quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Duro Dia de Trabalho de Uma Funcionária Pú-blica

Mal se passou meia hora desde que pôs na cadeira o traseiro e os olhos já procuravam o grande relógio de parede à sua frente. Ao verificar que o dia estava apenas começando, contraiu os lábios com uma expressão de desânimo, só de imaginar as longas horas que ainda lhe restavam. Num sinal de desespero, fez uma prece para que o dia passasse logo, ao olhar indignada para os dois ponteiros que pareciam estar congelados.

Ana Rita orgulhava-se de ser uma funcionária pública e de trabalhar num obsoleto departamento onde nada acontecia, ou melhor, onde não havia quase nada o que fazer. Era o emprego dos sonhos, um salário que não era de se jogar fora, estabilidade no emprego, aposentadoria integral garantida e quase nenhum serviço. Naquela repartição de nome comprido e pomposo, abundava de funcionários que mal davam conta do escasso trabalho. Então, só lhe restava bater o ponto na hora certa ao chegar e arrumar-se meia hora antes de ir embora. Aquelas eram tarefas que ela fazia a satisfação de dever cumprido e ao mesmo tempo com uma expressão de martírio.

Para ajudar a passar o tempo, a cada meia hora, ela levantava-se de sua mesa e ia até o final do corredor, onde um bebedouro lhe aguardava. Servia-se com um copo como se estivesse morrendo de sede enquanto comentava com outro colega que beber bastante água fazia muito bem aos rins, embora aquela valiosa informação científica tivesse sido obtida da sessão de curiosidades de uma revistinha de palavras cruzadas.

Enquanto o tempo se arrastava, ela pensava no noivo, organizava mentalmente a festa do casamento e fazia uma lista do enxoval e de tudo que precisariam comprar para montar o lar. Queria que tudo fosse novo em folha, dava azar começar um casamento com um fogão ou uma geladeira já usados, imagine pôr na sala um sofá que já tivesse um passado. Segundo as suas palavras, o noivo é que possuía um emprego de verdade, era auditor fiscal e com o que ganhava dava para comprar tudo novinho à prestação. Ele lhe daria a segurança que sempre sonhara e uma família feliz.

Em frente à sua mesa e de costas para ela, sentava-se outra funcionária. A posição das duas mesas costumava ser de frente para a outra, até o dia em que as duas colegas se desentenderam. Por causa de que mesmo? Elas nem mais se lembravam. Entretanto, o orgulho ferido de cada uma fez com que parassem de se falar e o assunto foi resolvido de maneira prática: a outra virou a sua mesa de frente para a parede e ficou de costas para ela.

No final da manhã, Ana Rita olhou para a sua mesa como se não a reconhecesse e viu com surpresa sobre esta uma pequena pilha de papéis. Era algum serviço que aguardava a sua atenção. Esta sua surpresa não foi causada pelo fato de não ter notado antes aqueles papéis, mas por estes ainda estarem ali desde a semana passada. Então, numa atitude diligente, aproximou a pilha para perto. Procurou pela caneta na gaveta da mesa e antes de começar a dar andamento ao trabalho, lembrou que precisava tomar um pouco de água para manter os rins saudáveis. Pôs a pilha de papéis de volta em seu antigo lugar. Era interessante como sempre que se punha a iniciar uma tarefa, sentia um pouco de sede ou vontade de ir ao banheiro para se desfazer daquela água toda que ingerira ao longo do dia.

Quando chegava a hora de ir embora ao final da tarde, ela já estava pronta há muito tempo. Registrava pontualmente a sua saída e ia encontrar o noivo que a aguardava no lugar de sempre. E quando ele lhe abraçava afetuosamente e lhe perguntava como fora o seu dia, ela, então, lhe lançava um olhar martirizado e respondia com a voz quase falhando que estava com dor de cabeça de tanto trabalhar e revirava os olhos quase desfalecendo.

Rio Vermelho, 4 de novembro de 2015.

3 comentários:

Sarnelli disse...


Com humor, você pintou uma bela imagem. Você é você ! Se aparecer outro, é falsificação. Parabéns.

José Fagner Alves Santos disse...

O retrato do funcionarismo público.

Berna Farias disse...

Genial, Cristiano! Entrei, concursada, para uma secretaria estadual nos idos de 1978, e o quadro já era esse. Anos depois me desliguei e fui cuidar da vida (em outra dinâmica) e, há mais de oito anos estou de volta ao serviço público - e, surpresa, continua igual. Com as devidas e honrosas exceções, porque, sem elas, ninguém aguentaria, não é verdade?