermelho não houve desabamentos. Entretanto, um buraco se abriu num lado da
minha rua. Nós moradores, esperamos pela prefeitura aparecer por iniciativa própria
para fazer o devido reparo. Mas ela estava ocupada fazendo consertos mais urgentes
pela cidade sucumbida pelo dilúvio. Não deu as caras depois de uma semana do
nascimento do buraco.
Uma voz
solicita e educada atendeu no número de serviço ao cliente da prefeitura.
Anotou todas as informações para que a queixa fosse encaminhada ao departamento
competente e a incompetência só veio ao final da conversa quando a mesma voz
educada informava que não havia prazo para que o conserto fosse feito. Era um
daqueles casos de se esperar sentado.
Enquanto
aquele buraco crescia a olhos vistos, um ou outro motorista desatento conseguia
a proeza de enfiar o carro lá dentro, apesar de a Rua Ilhéus ser residencial e
trafegar-se aqui devagar. O buraco não era profundo, mas o carro não conseguia
sair de lá sem a ajuda do reboque.
Enquanto
isto, outro buraco surgiu não muito longe do primeiro. Este era menor, mas
prometia crescer bastante. Então os carros vinham, desviavam-se do buraco júnior
e caiam mais adiante no maior. Nada que pusesse a vida do motorista em risco,
só a aporrinhação de ter de chamar um guindaste para sair dali.
Passada
a segunda semana de existência do primeiro buraco, um vizinho entusiasmado por festas
fez um churrasco para comemorar o seu aniversário, ao qual eu não pude deixar
de comparecer, pois me agrada muito uma boca livre. Metade da largura da rua já
estava tomada pelo buraco mais antigo e o mais jovem crescia em profundidade.
Alguém teve a sábia ideia de pôr um galho de árvore com um pano branco amarrado
na ponta e espetar no meio do buraco maior onde os motoristas costumavam se
enfiar. Mas o nossa cratera parecia que tinha o magnetismo do Buraco Negro e
continuava atraindo carros para o seu interior.
Finalmente,
numa bela manhã nublada às vésperas do dia do trabalhado, apareceu uma equipe de
operários. Mediram, fotografaram e até cheiraram os buracos, talvez como uma
forma primitiva de identificar o seu dono. Em volta do buraco menor puseram
estacas com fita amarela por medida de segurança. Presumi que não havia fita em
quantidade suficiente para o buraco maior. Deixa pra lá, o importante é que a
prefeitura já estava se mexendo.
E na
manhã do dia seguinte, em pleno feriado, – esta turma não brinca em serviço! –
levantei cedo como de costume, ouvi o movimento dos operários. Picaretas e pás
não davam conta do serviço, trouxeram uma retroescavadeira! – procure no
Google, nem eu sabia o que era isto. – Começaram pelo buraco menor que, apesar
do seu raquitismo, era o mais problemático. Cavaram tão fundo que os operários
precisaram de uma escada comprida para ir lá em baixo consertar um cano que se
partira. Ao final, veio uma caçamba e despejou terra no buraco quando o sino da
igreja avisava que já eram sete horas da noite. O serviço tinha terminado
depois de mais de doze horas de duro trabalho.
Tomei a
iniciativa de ir agradecer em meu nome e dos outros moradores aos operários
pela dedicação e empenho de trabalhar no feriado, ainda mais que era o do dia
do trabalho quando não se deveria mover nem uma palha. Indaguei quando viriam
tapar o buraco maior. Nunca, me responderam com a cara mais limpa. Aquele outro
buraco não lhes pertencia! Ele era responsabilidade de outro departamento. Ora
bolas, em nossa kafkiana burocracia, cada departamento do governo tem o seu próprio
buraco, mas a fonte que a financia é apenas uma, o ludibriado contribuinte. Pois
bem, se até o próximo sábado não vierem tapar o buraco, quem ganha sou eu que não
vou perder mais um churrasco comemorativo no vizinho!
Salvador, 2 de maio de
2015.
3 comentários:
Se não vierem até o próximo sábado me avisa para eu ir participar do segundo aniversário do buraco. Quer um conselho ? Para o nosso bem, deixe ele em paz e não fique reclamando toda hora , tetando apressar o conserto!
Adorei a Crônica de Um Buraco.
Abs,
Tatiana
MUITO BOM! POSSO DIVULGAR?
José Hage
Postar um comentário