domingo, 3 de maio de 2015

Crônica de Um Buraco

Quando a chuva finalmente deu uma trégua depois de castigar a velha e tortuosa Salvador, a água suja arrastou para o bueiro vidas, sonhos e conquistas. A cidade mergulhou na tristeza e despertou no soteropolitano o espirito de solidariedade e compaixão.

Aqui no Rio Vermelho não houve desabamentos. Entretanto, um buraco se abriu num lado da minha rua. Nós moradores, esperamos pela prefeitura aparecer por iniciativa própria para fazer o devido reparo. Mas ela estava ocupada fazendo consertos mais urgentes pela cidade sucumbida pelo dilúvio. Não deu as caras depois de uma semana do nascimento do buraco.

Uma voz solicita e educada atendeu no número de serviço ao cliente da prefeitura. Anotou todas as informações para que a queixa fosse encaminhada ao departamento competente e a incompetência só veio ao final da conversa quando a mesma voz educada informava que não havia prazo para que o conserto fosse feito. Era um daqueles casos de se esperar sentado.

Enquanto aquele buraco crescia a olhos vistos, um ou outro motorista desatento conseguia a proeza de enfiar o carro lá dentro, apesar de a Rua Ilhéus ser residencial e trafegar-se aqui devagar. O buraco não era profundo, mas o carro não conseguia sair de lá sem a ajuda do reboque.

Enquanto isto, outro buraco surgiu não muito longe do primeiro. Este era menor, mas prometia crescer bastante. Então os carros vinham, desviavam-se do buraco júnior e caiam mais adiante no maior. Nada que pusesse a vida do motorista em risco, só a aporrinhação de ter de chamar um guindaste para sair dali.

Passada a segunda semana de existência do primeiro buraco, um vizinho entusiasmado por festas fez um churrasco para comemorar o seu aniversário, ao qual eu não pude deixar de comparecer, pois me agrada muito uma boca livre. Metade da largura da rua já estava tomada pelo buraco mais antigo e o mais jovem crescia em profundidade. Alguém teve a sábia ideia de pôr um galho de árvore com um pano branco amarrado na ponta e espetar no meio do buraco maior onde os motoristas costumavam se enfiar. Mas o nossa cratera parecia que tinha o magnetismo do Buraco Negro e continuava atraindo carros para o seu interior.

Finalmente, numa bela manhã nublada às vésperas do dia do trabalhado, apareceu uma equipe de operários. Mediram, fotografaram e até cheiraram os buracos, talvez como uma forma primitiva de identificar o seu dono. Em volta do buraco menor puseram estacas com fita amarela por medida de segurança. Presumi que não havia fita em quantidade suficiente para o buraco maior. Deixa pra lá, o importante é que a prefeitura já estava se mexendo.

E na manhã do dia seguinte, em pleno feriado, – esta turma não brinca em serviço! – levantei cedo como de costume, ouvi o movimento dos operários. Picaretas e pás não davam conta do serviço, trouxeram uma retroescavadeira! – procure no Google, nem eu sabia o que era isto. – Começaram pelo buraco menor que, apesar do seu raquitismo, era o mais problemático. Cavaram tão fundo que os operários precisaram de uma escada comprida para ir lá em baixo consertar um cano que se partira. Ao final, veio uma caçamba e despejou terra no buraco quando o sino da igreja avisava que já eram sete horas da noite. O serviço tinha terminado depois de mais de doze horas de duro trabalho.

Tomei a iniciativa de ir agradecer em meu nome e dos outros moradores aos operários pela dedicação e empenho de trabalhar no feriado, ainda mais que era o do dia do trabalho quando não se deveria mover nem uma palha. Indaguei quando viriam tapar o buraco maior. Nunca, me responderam com a cara mais limpa. Aquele outro buraco não lhes pertencia! Ele era responsabilidade de outro departamento. Ora bolas, em nossa kafkiana burocracia, cada departamento do governo tem o seu próprio buraco, mas a fonte que a financia é apenas uma, o ludibriado contribuinte. Pois bem, se até o próximo sábado não vierem tapar o buraco, quem ganha sou eu que não vou perder mais um churrasco comemorativo no vizinho!

Salvador, 2 de maio de 2015.


3 comentários:

Sarnelli disse...

Se não vierem até o próximo sábado me avisa para eu ir participar do segundo aniversário do buraco. Quer um conselho ? Para o nosso bem, deixe ele em paz e não fique reclamando toda hora , tetando apressar o conserto!

Anônimo disse...

Adorei a Crônica de Um Buraco.
Abs,
Tatiana

Anônimo disse...

MUITO BOM! POSSO DIVULGAR?
José Hage