Mal se passou meia hora desde que
pôs na cadeira o traseiro e os olhos já procuravam o grande relógio de parede à
sua frente. Ao verificar que o dia estava apenas começando, contraiu os lábios com
uma expressão de desânimo, só de imaginar as longas horas que ainda lhe restavam.
Num sinal de desespero, fez uma prece para que o dia passasse logo, ao olhar indignada
para os dois ponteiros que pareciam estar congelados.
Ana Rita orgulhava-se de ser uma
funcionária pública e de trabalhar num obsoleto departamento onde nada
acontecia, ou melhor, onde não havia quase nada o que fazer. Era o emprego dos
sonhos, um salário que não era de se jogar fora, estabilidade no emprego, aposentadoria
integral garantida e quase nenhum serviço. Naquela repartição de nome comprido
e pomposo, abundava de funcionários que mal davam conta do escasso trabalho. Então,
só lhe restava bater o ponto na hora certa ao chegar e arrumar-se meia hora
antes de ir embora. Aquelas eram tarefas que ela fazia a satisfação de dever
cumprido e ao mesmo tempo com uma expressão de martírio.
Para ajudar a passar o tempo, a
cada meia hora, ela levantava-se de sua mesa e ia até o final do corredor, onde
um bebedouro lhe aguardava. Servia-se com um copo como se estivesse morrendo de
sede enquanto comentava com outro colega que beber bastante água fazia muito
bem aos rins, embora aquela valiosa informação científica tivesse sido obtida
da sessão de curiosidades de uma revistinha de palavras cruzadas.
Em frente à sua mesa e de
costas para ela, sentava-se outra funcionária. A posição das duas mesas
costumava ser de frente para a outra, até o dia em que as duas colegas se
desentenderam. Por causa de que mesmo? Elas nem mais se lembravam. Entretanto,
o orgulho ferido de cada uma fez com que parassem de se falar e o assunto foi resolvido
de maneira prática: a outra virou a sua mesa de frente para a parede e ficou de
costas para ela.
No final da manhã, Ana Rita olhou
para a sua mesa como se não a reconhecesse e viu com surpresa sobre esta uma pequena
pilha de papéis. Era algum serviço que aguardava a sua atenção. Esta sua
surpresa não foi causada pelo fato de não ter notado antes aqueles papéis, mas
por estes ainda estarem ali desde a semana passada. Então, numa atitude
diligente, aproximou a pilha para perto. Procurou pela caneta na gaveta da mesa
e antes de começar a dar andamento ao trabalho, lembrou que precisava tomar um
pouco de água para manter os rins saudáveis. Pôs a pilha de papéis de volta em
seu antigo lugar. Era interessante como sempre que se punha a iniciar uma tarefa,
sentia um pouco de sede ou vontade de ir ao banheiro para se desfazer daquela
água toda que ingerira ao longo do dia.
Quando chegava a hora de ir
embora ao final da tarde, ela já estava pronta há muito tempo. Registrava pontualmente
a sua saída e ia encontrar o noivo que a aguardava no lugar de sempre. E quando
ele lhe abraçava afetuosamente e lhe perguntava como fora o seu dia, ela, então, lhe lançava um olhar martirizado e respondia
com a voz quase falhando que estava com dor de cabeça de tanto trabalhar e revirava
os olhos quase desfalecendo.
Rio Vermelho, 4 de
novembro de 2015.
3 comentários:
Com humor, você pintou uma bela imagem. Você é você ! Se aparecer outro, é falsificação. Parabéns.
O retrato do funcionarismo público.
Genial, Cristiano! Entrei, concursada, para uma secretaria estadual nos idos de 1978, e o quadro já era esse. Anos depois me desliguei e fui cuidar da vida (em outra dinâmica) e, há mais de oito anos estou de volta ao serviço público - e, surpresa, continua igual. Com as devidas e honrosas exceções, porque, sem elas, ninguém aguentaria, não é verdade?
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